“Estamos no fio da navalha na dependência externa”: especialista alerta para o risco de Portugal não ter cereais para fazer pão

Portugal tem um problema crónico de falhas alimentares, bem substanciado pela necessidade imperiosa de contar com os mercados externos para abastecer o país com os produtos mais básicos. Em particular os cereais. De acordo com dados mais recentes compilados na Pordata, em 2021, Portugal importou 12.127,4 milhões de bens agroalimentares face aos 8.876,2 milhões importados em 2014.

Desde 2018 que o Governo está alertado para o problema mas, desde então, pouco (ou nada…) foi feito, reconheceu à ‘Executive Digest’, José Pereira Palha, presidente da ANPOC – Associação Nacional de Produtores de Proteaginosas, Oleaginosas e Cereais, que traçou um quadro muito limitado na produção nacional mas, sobretudo, a incapacidade para resolver uma carência que, explicou, “vem desde os Descobrimentos”.

“Na área que represento, que são os cereais, com o trigo mole (que serve para fazer pão), o trigo duro (para fazer massas) e a cevada dística, utilizada para fazer cerveja, em termos de cereais para alimentação humana importamos um pouco mais de 90%. Depende dos anos, há anos piores, há anos menos maus, mas sempre acima de 90%”, frisou o especialista.

“Isso levou a que, em 2018, tivesse sido aprovada uma resolução em Conselho de Ministros, um documento de estratégia nacional para a promoção da produção de cereais, que incluíam 17 medidas que deviam ser implementadas para aumentar o nosso grau de autoprovisionamento do arroz, do milho, dos cereais de outono/inverno e dos trigos. O objetivo era chegar ao autoprovisionamento de 20% até 2025 com a implementação daquelas medidas. Agora, infelizmente, o que acontece em Portugal é que há muitas boas intenções, mas depois os Governos ‘esquecem-se’ e as resoluções de Conselho de Ministros não têm validade nenhuma”, explicou José Pereira Palha.

E em que consistiram as medidas?

“Para propor uma estratégia nacional e um plano de ação para a promoção do desenvolvimento da cultura e produção nacional de cereais” e assim combater a dependência externa. Pode consultar o plano do Governo aqui.

“Neste momento, estamos exatamente como estávamos porque tivemos dois anos consecutivos de seca, com produtividades baixíssimas. A guerra colocou os custos de produção a preços absurdos, especialmente os fertilizantes, a energia e os combustíveis. Isso afetou negativamente a nossa ambição. Mas sobretudo porque essas medidas não foram de facto implementadas”, lembrou o responsável do ANPOC.

Para ser mais preciso, foram dados passos nesse sentido, mas muito curtos, e sobretudo do lado da produção.

“Havia uma parte das medidas que dependia da produção, a mais importante a criação de uma marca para valorização da produção nacional, isso de facto aconteceu. Para dar ordem de grandeza, começámos em 2017, experimentalmente, quando comercializámos 400 toneladas de um cereal produzido em Portugal, certificado, totalmente rastreado. Criámos em 2018 a marca ‘Cereais do Alentejo’ e hoje comercializamos mais de 8 mil toneladas com este selo.”

“Não temos condições de produção em quantidade, devido ao nosso clima mediterrânico e também por causa dos solos – o trigo em Portugal em sequeiro, num ano bom, temos expectativa de produção de 2 toneladas. Em França, no vale de Paris, que também não é regadio, a expectativa de produção são 10 toneladas, cinco vezes mais. Mas tem menos qualidade do que o nosso, especialmente tratamentos: têm fugicidas, que nós não temos, muitas vezes a colheita é feita com tempo húmido e chuvoso, o que afeta a qualidade, com contaminações, com microtoxinas.”

“Isso cá não temos, por isso a nossa qualidade é melhor e é valorizada pela indústria. Com a criação da marca, tentámos que o consumidor percebesse que o nosso produto era melhor, e com isto afastar-nos um pouco da produção de commodities, que é o que acontece nos cereais. E como nós temos condições de produção muito piores do que os nossos concorrentes de outras partes do mundo, a única hipótese era valorizar pela qualidade. E com isso temos tido grande aceitação por parte de grandes indústrias.”

Desde então, o Governo colocou as medidas na gaveta.

“Outra proposta importante que depende de nós é a criação de uma organização interprofissional dos cereais, como existe no arroz, no azeite e numa série de países da Europa também nos cereais. Inclusive fazem campanhas de promoção da alimentação saudável.”

