Governo francês não resiste a moção de censura: 331 deputados derrubam Barnier
As moções de censura que a aliança de esquerda e a extrema-direita apresentaram em França levaram, esta quarta-feira, à queda do Governo de Michel Barnier – esta foi a primeira vez desde 1962 que um Governo cai em França com um voto dos deputados.
Foram 331 os deputados que votaram a favor da moção de censura apresentada pela Nova Frente Popular contra o Governo de Michel Barnier, um número superior ao da maioria absoluta necessária. Como resultado, o Governo é derrubado e a lei de financiamento da Segurança Social para 2025 é rejeitada.
O primeiro-ministro fez esta tarde campanha pelo “melhor compromisso possível” e a pedir o apoio dos deputados. “Nem tudo está perfeito neste orçamento” admitiu, reconhecendo as “preocupações de muitos territórios”. Mas “esta moção de censura tornará tudo mais sério e mais difícil”, repetiu.
“Tentei enfrentar dentro do Governo apresentando textos financeiros difíceis”, sublinhou Barnier. “Não foi por prazer que apresentei medidas difíceis. Essa realidade permanece aí, não desaparecerá pelo encantamento dos movimentos de censura”, acrescentou.
“Não tenho medo. Raramente tive medo no meu envolvimento político”, acrescentou, sobre a ameaça de censura. “Continuarei totalmente mobilizado e pronto para trabalhar com todos os desejos construtivos deste país” para elaborar um orçamento e “criar um novo impulso para França”.
“Sinto-me uma honra por ter sido o primeiro-ministro de todo o povo francês durante três meses”, disse Michel Barnier no final do seu discurso. “Quando esta missão terminar, talvez em breve, será para mim uma honra ter servido a França e os franceses com dignidade.”
Após a votação, Mathilde Panot salientou que o “Governo Barnier terá desonra e censura”: a líder dos deputados do ‘La France Insoumise’ garantiu que o Governo caído “foi uma provocação” depois da votação na segunda volta das eleições legislativas de 7 de julho último, que colocou na liderança a coligação de esquerda da Nova Frente Popular. “O único soberano numa república é o povo”, continuou, vendo no executivo Barnier o “governo mais efémero de toda a Quinta República”. “O caos não somos nós, é Emmanuel Macron há sete anos”, concluiu.
Já Marine le Pen salientou que “não considero isso uma vitória”. “Tínhamos uma escolha a fazer e a escolha que fizemos foi proteger os franceses”, explicou a líder dos deputados do Rally Nacional (RN), dizendo lamentar ter sido “forçada a somar os seus” votos aos de La France Insoumise”.
“As nossas instituições são feitas de granito”, garantiu Le Pen, questionada sobre um possível aumento dos impostos sem a aprovação da lei financeira até ao final de dezembro. “Haverá uma lei especial que permitirá a continuidade da vida da nação. E depois haverá a nomeação de um primeiro-ministro e ele próprio voltará a trabalhar num orçamento”, declarou, rejeitando “o catastrofismo”.
A queda do Governo minoritário francês de centro-direita de Michel Barnier vai abrir um período de múltiplas incertezas: risco para as taxas de juro, crise orçamental e uma situação política desconhecida.
As consequências políticas
Com a queda do Governo, nos termos da Constituição, o presidente da República francês, Emmanuel Macron, terá de nomear um novo primeiro-ministro. Várias opções se lhe apresentam, todas elas arriscadas.
Depois de ter dissolvido a Assembleia Nacional em junho deste ano, não pode convocar novas eleições legislativas antes de julho de 2025.
Com uma Assembleia Nacional muito polarizada e dividida em três grandes campos – esquerda, centro-direita e extrema-direita – que não conseguem chegar a um compromisso entre si, o risco de uma nova moção de censura é muito elevado.
Macron poderá decidir reconduzir Michel Barnier, que está disposto a fazer concessões para apaziguar a Assembleia Nacional.
O rumor da nomeação do antigo primeiro-ministro e ex-ministro do Interior Bernard Cazeneuve, de esquerda mas anti-Nova Frente Popular (coligação de esquerda que reúne a esquerda radical, os socialistas e os ecologistas), mantém-se, tal como o da formação de um Governo técnico.
Em plena crise política em França, Macron iniciou na passada segunda-feira uma visita de Estado de três dias à Arábia Saudita, um ator regional fundamental com o qual Paris quer intensificar os laços.
As consequências orçamentais
Em todo o caso, será necessário aprovar medidas orçamentais para 2025.
Um ‘shutdown’, uma paralisação administrativa ao estilo americano em que, por exemplo, os funcionários públicos deixariam de ser pagos, é altamente improvável graças aos múltiplos mecanismos da Constituição francesa.
Esta prevê que se o Parlamento não se “pronunciar” dentro de um determinado prazo sobre o orçamento, o Governo pode recorrer a despachos, cujos prazos são, este ano, 5 e 21 de dezembro, segundo um documento da Assembleia. Mas esta solução é, contudo, acompanhada de questões jurídicas que poderão dificultar o recurso aos despachos.
O Governo pode também pedir à Assembleia que aprove antes de 11 de dezembro apenas a parte das “receitas” do orçamento, ou apresentar antes de 19 de dezembro uma lei especial para cobrar impostos, antes de se comprometer com as despesas estritamente necessárias ao funcionamento do Estado, com base nas inscritas no Orçamento do Estado para 2024. França teve precedentes de utilização deste mecanismo em 1963 e 1980.
Seja qual for a via escolhida, coloca-se a questão de saber se um Governo que foi censurado e que deve ocupar-se da gestão corrente consegue manobrar a máquina orçamental.
As preocupações dos mercados
A segunda maior economia da zona euro, a seguir à Alemanha, está atualmente classificada como ‘AA-‘, com uma perspetiva estável, pela agência de notação financeira Standard & Poor’s, que na passada sexta-feira concedeu a França um alívio ao não baixar a sua classificação.
A queda do Governo Barnier preocupa os investidores: imediatamente após o primeiro-ministro francês ter assumido a responsabilidade pelo Governo, o diferencial entre as taxas de juro francesas e alemãs aumentou fortemente nos mercados.
O intervalo entre estas duas taxas, conhecido como “spread” e barómetro da confiança dos investidores na fiabilidade creditícia de França, situou-se em 0,88 pontos percentuais, um nível comparável ao de 2012.
Embora uma descida para negativo das perspetivas da notação soberana de França tenha pouco impacto nos custos de empréstimo do país, uma descida para uma categoria inferior, associada à queda do Governo sem orçamento, poderá aumentar as tensões.
Michel Barnier alertou para “graves turbulências nos mercados financeiros”, numa altura em que as taxas de juro francesas são mais elevadas que as de Espanha e Portugal e próximas das da Grécia, apesar da sua classificação mais baixa.