Nicotina: o futuro está na redução do risco?
A acompanhar as clássicas políticas de prevenção e de cessação tabágica, há cada vez mais investigadores e profissionais de saúde que defendem a introdução de uma abordagem centrada na redução do risco, a partir da disponibilização de nicotina através de soluções inovadoras e baseadas em investigação científica. No Fórum Global sobre Nicotina 2023, cuja 10ª edição decorreu recentemente na Polónia, vários especialistas analisaram o papel dos novos produtos de tabaco sem combustão na redução da prevalência do consumo de cigarros.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), apesar de todo o investimento e esforço que tem sido colocado ao serviço daquelas que são as normais abordagens no combate ao tabagismo (nomeadamente, a prevenção e a cessação tabágicas), continua a estimar mais de 1.000 milhões de fumadores em todo o mundo, em 2025. Enquanto isso, há cada vez mais vozes – incluindo de especialistas em saúde e médicos – a defenderem uma terceira via, a correr paralelamente às que já existem: a implementação de uma abordagem redução de risco, que tenha em consideração os últimos avanços científicos e os produtos de tabaco sem combustão (como cigarros eletrónicos ou sistemas de tabaco aquecido), que permitem a disponibilização de nicotina sem que ocorra queima de tabaco – e, por isso, reduzindo os constituintes nocivos que o fumo dos cigarros produz e liberta.
As estratégias de redução de riscos em tabaco e as políticas de controlo do tabagismo estiveram entre os principais temas abordados neste fórum, que decorreu no passado mês de Junho, em Varsóvia, na Polónia, durante quatro dias, e que se assume como um dos principais eventos internacionais dedicados ao estudo e análise do tabagismo e da utilização de nicotina. Juntos, à mesma mesa, para debater o papel das políticas de redução de risco, estiveram cerca de 70 médicos, investigadores, representantes governamentais e da indústria, reunindo diversas perspectivas, experiências e especialidades com vista à promoção de soluções inovadoras e concretas que contribuam para a redução do consumo de tabaco. O programa não incluiu oradores portugueses.
Como apontou a maioria dos intervenientes, sendo as políticas de prevenção e cessação tabágica vitais para a redução do número de fumadores, existe cada vez maior consenso em torno da ideia de que estas não são, apesar de tudo, suficientes para prevenir as doenças e a mortalidade relacionadas com o consumo de tabaco. Pelo que, havendo fundamentação científica que aponte para a eficácia da abordagem da redução do risco, então esta estratégia deve ser considerada a par das que já existem. Tal estratégia de redução de danos tem sido seguida, de forma generalizada, noutras áreas – incluindo no combate à toxicodepência e às doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo –, com resultados muito positivos. Pelo que, referiram os presentes, não há razão para que a mesma lógica seja aplicada ao tabaco.
No centro das discussões esteve, pois, o papel da nicotina e a forma como pode ser dispensada da forma menos danosa possível – através de soluções não combustíveis e que não produzem fumo.
Num dos painéis, dedicados ao estudo a nicotina, Paul Newhouse, psiquiatra e académico, diretor do Vanderbilt Center for Cognitive Medicine no departamento de Psiquiatria e ciência comportamental da Universidade Vanderbilt, no estado americano do Tennessee, afirmou: “Entendemos que a nicotina estimula os sistemas de receptores no cérebro que são importantes para a regulação do humor, cognição e uma variedade de funções neurais. Acontece que os efeitos são muito dependentes do estado emocional, da idade e podem até do género. Suspeito, que muitas pessoas nunca vão querer ou precisar de usar nicotina. Mas, para algumas pessoas, pode ser útil, seja para o desempenho cognitivo, para regular o humor ou controlar a ansiedade. Para uma parte da população, a nicotina será útil.”. Por isso, considerou este investigador que desde o início dos anos 2000 tem vindo a realizar diversos estudos neurológicos e comportamentais sobre os efeitos da nicotina, não se deve demonizar os produtos que disponibilizam esta substância. Deve, sim, trabalhar-se em alternativas que permitam às pessoas aceder a nicotina sem ter de recorrer aos tradicionais cigarros.
Por sua vez, o médico Konstantinos Farsalinos, investigador sénior na Universidade de Patras e na Escola de Saúde Pública da Universidade de West Attica, na Grécia, referiu: “As aplicações terapêuticas com nicotina são um campo de estudo empolgante, apesar de ainda estar no seu início. Mas imaginemos o que acontecerá se for observado impacto na luta contra a doença de Alzheimer e qual será o efeito que isso terá na sociedade. As pessoas estão apavoradas com a doença de Alzheimer e a demência, porque é, de facto, uma doença que afecta muito a dignidade humana e é muito difícil para os pacientes. Imaginemos como a percepção da nicotina vai mudar se tal efeito for encontrado, especialmente para prevenção primária.”
Já o médico irlandês Garrett McGovern, especialista em adições, afirmou: “Como médico, o velho ditado é não fazer mal, e não vejo nada de muito prejudicial na nicotina. Certo é que parece ter benefícios para algumas pessoas. Precisamos, pois, de mudar um pouco a narrativa e começar a fazer pesquisa científica para ver quais são os benefícios”.
