Ocidente foi criado a partir de um obscuro e esquecido acordo de 1122: o mundo nunca mais foi igual depois da Concordata de Worms

A Europa, a partir do século XV, viveu vários acontecimentos que moldaram o mundo: a descoberta do continente americano e de novas rotas comerciais transoceânicas, a invenção da imprensa e a consequente ascensão da cultura e da civilização, a Reforma Protestante e a sua expansão do secularismo formaram o terreno fértil que moldaria o que hoje conhecemos como Ocidente, termo que surgiu no século XVI para se referir a países com cultura de base cristã.

“As sociedades ocidentais, sejam europeias ou não, têm os seus defeitos e têm um passado amargo de tirania e repressão. Mas, com todos estes defeitos ainda remanescentes, mais indivíduos migraram para o Ocidente vindos de todos os cantos do mundo do que o abandonam. A razão é que o Ocidente parece ter encontrado uma forma de proporcionar aos seus cidadãos uma boa qualidade de vida e elevados níveis de tolerância, inovação, prosperidade, felicidade e liberdade”, referiu Bruce Bueno de Mesquita, cientista político, professor da Universidade de Nova Iorque e investigador sénior da Instituição Hoover da Universidade de Stanford, citado pelo jornal ‘El Mundo’.

Mas onde está a origem deste mundo que conhecemos hoje? Segundo o cientista político, muito antes, concretamente, há quase um milénio, quando a Europa iniciou um percurso que a levaria inesperadamente à separação do poder secular do religioso. “No início do século XII, a Europa começou a separar os seus caminhos do resto do planeta, inovando enquanto outros estagnavam”, garantiu Bueno de Mesquita.

“Os líderes da Europa Ocidental começaram a recompensar as mudanças e aqueles que as favoreceram. Com maior ou menor sucesso em diferentes partes do continente, a Europa superou muito do mundo conhecido conseguindo separar a religião do Governo e promovendo o secularismo, a prosperidade, a liberdade e a descoberta.”

Esta mudança não foi resultado de nada heroico ou revolucionário, nem altruísta, nem premeditado, mas sim através de um obscuro e quase esquecido acordo medieval assinado entre dois homens proeminentes que apenas procuravam dinheiro e poder.

“Em nome da santa e indivisível Trindade, eu, Henrique, pela graça de Deus Augusto Imperador de Romanos, pelo amor de Deus, da Santa Igreja Romana e do Papa Calisto, e pela salvação da minha alma, deixo nas mãos de Deus, dos santos apóstolos de Deus, Pedro e Paulo e da Santa Igreja Católica toda investidura pelo anel e pelo bastão e prometo que, em todas as igrejas do reino ou do Império, a eleição e o a consagração será gratuita.”

“Eu, Calisto, servo dos servos de Deus, garanto que as eleições dos bispos e abades do reino teutónico ocorrerão sem simonia e sem qualquer violência; se ocorrer alguma discórdia entre as partes de acordo com o conselho ou a sentença dos bispos metropolitanos e provinciais, dará seu consentimento e a sua ajuda à parte mais digna.”

Estes são dois trechos da Concordata de Worms, documento assinado em 1122 nesta cidade alemã pelo Sacro Imperador Romano Henrique V e pelo Papa Calisto II, cujo original está hoje no Arquivo Apostólico do Vaticano. Com ela, a Disputa das Investiduras, a luta de quase meio século entre o papado e o império para ver quem era a autoridade suprema da cristandade europeia, acabou.

“Desconhecido de praticamente todos, exceto dos estudiosos medievais, o tratado não apelava explicitamente à criação de prosperidade, liberdade e tolerância, mas dizia simplesmente três coisas”, explicou o professor. “Em primeiro lugar: a Igreja Católica arrogou-se o direito exclusivo de nomear bispos. Em segundo lugar: o Sacro Imperador Romano, juntamente com alguns outros reis, tinha o direito de aceitar ou rejeitar o candidato. Em terceiro lugar: se o bispo recém-nomeado fosse rejeitado, o governante secular da diocese católica relevante tinha de garantir a renda do bispado até que um bispo aceitável fosse nomeado e tomasse posse.”

Mas, como pode ter um acordo sobre quem concede o domínio aos bispos tanto significado? Se se levar em conta o contexto, não. Por um lado, existe o poder e o prestígio, que nesta época medieval, o século XII, se baseavam mais na força militar e na diplomacia. Os reis daquela época não eram os monarcas absolutistas ungidos por Deus séculos depois, mas sim senhores feudais a quem outros nobres juravam vassalagem, desde que cumprissem certas condições.

Mas também havia o dinheiro. O poder eclesiástico (bispos, abades de mosteiros ricos e outros dignitários) tinha grandes rendimentos e grande influência social e política que tanto o Vaticano como os vários reis queriam controlar. Assim, se um bispo fosse fiel ao seu rei, ele endossava as suas ordens e colocava soldados e receitas à sua disposição. Mas se fosse para o Papa, o dinheiro ia para Roma, e o bispo poderia alienar a população da sua diocese com o seu senhor leigo.
“Ou seja, os novos bispos deviam-se ao Papa em matéria religiosa e ao soberano leigo em matéria civil. Um pouco como aquela frase de Jesus: dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. A Concordata de Worms encorajou a Igreja a tentar limitar o crescimento económico e os governantes seculares, justamente o oposto, a promover o crescimento económico como forma de melhorar a sua influência política sobre a da Igreja.”

“Para alcançar o crescimento económico necessário para obter o controlo político, os governantes seculares tiveram de persuadir os seus súbditos a melhorar a produtividade. Uma forma fundamental de o fazer, evitando ao mesmo tempo a provável rebelião se os impostos aumentassem, era ‘dar a setores cada vez maiores da população uma maior participação na forma como é utilizada a riqueza gerada pelo seu trabalho, e a forma de o fazer acabou por ser a concessão de direitos e a criação de parlamentos e outros órgãos representativos”, explicou o especialista.

Ou seja, houve gradualmente um crescimento do comércio, da inovação e da distribuição da riqueza. “Apesar dos conflitos, a tendência foi sempre avançar para o que são hoje aquelas partes da Europa que assinaram a Concordata: muitos dos países do mundo com rendimentos per capita mais elevados, menos corrupção e governos mais responsáveis.”

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