Movimento 8% reclama investimento urgente na Ciência em Portugal
O Movimento 8% nasceu no ano passado, reagindo aos resultados da taxa de aprovação dos Concursos de Estímulo ao Emprego Científico em Portugal (CEEC): 8,2% na terceira edição. Diversas iniciativas foram desenvolvidas, tendo os porta-vozes do Movimento sido convidados para uma audição na Comissão de Educação, Ciência, Juventude e Desporto da Assembleia da República que se realizou a 2 de junho. Conforme esclarece por e-mail um dos porta-vozes do Movimento, João Filipe Oliveira, investigador auxiliar no Instituto das Ciências da Vida e da Saúde (ICVS), Escola de Medicina da Universidade do Minho, “a petição intitulada ‘Carta aberta por um investimento urgente em Ciência em Portugal’ e lançada no dia 27 de novembro atingiu uma mobilização sem precedentes e alcançou mais de 8.000 assinaturas, ultrapassando as 7.500 necessárias para que o assunto seja levado à Assembleia da República. Entre os subscritores encontram-se diversos investigadores, desde líderes de centros de investigação a alunos de doutoramento e mestrado. A petição foi igualmente subscrita por portugueses não investigadores, cerca de 30% dos subscritores, o que naturalmente representa um enorme reconhecimento pela sociedade civil da importância da Ciência face ao contexto pandémico atual”.
Por outro lado, João Filipe Oliveira recorda que “o Movimento 8% iniciou-se em 2019, de forma inorgânica e espontânea, perante os resultados desanimadores do concurso de emprego científico (8% de aprovação), com o objetivo de alertar para as dificuldades que se vive em Ciência em Portugal. O texto completo da Petição pode ser consultado em https://peticaopublica.com/?pi=movimento8
Quando refere que o movimento teve origem “inorgânica e espontânea” isso significa o quê?
Após os resultados do CEEC 2018, comunicados em novembro de 2019, ficámos estupefactos com a baixíssima taxa de aprovação que obviamente levava a que investigadores de elevado mérito ficassem sem contrato. Em contactos com investigadores que conhecemos, verificámos que a consternação era geral. Surgiu a ideia de criarmos um grupo no Facebook, uma rede social muito utilizada pelos investigadores e sociedade em geral, para partilhar facilmente fotografias que espelhassem essa baixa taxa de aprovação. Rapidamente surgiram imagens de institutos de investigação espalhados por todo o país. O grupo atingiu os 2000 membros em poucos dias. Assim, o Movimento 8% é um movimento apartidário, independente de sindicatos ou associações, que abrange investigadores de várias áreas científicas, de todo o país, continente e ilhas.
Que estudos científicos estão em perigo perante a falta de apoios?
Não podendo precisar estudos específicos, mas virtualmente todos os projetos que foram propostos pelos candidatos ao CEEC ficarão por executar ou serão executados com maior dificuldade. Isto é verdade para todos os níveis de contrato desde os investigadores júnior até aos investigadores sénior. Em relação aos líderes de equipas, o dano deverá ser maior, pois quando o líder fica desempregado todos os investigadores dessa equipa ficam órfãos e são afetados todos os projetos que a equipa leva a cabo.
Acreditam que o facto de o tema ser levado à Assembleia da República chegará para mudar alguma coisa?
Nesta altura não saberemos se mudará, mas esperamos que possa ajudar. Os deputados da Assembleia da República devem supervisionar a ação do Governo, certificando-se de que os Orçamentos do Estado resolvem os problemas do país e previnem o colapso dos sistemas estruturais que preparam o futuro de Portugal. O sistema científico é um dos sistemas vitais para que um país desenvolvido possa prosperar. Penso que os acontecimentos que experienciámos neste ano de pandemia voltaram a lembrar a importância da Ciência para uma sociedade.
O sistema científico é um dos sistemas vitais para que um país desenvolvido possa prosperar. Penso que os acontecimentos que experienciámos neste ano de pandemia voltou a lembrar a importância da Ciência para uma sociedade.
Tentaram pedir audiências aos partidos com assento parlamentar, ao ministro da tutela e ao Presidente da República?
Sim. Nos últimos dias, a carta aberta foi submetida à Assembleia da República e enviada aos senhores Presidente da República, primeiro-ministro, secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, ministro Manuel Heitor, FCT, e individualmente aos deputados dos vários partidos na Comissão Parlamentar para a Educação e Ciência.
Quer salientar alguma das propostas que estão na petição pública?
É urgente um reforço financeiro dos concursos em fase de audiência prévia e em relação aos que estão a ser anunciados para retificar esta baixíssima taxa de aprovação que colocará em causa a sobrevivência do sistema científico. Esse reforço poderá ser feito por alocação de verbas por forma a cumprir o financiamento proposto no Orçamento do Estado, cuja execução fica todos os anos aquém do proposto. Outra opção será a realocação de verbas dentro do orçamento anual da FCT, por exemplo, de concursos nos quais as verbas não tenham sido executadas (como nos casos de investigadores que pontualmente tenham desistido da celebração de contrato).
