“Fundamentalista e desequilibrada”, “passo na mudança de mentalidades” ou alerta para o “comércio ilícito”? Governo quer mudar a lei do tabaco mas especialistas dividem opiniões

O Governo quer alterar as regras para o consumo de tabaco com um objetivo muito claro: uma “geração sem tabaco até 2040”. Zonas proibidas ou limitação dos pontos de venda são algumas das propostas avançadas por Manuel Pizarro, ministro da Saúde, que têm causado alguma polémica entre os vários setores afetados no curto prazo. Depois de aprovadas pelo Parlamento, o Governo pretende que estas proibições possam entrar em vigor a partir do dia 23 de outubro deste ano.

O Governo sublinhou, a fechar, que cerca de dois terços das causas de morte nos fumadores são atribuíveis ao consumo do tabaco e, em média, um fumador vive menos 10 anos do que um não fumador. O tabaco é o único fator de risco comum a quatro das principais de doenças crónicas: cancro, doença respiratória crónica, diabetes e doenças cérebro-cardiovasculares. Estima-se ainda que, em 2019, tenham ocorrido, em Portugal, cerca de 13.500 óbitos atribuíveis ao tabaco.

Dessa forma, procurámos a opinião de vários ‘atores’ a quem a nova lei pode significar mudanças.

Contactada pela ‘Executive Digest’, a APHORT – Associação Portuguesa de Hotelaria Restauração e Turismo – sublinhou estar expectante sobre o alcance da proposta legislativa do Governo.

“A APHORT não tem verificado, até ao momento, grandes dúvidas ou receios por parte dos seus associados em relação às novas alterações à lei do tabaco”, afirmou, em exclusivo à ‘Executive Digest’, a direção da associação. “A maior parte dos estabelecimentos, ao longo dos últimos anos, já encontrou formas de se ir adaptando e de encontrar soluções que lhes permitissem manter a sua atividade em cumprimento com aquilo que a lei exige”, garantiu.

O projeto pode ainda sofrer alterações, pelo que impera a prudência. “Aguardando pela redação final do documento para se poder pronunciar, faremos uma melhor avaliação quando conhecermos o texto que seguirá para o Parlamento”, garantiu o responsável.

A AHRESP – Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – considerou as alterações “profundas que consideramos fundamentalistas e desequilibradas”. “A associação jamais menosprezou os malefícios do tabaco, no entanto, considera que a lei que hoje existe já é bastante restritiva quanto ao fumo em locais passíveis de, efetivamente, prejudicar a saúde de outros, que não dos próprios fumadores”, sublinhou em comunicado a associação.

“Há que atender a que não estamos perante uma substância ilícita, fazendo o ato de fumar parte da liberdade de cada indivíduo, pelo que a imposição de medidas restritivas e proibitivas não devem, nem podem, ser o caminho. Ao invés, a solução deverá passar pelo investimento em formação, educação e sensibilização, a par do apoio das entidades de saúde para quem pretenda deixar de fumar (consultas, comparticipação de medicamentos para cessação tabágica)”, atirou, garantindo que qualquer alteração tem de ser feita “de forma justa e equilibrada”.

Tabaqueira alerta para o comércio ilícito

A Tabaqueira, por seu turno, alertou que “há que considerar as potenciais consequências negativas decorrentes de medidas com um alcance bastante vasto nas dimensões económicas e sociais, ainda não quantificadas”, sublinhando estar a criar-se “um cenário propício ao comércio ilícito”.

No entanto, a atuação do Governo não escapa sem reparo. “As matérias que proponham mudanças de fundo, de pendor restritivo, devem ser alvo de consulta prévia, debate alargado e diálogo participado com todas as partes impactadas. Como tal, estamos, como sempre estivemos, totalmente disponíveis para participar ativamente neste processo”, indicou a Tabaqueira, salientando que a nova proposta é ‘prematura’.

“A proposta de Lei aprovada não tem em consideração e antecipa-se ao processo de revisão da diretiva europeia de produtos de tabaco e respetiva consulta pública, em curso, desencadeado pela Comissão Europeia, que procede à avaliação do quadro legislativo para o controlo do tabagismo – incluindo a regulamentação dos produtos, a publicidade, a promoção e o patrocínio, no contexto mais vasto das políticas associadas ao controlo do tabagismo”, finalizou a empresa.

Já o presidente da Associação Portuguesa de Bares, Discotecas e Animadores, Ricardo Tavares, apontou que as mudanças terão mais impacto nos clientes, já que este é um “complemento de negócio” dos empresários. “Isto é um complemento. Para mais de 90% dos empresários a venda de tabaco é um complemento do negócio, muitos nem têm percentagem da venda”, referiu. “Acabo por achar que são medidas soltas, acabam por não ter grande impacto na vida dos consumidores”, assinalou.

