“O vinho português tem de continuar a ser competitivo”, diz José Bento dos Santos

Nascido em 1947, autor de livros sobre gastronomia e vinhos (e de programas de televisão sobre estes temas), José Bento dos Santos comprou a Quinta do Monte d’Oiro nos anos 80, mas a primeira colheita só saiu nos em 1997. Desde então, os seus vinhos – e do filho Francisco – têm conquistado os elogios da crítica. Bento dos Santos passou a vida a correr Mundo. Comprava ouro, transportava chumbo ou vendia zinco. Tanto podia estar no Canadá, como na Austrália ou em Paris. Como nesta vida de trader muito do tempo era passado à mesa de restaurantes, aproveitou todas as oportunidades para, depois do jantar, ficar até às tantas na cozinha com os chefs, a conversar e, claro a aprender. Hoje, apesar de estar afastado dos negócios, continua a fazer o seu jantar todos os dias. «É algo que me permite ter um momento zen». 

José Bento dos Santos: «Entrei na escola com cinco anos, no externato Nuno Álvares Pereira, e vinha almoçar a casa. Comprar um papo seco e meter um rissol lá dentro era o maior gosto que podia ter. Aliás, a paixão pelos rissóis e  pasteis de massa tenra vem dessa altura. Na época, não havia comida pronta, tínhamos mesmo de cozinhar. Comia bacalhau à segunda-feira e à noite pastéis, à terça-feira já havia praça aberta e comíamos peixe, depois havia um dia de cozido à portuguesa, iscas, etc. Aprendi muito com o programa da Maria de Lurdes Modesto, tinha eu 11 anos, mas fiz o primeiro prato quatro anos antes: iscas com baço raspado e vinho madeira. A minha avó é outra referência, bem como uma senhora chamada Ana, bastante requisitada para fazer casamentos para 50 ou 100 convidados. Havia pratos de bacalhau, depois uma travessa de porco, galinhas, cabrito e batatas fritas. As pessoas adoravam a comida, vinha com um sabor extraordinário. E isso foi-se perdendo, o saber fazer e o saber comer. Mais tarde, quando jogava rugby era eu que fazia a lista de compras depois dos jogos e orientava o jantar para toda a gente. Na tropa também. A minha infância foi feliz, passada em Lisboa, mas também na aldeia, em Vila Chã (Alenquer), onde passava férias e fazia as vindímas. Era a liberdade absoluta, mesmo sem electricidade e água canalizada – líamos à luz do candeeiro de petróleo. Desde muito cedo sempre tive tendência para ser o coach (numa família com três irmãos) e organizar o que fosse preciso. 

Há uma coisa muito importante para se entender: cozinhar é passar do cru ao cozido. Mas servir uma maçã, uma fatia de melão, peixe crú ou caviar não é cozinhar. Depois, há duas formas de o fazer – por necessidade ou por pessoas que dominam as técnicas e do que se pode utilizar. Podemos até comprarar com a música e a pintura. É preciso saber, não basta dar a receita, tal como não basta dar um piano ou as tintas a qualquer um. É uma questão de equilíbrio. Por exemplo neste almoço, o tempo que demora a fazer os caldos, cozer uma coisa de cada vez e depois recozer tudo novamente. Tirei vários cursos de gastronomia, mas com 17 ou 18 anos fui a Bordéus, visitei diversos restaurantes e criei o hábito de falar com os cozinheiros. Sempre com intenção. Gosto de dialogar e recordo sempre uma metáfora: Sabe-se que um prato de peixe é extraordinário quando sentimos o Oceano Atlântico a entrar pela nossa boca. 

