EUA: Os impactos, cenários e ondas de choque da eleição que “vai marcar o ritmo do mundo nos próximos anos”, segundo um politólogo
No dia em que os norte-americanos se preparam para eleger o próximo presidente, a Europa observa atentamente os possíveis cenários e consequências desta decisão. Com o impacto das escolhas políticas dos Estados Unidos a ressoar em todo o mundo, as eleições presidenciais representam uma encruzilhada em várias áreas: desde a política externa e as alianças internacionais até ao impacto cultural e ideológico que se faz sentir muito para lá das suas fronteiras. O professor José Adelino Maltez, especialista em ciência política, partilha a sua visão sobre o significado desta eleição para os EUA e o mundo, analisando as particularidades do sistema político norte-americano e o papel do presidente na condução do país. Adelino Maltez considera que, apesar das figuras dos candidatos, os EUA operam, de certa forma, num “piloto-automático” sistémico, no qual o equilíbrio de poderes atenua a imprevisibilidade.
Nesta entrevista, Maltez explora ainda os possíveis efeitos globais de uma vitória de Trump ou de Kamala Harris, a candidata democrata, cada um com potenciais repercussões culturais e ideológicas distintas.
Temos hoje as tão antecipadas eleições presidenciais nos EUA. O que podemos esperar? Qual os cenários possíveis em cada caso?
É sempre complicado falar sobre os destinos do mundo [risos]… O podes dos EUA no mundo, em termos macro, é a superpotência que resta que vai ter a vida definida por microeleições. É difícil determinar como é que estas especificidades federais vão marcar o jogo. É preciso conhecer em micro, o que é muito difícil. E até de acordo com todos os estudos e sondagens, fica uma incógnita, não é?
Mas são eleições decisivas para marcar o ritmo do mundo nos próximos anos, e portanto, qualquer um dos candidatos vai querer naturalmente defender papel liderante dos EUA. E isso vai levar a que se perceba que os Estados Unidos, sobretudo quando são uma superpotência, têm uma situação de piloto-automático. Não é bem a pessoa do Presidente que move as coisas só. É sobretudo o sistema de decisão, e esse funciona em piloto-automático: mas sistémico, não é um acaso. Há uma postura. Mas este piloto-automático será determinante. Estados com esta complexidade é assim. Até nós, a certa altura não há Presidente nem primeiro-ministro que altere o essencial da conduta anterior. Entramos numa rotina e como aquilo [nos EUA] é um sistema de ‘checks-and-balance’, é um sistema onde a divisão de poderes leva a que entrem em compensação (e não necessariamente em conflito). E é o equilíbrio daí resultante que, ao mesmo tempo que é imprevisível, dá mais segurança.
Mas no essencial acho que os EUA, seja qual for o rumo que se decida, vão continuar como são e como são necessários. Não vai haver alterações dramáticas da pilotagem, mesmo com Trump.
Mediante um ou outro candidato que ondas de choque e impactos podemos esperar pelo mundo? Em cada um dos casos, veremos mudanças efetivas?
Todo o mundo vai refletir este confronto. Todo, mesmo. E será mais visível sobretudo se for o Trump, já que é uma espécie de regresso, e tem uma influência ideológica em todo o mundo. Ele faz parte da alteração do modelo que alguns chamam conservador, e que a esquerda diz que é fascista e direitista, mas não é bem assim, é uma alteração valorativa, que aliás ainda há dias aconteceu com o Partido Conservador Britânico. Ou seja, o inimigo é o ‘wokismo’, que os americanos inventaram. E isto vai dar entusiasmo a todos os movimentos ideológicos e políticos que estão contra o movimento ‘woke’.
As alterações não são tanto a nível das forças e partidos políticos, é acima de tudo a nível do ambiente cultural: do jornalismo, das ideias, da política interna e externa. E aí Trump pode ter uma importância ‘excecional’ no sentido de alterar o confronto típico do Ocidente.
Podemos correr o risco de estas categorias de esquerda e direita serem ultrapassadas. Trump é os valores rurais norte-americanos, e o receber do voto do velho operariado do século XIX e XX. Vai alterar estes conceitos e isso faz com que a maior parte dos comentários e análises deixem de fazer sentido, com esta visão esquerda-direita.
Olhamos com curiosidade, embora quer republicanos, quer democráticos [ou democratas]. Estamos a falar de partidos antigos, um do Lincoln, e o Democrata vem de 1828. São veneráveis instituições que já passaram muitas crises, e vão degluti-las e virá-las.
Agora, os democratas têm uma mulher candidata. E pode ser uma revolução simbólica também. Trump é uma espécie de revolução de regresso aos valores rurais e do capitalismo enraizado americano. Kama Harris é uma revolução porque também tem um discurso e corresponde a um perfil e representatividade de uma potencial nova esquerda.
São os dois candidatos interessantes em termos de mudança. Porque vai haver mudança num lado ou no outro.
No caso de vitória de Kamala Harris, pode dar força a alguns ‘ventos de mudança’ na Europa?
Sim, sim sem dúvida. Na questão de continuação como superpotência são iguais. Mas são atrações diferentes, Harris e Trump. Mas Kamala Harris terá importância também no sentido do repensar de uma família política global, neste caso o centro-esquerda.
Muitos dos centristas poderão invocar que é a família deles, e está tudo interessado. Há quem veja isto como o campeonato mundial de futebol… e não é bem assim. Quem perde aqui é uma visão tradicional da direita americana, conservadora, ocidentalista, porque foi alterada por dentro num sentido diverso, mas esta coisa de chamar fascista é não conhecer o que é um americano. Há quase um regresso às origens da Boston Tea Party. Já tinha havido essa vaga, e agora volta a existir.
Agora, quem cai no engodo de que este Trumpismo não é fiel ao constitucionalismo norte-americano, e que vai haver um poder personalizado… Não, não vai acontecer nada disso.