Entrevista a Cristina Rodrigues, Capgemini Portugal: «Na distância física também é possível desenvolver confiança»

Há dois anos à frente da Capgemini Portugal, Cristina Rodrigues – a única mulher a liderar uma consultora em Portugal –, defende o foco e a excelência, para se continuar a liderar, a prazo.

A incerteza é uma variável de peso na equação do futuro, não nega, mas isso não a impede de estar confiante. E muito menos de ajustar e redefinir uma estratégia que quer vencedora. Assim que a pandemia irrompeu, a única mulher a liderar uma consultora em Portugal tratou de proteger o seu activo mais valioso – as pessoas – com a mesma urgência com que reinventava a relação de proximidade com os clientes, para que nenhuma das suas novas exigências ficasse sem resposta. Cristina Rodrigues, CEO da Capgemini Portugal, explica porque têm sempre um lado positivo as mudanças de paradigma, e porque deve o foco apontar para «o que realmente importa e traz resultados a prazo».

Completou dois anos à frente da Capgemini Portugal. Que balanço faz?
Dois anos intensos, extraordinariamente preenchidos, mas com um balanço extremamente positivo. Há dois anos iniciávamos um caminho que decidi devia assentar em três pilares essenciais: pessoas, cultura e negócio. Embora todos sejam críticos para o nosso sucesso, e parte de um mesmo ecossistema, acho que o que mais sofreu uma transformação foi o pilar das pessoas. Criámos uma política nova de trabalho remoto, que se veio a revelar muito útil desde Março deste ano, modernizámos e flexibilizámos a nossa política de dress code, concorremos à distinção de Great Place to Work, e conquistámos o 9.º lugar, entre tantas outras iniciativas.

O que mudou desde então na filosofia e estratégia da empresa?
Apostámos fortemente num ambiente de trabalho de excelência, através da criação e divulgação de uma cultura com elevados níveis de performance, dinâmica, inovação, comunicação positiva, respeito e confiança de e entre todos os nossos colaboradores. Todos estes princípios faziam já parte da dinâmica orgânica do Grupo Capgemini desde a sua criação, mas no meio das inúmeras tarefas e da azáfama diária, é muito importante relembrá-los, vivê-los e revivê-los. Na Capgemini Portugal criamos e dinamizamos várias iniciativas e programas, locais ou globais, que traduzem os nossos valores e que se focam essencialmente nas pessoas. Falamos de iniciativas como seja de partilha de conhecimento, nomeadamente a criação das IT Mondays (Inspirational Talks on Mondays), de aprendizagem e desenvolvimento, através do lançamento de uma plataforma de e-learning, de um curso de três meses designado por “Connected Manager” para desenvolver ou melhorar as competências das nossas pessoas, em dimensões como “Liderança de Pessoas”, “Feedback”, “Diversidade e Inclusão”, ou até mesmo de inovação, com o programa “Hands-On” no qual se trabalham as áreas de employee/customer experience, robótica e inteligência artificial.

Este foco nas pessoas, o nosso principal e mais valioso asset, e no seu desenvolvimento, fá-las sentirem-se cada vez mais relevantes, integradas numa organização que as reconhece na sua individualidade e na sua performance, pelo que facilmente traduzem as suas experiências e conhecimento em soluções diferenciadoras e de valor para os nossos clientes.

Como tem sido a experiência de ser a única mulher à frente de uma consultora em Portugal, mas também dentro do grupo?
Desafiante e gratificante, mas não de todo por ser mulher. O nível de exigência, de profissionalismo e, principalmente de resultados, não mudou por causa do meu género. Felizmente já fizemos um longo caminho nesta área, e embora a visão tradicional de um líder continue, ainda, muito associada a um comportamento tipicamente masculino (ambição, força, propensão ao risco, etc.), assistimos já a grandes mudanças. Dentro do Grupo Capgemini há muito que trabalhamos para que o número de mulheres neste sector seja significativamente maior e a todos os níveis, não apenas no topo. Por isso mesmo criámos, em 2012, o programa Women@Capgemini, que define orientações para um maior equilíbrio de género em todo o Grupo. Este programa reforça que, enquanto mulheres, trazemos uma perspectiva única e diferente na interpretação dos desafios dos negócios, baseando-se no princípio fundamental de “competências semelhantes, oportunidades iguais”.