Encontrar o “norte” em termos regulatórios
Na última década, surgiram novos produtos que passaram a permitir a disponibilização de nicotina sem recorrer à combustão, como os cigarros electrónicos, as bolsas orais de nicotina, e o tabaco aquecido. Contudo, a forma como tais soluções têm sido regulamentadas tem sido bastante díspar e inconsistente. Se há países que recorrem à proibição, outros, como é o caso do Reino Unido, Nova Zelândia, Suécia ou Japão, contemplam estes produtos nas suas estratégias de combate ao tabagismo, o que se tem reflectido na redução da prevalência de fumadores, afirmaram os presentes.
Pelo contrário, na Austrália, como referiu Colin Mendelsohn, médico e académico que há mais de três décadas trabalha em cessação tabágica, “ficou bem claro que as proibições não funcionam. Existe hoje um enorme mercado negro e gangues criminosos associados aos produtos de tabaco, além de grandes problemas com a aplicação da lei e de iniciação aos cigarros eletrónicos entre os jovens: de quanta mais informação precisamos para perceber que esta é a abordagem errada?”, referiu.
A partilha de informação e de evidência científica com os decisores políticos e as autoridades competentes tem, pois, um papel decisivo para o robustecimento da qualidade das políticas públicas e para os resultados alcançados. Aliás, como várias vezes foi referido ao longo da conferência, a própria OMS define, na sua Convenção-Quadro para o controlo do tabagismo, estas políticas como uma gama de “estratégias de oferta, de procura e de redução de danos”, comprometendo-se a promover medidas que sejam “baseadas em considerações científicas atuais e relevantes”. O que, apontaram os presentes, não aconteceu até à data – numa altura em que se estimam, em todo o mundo, mais de 112 milhões de utilizadores de novos produtos de tabaco sem combustão.
Se é consensual a defesa que, antes de mais, devem ser seguidas as recomendações da OMS – não começar a fumar e, no caso dos fumadores, parar imediatamente – é também sabido que, não sendo um processo fácil, muitos milhões de fumadores não conseguem atingir esse objetivo – tenham ou não ajuda médica. E, por isso, para todos eles, é necessário encontrar novas alternativas e abordagens focadas na diminuição dos riscos associados ao ato de fumar. A existência de outras alternativas aos cigarros, quando comprovadas pela ciência, demonstrando o seu potencial na redução dos danos, deve, pois, ser tida em conta pelas políticas públicas.
Mais vozes têm de ser ouvidas
Fernando Fernández Bueno, cirurgião oncológico do Hospital Gómez Ulla em Madrid e representante da Plataforma para a Redução de Danos do Tabagismo, apelou na sua intervenção: “Os médicos têm a obrigação de promover a redução de danos. Devemos informar os doentes e instar a OMS a ser ambiciosa e a comprometer-se com medidas inovadoras na luta contra o tabagismo, baseadas na ciência e em experiências como as do Reino Unido e da Suécia. Temos de fazer com que as instituições compreendam que não estamos à procura de um benefício económico, mas sim de um benefício para a saúde.”
Mas, para que o impacto de tais políticas seja real seja concreto e real considera-se neste fórum que é necessário que as autoridades reguladoras incorporem, desde o início, uma comunicação transparente e um diálogo aberto também com os consumidores – mais particularmente, com os fumadores adultos, a quem estas novas soluções, com potencial menor risco, se dirigem. Mas, como lembrou no primeiro dia deste fórum, que deu voz precisamente aos consumidores, Jeffrey Zamora, Presidente da ARDT Iberoamerica (organização que reúne mais de uma dezena de associações latino-americanas que defendem a redução de danos em tabaco), não tem sido possível chegar, por enquanto, a um ponto de encontro que a todos beneficie – como são disso exemplo as reuniões bienais que juntam representantes dos países signatários da Convenção-Quadro da OMS para o Controlo do Tabaco: “A COP10 [10ª Conferência das Partes] decorrerá nos próximos dias 25 e 26 de Novembro, no Panamá. Historicamente, sabemos que o acesso a esta conferência tem sido negada e a presença de consumidores tem sido recusada. Nós devíamos ser autorizados a defender os nossos direitos à redução do risco”.
Por seu turno, Francisco Ordóñez, da mesma associação, defendeu ainda que, nesta reunião as delegações presentes “devem pedir a outros países, como Suécia ou Reino Unido, para partilharem evidência sobre como a abordagem de redução do risco em tabaco está a funcionar com as suas populações”. Afinal, como explicitou Juan José Cirión, representante dos consumidores mexicanos, “os consumidores necessitam de ter acesso a informação, acesso a produtos e acesso à livre escolha”.
Esta é, pois, a oportunidade para definir o que se pretende, em termos de redução de riscos, para próxima década. Gerry Stimson, professor emérito do Imperial College London e co-fundador do Global Forum on Nicotine, referiu na conferência de imprensa dedicada ao debate: “A última década viu mais de cem milhões de pessoas, que não podem ou não querem parar de consumir nicotina, reduzir significativamente os riscos para a sua saúde, abandonando os cigarros combustíveis, que são letais. O que pode ser alcançado nos próximos dez anos? Muito dependerá das palavras e acções daqueles que ocupam os cargos mais altos na formulação de políticas globais. O seu objectivo deve ser o fim do tabagismo – e não uma guerra contra a nicotina, que será tão fadada ao fracasso quanto a guerra contra as drogas. A comunidade de saúde pública deve ser mais ambiciosa nas abordagens que podem ser utilizadas”, referiu.