Mais tarde, no Grupo CUF, e ao longo da minha vida profissional (como broker de metais) viajava por todo o Mundo. Comi em muitos restaurantes, conhecia os chefs, os vinhos, os produtores. Era o outro lado da minha profissão. Numa vida de trader tudo o que é firmar negócios passa pela mesa. Este conjunto de circunstâncias leva-me a ter uma biblioteca com 12 mil livros de cozinha.
Classifico a comida em dois tipos: a pornográfica, que é uma satisfação momentânea, e a a comida de amor. É como estar apaixanado, é um prazer, uma satisfação única. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Quando comemos uma coisa bem feita, ficamos a recordar, sonhamos.
Nunca quis ser chef. A cozinha para mim é uma actividade lúdica, de prazer. A paixão nunca fez nada, é marketing puro. Uma pessoa cozinha bem se souber cozinhar, juntando talento e bom gosto, semelhante a um músico ou um pintor. Um amigo da CUF conta sempre uma história quando fez uma prova com um grupo de convidados: “alguns diziam que era o melhor vinho que tinham bebido na vida; outros diziam que mais valia não ter feito nada e outros esforçavam-se por dizer qualquer coisa”. E ele diz sempre: “Aceito todas as opiniões, excepto os que olham para o copo e afirmam. “É bom, está fresquinho”.
O vinho português está muito bem e a comida portuguesa também. Julgo que a comida portuguesa revelou-se agora e tem que ter cuidado em não ser a comida fácil, da sardinha assada e toca a andar. É importante que todos os que fornecem comida tenham vontade de fazer bem feito. E parece-me que deste ponto de vida subimos muito o nível nos últimos anos. O vinho subiu extraordinariamente mas temos de continuar a ser competitivos. Nós aumentámos muito mas os outros também».

RIGOR
«Sou um cultor do gosto. Gosto muito de música, de pintura, mas reconheço que não fui capaz de passar o chamado estádio iconográfico. Nestas coisas há sempre o estádio pré-iconográfico, mas se começar a gostar, ir a uns museus, comprar uns livros passa do estádio pré para o iconográfico, onde a imagem lhe é reconhecida e começa a perceber porque gosta mais de umas coisas do que de outras. A seguir há o estádio iconológico, a pessoa que estuda pintura e é capaz de analisar. Na alimentação é semelhante. Se bem que aqui é preciso saber de química, física, química orgânica, psicologia – Se se puser ovos moles num prato completamente branco ou num prato completamente preto, no prato preto vai saber menos doce do que no prato branco.
Fui pai com 33 anos. Eu e o Francisco jogámos rugby os dois juntos e fomos sempre muito colaborantes. Eu viajava entre 225 a 250 dias por ano, portanto houve ali uma parte na infância onde não estive tão presente. Foi uma relação muito mais fusão, diria eu. Hoje não tomo uma decisão sem falar com ele e perguntar coisas do dia-a-dia. Ele tem um bom senso extraordinário».

Francisco Bento dos Santos: «Comecei a jogar rugby aos 13 anos porque houve uma altura que o nosso clube, o Técnico, não tinha equipa para mais jovens. Quando se proporcionou, o pai foi o meu primeiro treinador. Senão fosse pela relação nunca me teria passado pela cabeça praticar este desporto. Cresci em casa só a ver rugby, sem ver futebol, portanto sem qualquer sentido impositivo. A caminho de casa discutíamos os jogos, as tácticas e os treinos.
Em 1997, saí da vendima e fomos à Reitoria ver a pauta de entrada para a Faculdade. Isto de negócio tinha zero. As coisas só se materializaram quando eu já estava na Faculdade para poder olhar para isto como uma actividade.
Eu acompanhei e trabalhei afincadamente na Quinta desde o início, à noite e ao fim-de-semana. Na altura trabalhava no Grupo Águas de Portugal e quando nasceu o meu filho optei por gozar a licença parental por inteiro. Durante esse tempo achei que estava na hora de mudar. Estava totalmente por dentro do negócio. Se algum dia alguém me perguntar qual o segredo de gerir uma empresa é esse: entrar e ninguém saber que nós entrámos. Porque não recebia telefonemas nem emails diariamente e tinha tempo para tratar de tudo».