“Havia outras medidas que dependiam do Governo: por exemplo, facilitar o licenciamento de pequenas barragens com vista à rega. Há pouco dizia que, num ano bom, temos expectativa de produção em sequeiro de 2 toneladas, mas com muito pouca água podemos ter 5 toneladas. E é mesmo muito pouca água. Para lhe dar uma ordem de grandeza, o tomate de indústria, que é uma cultura de primavera/verão e que toda a água tem de ser artificialmente colocada, estamos a falar de uma utilização da água por hectare de 7 mil metros cúbicos. Nos cereais de outono/inverno, como há mais água, com apenas mil metros cúbicos conseguimos passar de 2 para 5 toneladas aplicando água na altura chave. Este tipo de cultura multiplica por metro cúbico utilizado, é talvez das culturas com maior rendimento por metro utilizado. Só que é uma enorme dificuldade burocrática a construção de pequenas charcas, pequenas barragens.”

E o que justifica esta falta de ação a nível governamental?

“Há uma série de medidas que não saíram do papel porque, entretanto, caiu o primeiro Governo de António Costa, depois um segundo Governo, e o que temos assistido, nos últimos cinco anos, em particular com esta ministra, foi ao total desmantelar do Ministério da Agricultura – tudo o que funcionava mal começou a funcionar ainda pior. Isto tinha sido uma ideia do dr. Capoulas Santos, que depois perdeu ânimo com os sucessivos Governos. Faz lembrar o ditado ‘Só se lembram de Santa Bárbara quando faz trovões’ e só na pandemia, em que havia o risco iminente de faltar matéria-prima para fazer pão é que se voltou a falar no assunto.”

A situação em Portugal está muito longe de ser perfeita, explicou José Pereira Palha.

“Estamos totalmente dependentes e temos feito muito pouco para lidar com isso. Há uma outra situação importante, por exemplo, a China, tanto o maior produtor como consumidor a nível mundial de cereais tem stock para quatro anos de utilização. É também por isso que os preços no mercado mundial variam tanto, porque a China joga com os seus stocks e vai aumentando ou descendo o preço de acordo com os seus interesses.”

Para comparar com Portugal, temos armazenagem em stock para duas semanas. E já tivemos, nos últimos dois anos, vários momentos em que o risco de não haver matéria-prima era grande. Como temos um stock tão curto, e como produzimos pouco em Portugal e não temos capacidade de armazenagem, houve ali um risco de não haver matéria-prima para a moagem. Estamos totalmente ‘no fio da navalha’ em termos de dependência externa.”

O problema, referiu, não é de hoje. Vem mesmo de há séculos.

“A nossa dependência vem desde sempre. Desde os Descobrimentos… é uma característica portuguesa. O nosso clima e solos não nos permitem ser autossuficientes. Mesmo no Estado Novo, com campanhas de cultura intensas, a célebre campanha do trigo, com incentivos enormes, o máximo que conseguimos ser 70% autossuficientes. Hoje em dia, com o mercado global, a facilidade de comprar em outras paragens, e com a volatilidade e baixa produtividade desta cultura, foi perdendo cada vez mais área e só não perdemos mais porque a tecnologia e ciência permitiram que com menos área aumentar a produção”, concluiu o responsável.

E de onde vêm os cereais importados por Portugal?

No que diz respeito ao trigo, por exemplo, segundo dados de 2023 da ACICO (Associação Nacional de Armazenistas, Comerciantes e Importadores de Cereais e Oleaginosas), a Ucrânia é o principal fornecedor de Portugal, com 774,13 milhões de quilos, seguido pelo Brasil, com 596,11 milhões de quilos. Por último, o Canadá, com 179,65 milhões de quilos – num total de 2.117 milhões de quilos importados.

E no caso do trigo mole, necessário para fazer pão, França é o principal mercado das compras nacionais, com 559,21 milhões de quilos importados, seguida pela Ucrânia (162,49 milhões) e Alemanha (159,88 milhões). Ao todo são importados 1.414,89 milhões de quilos.

O trigo duro – utilizado para fabrico de massas e esparguete, por exemplo – chega-nos de Espanha, com 46,93 milhões de quilos, seguido do Canadá (36,67 milhões) e França (15,91 milhões), num total de 128,76 milhões de quilos estrangeiros que chegam ao nosso país.

Pode consultar todos os dados das importações nacionais de 2023 COMÉRCIO INTERNACIONAL – IMPORTAÇÕES 2023.

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