Completou este segundo ciclo já em tempos de pandemia. Como lidou a Capgemini Portugal com o primeiro impacto da COVID-19?
A realidade com que nos deparámos no início de Março foi nova, violenta para todos, e apanhou-nos, de certa forma, de surpresa. Mesmo ao ouvirmos todas as notícias do que estava a acontecer em Wuhan, na China, creio que muitos de nós nunca pensaram que seria uma realidade que nos batesse “à porta”, e muito menos com a severidade com que chegou. Felizmente, e porque a evolução dos métodos de trabalho também assim o exige, já tínhamos uma política de trabalho remoto em pleno funcionamento, com colaboradores a trabalharem dois dias por semana em casa, pelo que a mudança de um modelo físico, para um remoto foi quase que imediata. Contudo, para além da preocupação com a saúde e segurança dos nossos colaboradores – e depois de assegurada a continuação da prestação de serviços a todos os nossos clientes, foi ainda necessário manter o seu bem-estar psicológico e emocional. Do lado da Capgemini, já há muito que toda a nossa rede e os nossos equipamentos nos permitem a mobilidade total, até porque o nosso modelo de prestação de serviços inclui clientes no mundo inteiro.

A nossa experiência e as lições que fomos aprendendo ao longo do tempo, permitiram-nos ainda auxiliar alguns clientes no seu momento de transição e, dentro do contexto, tudo correu muito bem.

Como está organizada a equipa, em termos de trabalho presencial e remoto?
No presente, e praticamente desde meados de Março, continuamos com cerca de 95% dos nossos colaboradores a trabalharem totalmente de forma remota. Existe um número muito limitado de clientes que pediu o regresso das equipas aos seus escritórios, e somente as que têm funções de PMO, ou seja, aquelas que exigem mais a necessidade de presença física. Nos nossos escritórios temos um número muito reduzido de pessoas, sendo na sua maioria afectas aos órgãos de gestão, equipa comercial e áreas de suporte.

Obrigou a redefinir a estratégia?
A pandemia SARS-CoV2 veio mostrar- -nos, a todos, que o nosso dia-a-dia pode mudar muito rapidamente e de forma brutal, e creio que o principal impacto se verificou, sobretudo, ao nível dos modelos de trabalho. Esta mudança repentina trouxe-nos obviamente novos desafios: manter equipas motivadas e produtivas, criar planos de formação e de desenvolvimento adaptados a esta nova realidade, assegurar a entrega de todos os compromissos assumidos com os nossos clientes, promover e desenvolver as condições técnicas e de segurança no acesso remoto, uma comunicação mais permanente e assertiva e cultivar laços de confiança e proximidade. Claro que também nos trouxe grandes desafios ao nível dos clientes, já que estávamos todos focados em salvaguardar a saúde e segurança das equipas, deixando para segundo plano os investimentos em novas soluções.

Esta adaptação teve impactos na estratégia que tínhamos definido, visto que o modelo operacional teve de ser revisto e ajustado. Se não estamos todos na mesma sala a discutir algum tema, temos de encontrar formas e ferramentas para o conseguirmos fazer, para alcançar os mesmos, ou até melhores, resultados. Se os nossos clientes não estão disponíveis para se sentarem connosco à volta de uma mesa para discutir temas de transformação, e consequentemente de investimentos em novas soluções, de que forma é que conseguimos manter os níveis de intimacy, mostrando-lhes que o seu parceiro continua activo e disponível para os ajudar nos seus caminhos de inovação? O mais importante para nós é não esquecer que qualquer estratégia deve reflectir uma visão futura do negócio que pretendemos desenvolver e que o futuro precisa de ser sempre melhor e mais sustentável do que o passado. É por isso importante focar no que realmente importa e nos traz resultados a longo prazo.

Até que ponto foram afectadas as relações com os clientes sedeados no exterior?
A partir de Portugal, tanto do nosso escritório de Lisboa como no de Évora, há muito que trabalhamos com equipas e clientes internacionais, pelo que é um modelo que já nos é muito familiar. Alguns destes clientes faziam questão de ter as equipas presentes, nem que fosse de 15 em 15 dias, já que isso melhora a relação de confiança e a segurança no trabalho entregue, permitindo igualmente uma mais fácil discussão de ideias, de novas soluções, organização e ajuste de planos quando toda a equipa está na mesma sala. Com esta nova realidade, todos nós tivemos de nos adaptar e deixámos de ter esta presença mais assídua. Temos plena consciência que as relações têm tendência a mudar, porque não temos a possibilidade de conhecermos tão proximamente os nossos interlocutores nas pausas para um café, durante um almoço, ou até em confraternizações ao final do dia. Foi necessário adaptar as rotinas garantindo a segurança e a saúde das nossas equipas nesta nova realidade que trouxe tantas mudanças abruptas. Mas é importante estar atento a outros paradigmas e aproveitar o que podem ter de positivo, descobrindo que na distância física também é possível desenvolver transparência e confiança, por exemplo, assim como continuar a aprender com os desafios diários.

