Pode-se invadir a Rússia, mas sem lançar mísseis: Ucrânia ‘esmagada’ entre linhas vermelhas dos aliados ocidentais estuda Plano B

Em agosto, a Ucrânia realizou uma incursão terrestre na região de Kursk, marcando a primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial que um conflito armado cruzou a fronteira russa. Este ataque, que representa a maior violação de uma linha vermelha imposta pelo presidente russo Vladimir Putin, foi recebido com relativa calma pelos aliados ocidentais de Kiev. No entanto, a tranquilidade em torno desta operação contrasta fortemente com o nervosismo que persiste no Ocidente perante a possibilidade de que armas ucranianas de longo alcance sejam usadas contra alvos dentro do território russo.

A resposta russa, que muitos esperavam ser imediata e drástica, foi até agora menos severa do que as ameaças apocalípticas emitidas por Putin sugeriam. Em setembro de 2022, Putin advertiu que, se a integridade territorial da Rússia fosse ameaçada, o Kremlin usaria “todos os meios” à sua disposição para proteger o país, num aviso velado sobre o possível uso de armas nucleares. “Não é um blefe”, ameaçou o presidente russo. No entanto, desde o início da invasão em larga escala da Ucrânia, há mais de dois anos, as forças ucranianas realizaram ataques significativos, como o afundamento do navio Moskva no Mar Negro, a destruição parcial da ponte de Kerch, em Crimea, e ataques com mísseis Storm Shadow contra a sede da frota russa em Sebastopol. Adicionalmente, drones ucranianos sobrevoaram Moscovo e atingiram bases aéreas estratégicas dentro da Rússia. Todos esses episódios, previamente considerados “linhas vermelhas” por Moscovo, não desencadearam a resposta extrema que muitos temiam.

Dado este historial, a incursão em Kursk foi tacitamente aprovada pelos aliados internacionais de Kiev. Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, afirmou recentemente que “a Ucrânia tem o direito de se defender e, segundo o direito internacional, esse direito não se detém na fronteira”. No entanto, a aceitação ocidental desta ofensiva contrasta com a prudência demonstrada em relação a uma das últimas linhas vermelhas que permanecem na guerra: o uso de armas de longo alcance para atingir alvos dentro do território russo.

Os sistemas de armas de longo alcance fornecidos pelos aliados ocidentais, como os mísseis ATACMS dos Estados Unidos e os Storm Shadow, de fabrico britânico e francês, têm sido fundamentais para a defesa ucraniana. Estes sistemas permitiram a Kiev realizar ataques precisos contra infraestruturas militares estratégicas, como bases aéreas, depósitos de combustível e sistemas de defesa aérea em Crimea e outras áreas ocupadas pela Rússia. Estes ataques têm prejudicado a capacidade ofensiva russa, forçando o Kremlin a redistribuir recursos e enfraquecendo a rede de defesa aérea do país. No entanto, os países que fornecem este armamento impuseram restrições rigorosas ao seu uso fora do território ucraniano, temendo uma possível escalada do conflito. “Estamos preocupados, obviamente, com a escalada”, admitiu recentemente Sabrina Singh, porta-voz adjunta do Pentágono. “Só porque a Rússia não respondeu até agora, não significa que não possa ou não vá fazê-lo no futuro”.

Esta restrição tem gerado frustração crescente em Kiev. Nas últimas semanas, o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, intensificou os seus esforços diplomáticos para convencer os aliados ocidentais a levantar esta última restrição. Zelensky argumenta que é essencial que a Ucrânia possa atacar bases aéreas e outros centros militares dentro da Rússia para prevenir futuras ofensivas. “Os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e outros parceiros têm o poder de nos ajudar a parar o terror”, declarou Zelensky, logo após um dos maiores ataques com mísseis e drones realizados por Moscovo desde o início da invasão.

A relutância do Ocidente em cruzar esta linha vermelha, apesar das inúmeras outras que já foram ultrapassadas sem grandes consequências, deve-se, em grande parte, à doutrina nuclear russa. Oliver Imhof, analista alemão de estratégia e dados de inteligência militar, explica que a doutrina russa prevê o uso de armas nucleares em situações onde o Estado se sinta em perigo existencial. Até agora, as incursões ucranianas em território russo não foram vistas pelo Kremlin como uma ameaça suficientemente grave para justificar uma resposta extrema. No entanto, atacar infraestruturas críticas, como radares de longo alcance ou bases nucleares, poderia desencadear uma reação muito mais severa. “Se a Ucrânia começar a atacar qualquer componente relacionado com a infraestrutura nuclear da Rússia, estaremos muito mais próximos de uma possível escalada nuclear do que com a captura de alguns quilómetros de território russo”, alerta Imhof numa entrevista ao El Confidencial.