“Luta com 80 anos”: AIT foi uma das pioneiras no combate ao tabaco em Portugal

A Associação Internacional da Temperança vem travando uma luta contra o tabaco desde 1967 e é uma das vozes mais ativas a nível nacional na prevenção tabágica. Basta recordar o pioneirismo de Samuel Ribeiro, que iniciou a implementação do Plano de 5 Dias para Deixar de Fumar, em Coimbra, em 1967. Desde então foram realizados mais de 4 mil planos, abrangendo mais de 60 mil fumadores.

“Fomos dos primeiros a levantar a voz e pôr em causa o tabaco”, lembrou, em exclusivo à ‘Executive Digest’, o dr. Rúben Nóbrega, diretor da instituição, para quem a nova lei do tabaco mais não é do que “uma questão de mudança de mentalidades”. “No que vi da lei, pretende-se chegar a 2040 com uma nova geração sem tabaco… desde o início da nossa luta já vão 80 anos”, apontou o especialista.

A proposta do Governo “é mais um passo mas convém não esquecer os passos que já foram dados. Anteriormente, as pessoas não queriam deixar de fumar dentro de espaços fechados. Depois não quiseram deixar de fumar em espaços de alimentação. Demora o seu tempo”, referiu, manifestando um apoio total à intenção do Executivo.

“A prevenção é a melhor arma. Todos os estudos nessa área são os que apontam melhores resultados. Os estudos dizem-nos que se a menor exposição, ou mais tardia, ao tabaco provoca uma maior probabilidade de termos mais indivíduos sem tabaco. É mais um passo mas temos de continuar a dar, mas sem demorar tanto tempo”, referiu o dr. Rúben Nóbrega.

“Nos últimos dois anos, perdemos muita gente devido a morte precoce só com doenças associadas ao tabaco. Este é um passo importante. Estatisticamente, um fumador tem menos 10 anos de vida”, apontou, sublinhando que o Governo tem de manter “os passos tranquilos, calmos, mas no sentido certo. E se possível a outra velocidade”, referiu.

Afinal o que muda na lei do tabaco?

Passa a ser proibido fumar ao ar livre?

Em alguns espaços, sim. De acordo com a proposta de lei do Governo, passa a ser proibido fumar ao ar livre dentro do perímetro de estabelecimentos de saúde, dos locais destinados a menores de 18 anos, dos estabelecimentos de ensino, incluindo o ensino superior e dos centros de formação profissional, bem como dos recintos desportivos, piscinas públicas e parques aquáticos.

E vão terminar os espaços para fumadores?

Não completamente. Vai ser instituída a proibição da criação de novos espaços reservados a fumadores nos recintos onde já é proibido fumar nas áreas fechadas, excetuando-se os aeroportos, as estações ferroviárias, as estações rodoviárias de passageiros e as gares marítimas e fluviais. Os recintos que possuem estes espaços, nomeadamente os estabelecimentos de restauração e similares, poderão mantê-los até 2030.

E nas esplanadas de restaurantes e bares?

O Governo pretende a proibição de fumar nos restaurantes, bares e espaços de dança e similares, quer no interior quer nas esplanadas ou pátios exteriores que estejam cobertos ou delimitados por paredes ou outro tipo de estruturas, fixas ou amovíveis, de pátios interiores, de terraços e de varandas, bem como junto de portas e janelas destes estabelecimentos.

E nas praias?

Vai depender dos concessionários. “Estes poderão definir que é proibido fumar nas suas praias”, indicou Margarida Tavares, secretária de Estado da Promoção da Saúde.

O que muda nos pontos de venda de tabaco?

Vai ser estendida a proibição da venda de tabaco à generalidade dos locais onde é proibido fumar – restaurantes, bares, salas e recintos de espetáculos, casinos, bingos, salas de jogos, feiras e exposições -, redefinindo-se igualmente os espaços onde é permitido a instalação de máquinas de venda automática.

Estas devem localizar-se a mais de 300 metros de todos os estabelecimentos de ensino. As alterações às proibições de venda de tabaco vão produzir efeitos a partir de janeiro de 2025. Também vai deixar de ser possível instalar máquinas automáticas de venda de tabaco convencional e aquecido nos festivais de música.

A venda automática é ainda possível em estabelecimentos especializados de comércio a retalho de tabaco e aeroportos, estações ferroviárias, rodoviárias de passageiros e gares marítimas e fluviais. Os operadores têm de se adaptar às alterações até janeiro de 2025.

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