É urgente um reforço financeiro dos concursos em fase de audiência prévia e em relação aos que estão a ser anunciados para retificar esta baixíssima taxa de aprovação que colocará em causa a sobrevivência do sistema científico.
Que outras iniciativas admitem realizar para alterar a situação?
Neste momento estão previstas reuniões com deputados dos partidos políticos com assento na Assembleia da República.
Vem aí a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia: será uma altura ideal para tirarem partido dessa maior visibilidade internacional para exporem os problemas da Ciência em Portugal?
O ministro Manuel Heitor já começou o périplo internacional para apontar a Ciência e a Inovação como pilares fundamentais da recuperação da Europa no pós-pandemia. Infelizmente, essa mensagem passada ao exterior não tem sido transposta para a realidade do país com medidas concretas para retificar os problemas dos concursos de emprego científico ou de projetos em todas as áreas científicas que são basilares em qualquer sistema científico internacional.
As contas feitas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo ministro titular da pasta, Manuel Heitor, são outras e foram referidas ao Expresso no passado dia 6, incluindo a questão de que metade dos doutorados sem contrato não alcançou o limiar de mérito. Na audição parlamentar em que prestou esclarecimentos, no passado mês de junho, ouvi-o dizer que não era uma questão de mérito porque os 8,7 equivaliam a 17/18 valores: não se importa de explicar por que razão vêm a FCT e o ministro apresentar este argumento?
Essa é uma questão que terá de colocar precisamente ao ministro ou à FCT. Analisei essa questão de mérito com outro exemplo prático num artigo de opinião no Público em que digo, por exemplo, isto: “A parca atribuição de verbas fez com que tenham sido recusados contratos de trabalho por seis anos aos 144 investigadores, cujo mérito do seu currículo e da sua proposta científica foram avaliados com 9,0 ou mais (em 10,0), o equivalente a um aluno que obteve mais de 90% num teste. Este corte cego atinge, entre outros, os líderes de grupos de investigação vencedores de financiamentos internacionais na ordem de centenas de milhares de euros. Atinge também investigadores reconhecidos mundialmente com muitos anos de provas dadas e jovens investigadores que terminaram os seus doutoramentos com destacado mérito.”
A presidente da FCT, Helena Pereira, afirmou ao Expresso que “as possibilidades de integração dos doutorados em Portugal não se resumem a este concurso”. E realça que, por exemplo, no Concurso de emprego Científico Institucional – que deveria ter nova edição este ano e que, ao contrário deste que só confere contratos a termo com duração de seis anos, assegura integração na carreira -, “foram integrados 412 investigadores e, dessas, há ainda 286 posições em processo de contratualização, em concursos que serão abertos pelas instituições”. Está correto?
Em relação aos números não posso confirmar, mas a FCT está na melhor posição para conhecer esses números. Em relação à abertura do CEEC Institucional estava, de facto, prevista a abertura para abril, mas até agora ainda não aconteceu. Simplesmente esse concurso não abriu, sem qualquer explicação pública: https://www.fct.pt/concursos/calendario.phtml.pt
Mas então para quê criar uma série de vias de integração de doutorados e não uma só que garanta integração na carreira? Qual é a vantagem, para a forma ideal de fazer Ciência, de estabelecer contratos a termo que durem seis anos?
Os contratos a termo fazem mais sentido no início das carreiras, pois poderá haver (e é saudável que assim seja) mais mobilidade no percurso do investigador doutorado. Por exemplo, entre instituições de investigação ou que possa ser integrado por uma empresa que procure competitividade através da inovação ou ciência, e mais tarde deseje voltar ao centro de investigação. Os contratos permanentes, integrados numa carreira científica, fazem mais sentido para investigadores que procuram uma consolidação do seu percurso, construindo um percurso de excelência e competitivo. De qualquer forma, estas visões estratégicas requerem discussão alargada que deve ser levada a cabo pela própria Fundação para a Ciência e Tecnologia ou pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), devem procurar entendimento partidário alargado e beber nos documentos produzidos no passado pelas associações de investigadores, comissões especiais criadas pelo MCTES e Manifesto Ciência.
Quem são os principais responsáveis pelo estado a que se chegou na Ciência em Portugal?
Não será fácil apontar 1-2 responsáveis. Parece-nos claro que a aposta urgente na Ciência, com vista a corrigir o subfinanciamento dos concursos ainda em sede de audiência prévia ou a abrir, está dependente deste Governo, mais especificamente do MCTES e Finanças. Para o estado em que estamos contribuíram, sem dúvida, os governos em funções desde a crise de 2008 que infligiram cortes muito drásticos de financiamento aos centros de investigação e Universidades, não tendo os governos seguintes (nomeadamente este ministro que já está no seu segundo mandato) retificado esses cortes nos últimos anos e levando a esta situação insustentável.