Já em maio passado, os Estados Unidos expressaram publicamente a sua preocupação com um ataque ucraniano com drones contra sistemas de alerta precoce nuclear em Armavir, localizado na região russa de Krasnodar. De acordo com um funcionário de defesa americano citado pelo Washington Post, além de que esse tipo de infraestrutura não é diretamente utilizada nas operações russas na Ucrânia, o Pentágono teme que qualquer dano à capacidade de dissuasão estratégica nuclear da Rússia possa ser interpretado por Moscovo como uma ameaça existencial. “Deveria ser óbvio para todos que não existe qualquer intenção [por parte dos Estados Unidos] de utilizar armas nucleares contra a Rússia. Mas, certamente, existe a preocupação de como a Rússia poderia perceber que as suas capacidades de dissuasão estão a ser atacadas”, afirmou o oficial.

Por outro lado, uma fonte ucraniana confirmou ao mesmo jornal que a Rússia utilizou esses radares para monitorizar as atividades militares ucranianas, em particular o uso de drones e mísseis. Este mesmo oficial, que pediu para não ser identificado, também confirmou que a Direção de Inteligência Militar da Ucrânia (GUR) foi responsável pelos ataques. Esta divergência nas perceções reflete as diferenças significativas entre Kiev e Washington sobre quais os alvos militares dentro da Rússia que são considerados válidos, o que pode explicar por que a Casa Branca continua a recusar-se a permitir o uso de armamento de longo alcance fora das fronteiras ucranianas.

Face às limitações impostas pelos seus aliados, a Ucrânia tem investido no desenvolvimento dos seus próprios sistemas de armas de longo alcance, numa tentativa de contornar as restrições externas. Recentemente, Rustem Umerov, o ministro da Defesa ucraniano, anunciou a existência de um novo tipo de arma, batizada de “Palianytsia”, que combina mísseis e drones para alcançar alvos a centenas de quilómetros de distância, sem a necessidade de aprovação externa. Este sistema de armamento, ainda em fase inicial de desenvolvimento, visa dar à Ucrânia a capacidade de atacar o território russo sem depender das restrições impostas pelos seus aliados.

No entanto, a eficácia deste novo sistema de armas permanece incerta. Muitos especialistas têm expressado ceticismo quanto ao impacto real que o uso de armas de longo alcance contra o território russo poderá ter na guerra. Um funcionário de defesa dos EUA revelou ao The Wall Street Journal que, desde que a Ucrânia começou a receber os mísseis ATACMS, a Rússia adaptou-se, deslocando 90% dos seus aviões de combate para bases militares fora do alcance dos mísseis ucranianos.

Além disso, Stephen Biddle, professor da Universidade de Columbia e autor do livro Military Power: Explaining Victory and Defeat in Modern Battle, considera que os ataques a longa distância contra o território russo são uma “falsa promessa”. Em um ensaio publicado na Foreign Affairs, Biddle argumenta que, mesmo que o Ocidente levante as suas restrições ao uso de armas de longo alcance pela Ucrânia, é improvável que isso altere de forma decisiva o rumo da guerra. “Se o Ocidente levantar as suas restrições à capacidade de ataque profundo da Ucrânia, é pouco provável que as consequências incluam uma mudança decisiva na trajetória da guerra”, concluiu o professor.

Oliver Imhof partilha desta visão e acredita que, embora os ataques de longo alcance possam ter um impacto significativo, não são suficientes para decidir o conflito de forma isolada. “Os mísseis de longo alcance não são decisivos por si só e devem ser usados em combinação com outros sistemas de armas”, afirmou. No entanto, Imhof considera que eliminar as restrições impostas ao uso dessas armas seria benéfico para Kiev, pois obrigaria a Rússia a reposicionar os seus ativos, afastando-os das fronteiras e dificultando os ataques ao território ucraniano.

A questão que permanece é se as potências ocidentais algum dia cederão esta última linha vermelha. Na verdade, como lembra Imhof, isso já aconteceu em certa medida. Nos últimos meses, uma série de fugas de informação revelou que tanto o Reino Unido como a França estão envolvidos ativamente na seleção de alvos para os mísseis Storm Shadow. Pessoal britânico e francês no terreno tem o poder de vetar qualquer decisão que possa ser problemática para os seus governos, assegurando assim que os ataques realizados com estes mísseis estejam alinhados com os interesses e as restrições impostas por ambos os países. Deste modo, estes países têm, discretamente, manifestado a sua aprovação para o uso de armas de longo alcance contra o território russo.

“Creio que isso poderia ser também uma solução para o governo dos Estados Unidos ou da Alemanha: colocar algumas pessoas no terreno que supervisionem o processo de seleção de alvos”, sugere Imhof. Segundo o analista, essa abordagem ofereceria um maior controle sobre as operações ucranianas, ao mesmo tempo que mitiga os riscos de uma escalada descontrolada que poderia comprometer a segurança das potências ocidentais.

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