José Bento dos Santos: «Esta Quinta foi comprada como um investimento específico. Eu estava nos EUA com um grande amigo e ele diz que passamos a vida a comprar e a vender commodities. Mas a única commodity que não cresce no mundo é a terra.  Bom, cheguei a Portugal, era uma sexta-feira, e no sábado ia ter um cozido na casa dos meus pais. Falei com eles e, após dois dias, surgiu uma oportunidade. O antigo dono desta Quinta tinha tido uns problemas e havia apenas um feitor a tratar das terras. Ele disse ao meu pai: “Só era capaz de vender a Quinta a si e ao seu filho porque sei que a vão tratar bem”. Uma semana depois já éramos os donos. Na época, eu e um grupo de colegas do trabalho tínhamos um fundo de investimento na Bolsa que subiu 10 vezes. Eu expliquei que ia rebater o fundo porque precisava do dinheiro para este investimento. Todos seguiram os mesmos passos, excepto um amigo nosso que manteve e acabou por perder o que tinha».

TRANSIÇÃO
José Bento dos Santos: «E a transição? Há uma questão psicológica terrível: para quem estava de fora, o Francisco seria sempre o filho do José. E isso não pode ser. É ele quem dialoga, decide. Estou para tudo o que for preciso mas sem nenhuma responsabilidade. Não interfiro em nada, a não ser que ele me peça. É preciso ser taxativo. Além de ter trabalhado na CUF, que foi uma escola extraordinária, e depois numa empresa americana de topo na área do trading, eu era responsável por tudo – descobrir onde estava a matéria-prima, colocá-la num barco, saber como a financiava e pagava».
Francisco Bento dos Santos: «As nossas decisões de lote juntam uma equipa inteira: director de viticultura, enóloga, directora comercial, consultor, eu e o meu pai. São decisões colegiais, tudo tem que fazer sentido. As decisões não podem ser tomadas só porque há um murro na mesa. Não é democracia, porque não vai a votos. Gosto mais da expressão colegial porque tem que fazer sentido para todos. Estamos um dia inteiro fechados e dois meses depois voltamos a juntar-nos para ratificar as decisões que tomámos dois meses antes. 

O pai dizia que um dos sonhos que tinha era um dia vir a fazer o vinho de que Eça fala em “O Mandarim”. Mas aquilo que o meu pai sonhava e já temos a felicidade de ter hoje em dia, independentemente de ser o vinho que fica nos anais da história, é a identidade Monte d’Oiro. Eu luto no dia-a-dia para vendermos mais uma garrafa. Esta noção de que existe um reconhecimento, transportar o conceito definido e torná-lo rentável é muito importante porque é o que aguenta o embate de sair uma novidade todos os dias. Conseguir que este legado fique, gerir as dificuldades, afinar e manter a espinha dorsal sem perder o conceito inicial é o meu grande desafio. O culto do rigor tem de ser em tudo. Hoje fazemos vinhos mais bem feitos técnicamente e é esse fazer igual de ano para ano que faz uma marca de referência sem lançar novidades e rótulos diferentes.  Mas, claro, também temos de fazer isso. Abanar um pouco o mercado, lançar uma novidade, mas garantir que a base se mantém sólida ao longo dos anos». 

José Bento dos Santos: «A prova cega lembra-me sempre o beijo do Magritte. Uma das coisas que se faz é servir os vinhos todos à mesma temperatura, brancos e tintos, em copos pretos para não se ver. Há muita gente que defende que a pessoa devia escolher os vinhos pelo produtor: se é sério e dá garantia». Qual o melhor vinho que já bebeu? «Nunca consegui o melhor de nada, mas consegui um vinho que nunca me sairá da memória e custava uns 7 ou 8 escudos. «Estava em Angola, no dia 1 de Maio de 1975 e foi declarado recolher obrigatório. Para ir a casa de alguém precisávamos de lá dormir. Um dia vieram a minha casa três ou quatro amigos. Eu tinha uma garrafa de Francisco Ferreira, do Cartaxo, de 1966. Era a última garrafa de vinho e, nessa altura, nem sabíamos se era o último copo de vinho que iamos beber todos. Chorámos, nunca mais me vou esquecer desse vinho».
Francisco Bento dos Santos: «Antes de ter filhos morei num apartamento T1 e, na altura das gravações do programa “O Sentido do Gosto”, o meu pai veio ter comigo porque sobrou uma trufa. Estava sozinho em casa, havia ovos e tinha na garagem (um local quente) umas garrafas reserva de Monte d’Oiro 2001. Foi guardada em más condições,mas apanhámos o pico do crescimento. Soube-nos muito bem».     

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