Em que sentido aponta a empresa para fazer frente à crise nacional e global que se vive?
É muito difícil, para não dizer impossível, fazer quaisquer previsões porque dependem de factores que não controlamos, mas antes de acções dos governos e dos comportamentos que os cidadãos adoptem. Olhando para a nossa história mais recente, esta não é a primeira crise que vivemos. Para não irmos mais longe, ainda hoje vivemos os impactos da crise de 2008 e o seu legado de precariedade e iniquidade. No entanto, a história também prova que as crises geram oportunidades. Pensemos na pandemia de 1918, muito semelhante à que hoje vivemos, a que se seguiu uma recuperação da economia extremamente rápida. Em economias abertas como as nossas, os efeitos negativos da pandemia fazem- -se sentir fortemente em sectores mais dependentes do consumo, da mobilidade das pessoas, da importação de matérias primas e as consequências negativas são muito relevantes e impactantes. No entanto, espera-se, e quero acreditar, que as empresas de tecnologias de informação constituam uma importante alavanca nesta recuperação, através das soluções que já têm desenvolvidas em termos de canais digitais, cibersegurança, cloud, estratégias pensadas, e que facilmente podem ser colocadas em prática por empresas que procuram a recuperação através da reinvenção.

Até ao final do ano, faz sentido ajustar a estratégia?
Acredito que uma boa estratégia tem de ser simples, mas muito bem estruturada. Simples, para que seja de fácil compreensão e bem entendida por todos. Bem estruturada porque precisa de objectivos concretos, de indicadores e iniciativas bem definidas, e com resultados que sejam claramente mapeados. Se este exercício não for bem pensado e concretizado, pode colocar em risco aquela estratégia, já que passamos a ter temas demasiado abstratos, logo mais permeáveis a diferentes percepções individuais. Contudo, se em vez de generalidades e abstrações construirmos acções práticas, simples e bem definidas, incorporadas no dia-a-dia da empresa, e em que todos sabem o que precisam alcançar e como, não apenas a estratégia é mais facilmente implementada e como será mais bem integrada e aplicada por todos. Uma das principais características da definição estratégica, ou planeamento, uma vez mais relembrada por esta pandemia, é a flexibilidade, ou seja, a capacidade de a nossa estratégia se adaptar às mudanças. Se perante variáveis imprevisíveis não tivermos a flexibilidade de rever, ajustar e, potencialmente, mudar, corremos o sério risco de não sermos sustentáveis.

No que ao sector das tecnologias diz respeito, e à consultoria nesta área, como perspectiva que evolua por entre a pandemia?
Há pouco tempo lançámos o estudo “Smart Cities – Putting the citizen at the center of smart city initiatives” onde se debate muito a temática da tecnologia ligada às cidades inteligentes e com uma visão ainda algo futurista em alguns aspetos. Creio que estamos perante uma encruzilhada. Podemos manter-nos no caminho da revolução industrial, a evoluir e a consumir cada vez mais os recursos do planeta; ou podemos repensar o que temos construído nos últimos anos, aprender com essas lições e repensar acções futuras. Actualmente assistimos à conjugação de muitas tecnologias como a IoT, Big Data, 5G, automação, cloud, e até já temos a telemedicina que se desenvolveu e generalizou com a pandemia e a necessidade de os pacientes continuarem a manter contacto com os seus médicos.

Ao aplicarmos estas diferentes tecnologias nas cidades, os impactos serão visíveis ao nível da gestão dos transportes e da mobilidade, na segurança dos cidadãos, no desenvolvimento sustentável, através da optimização de recursos naturais e energéticos, na gestão de tráfego, no tratamento de resíduos, entre outros. A pandemia veio, sem dúvida, impulsionar este paradigma urbano de desenvolvimento económico acelerado com perda de qualidade de vida para o cidadão, e uma pressão crescente nas infra-estruturas, na dinâmica social e, claro, no ambiente. A pandemia veio também desenvolver o paradigma do teletrabalho, abrindo caminho para uma força de trabalho cada vez mais digital, global e ecológica, mas ainda muito dependente de uma mudança cultural organizacional que é necessário fazer.

Em termos de tecnologia, quais os maiores desafios que colocam hoje às empresas em Portugal?
Muitos dos desafios têm sido amplamente discutidos nos últimos anos, e com um tecido empresarial maioritariamente caracterizado por pequenas e médias empresas, é muito importante que se aumente a qualidade e a competitividade. Ao nível do desenvolvimento de competências, é cada vez mais necessário desenvolver um sistema de ensino que dê uma resposta assertiva às necessidades das empresas, mas que ao mesmo tempo consiga envolver e despertar o interesse das gerações mais jovens para fazerem activamente parte da mudança das sociedades. As novas gerações envolvem-se mais quando os seus valores e o resultado do seu trabalho são impactantes e lhes dá um sentido de propósito. É importante apostarmos e investirmos em inovação, mas considero que o mais importante é desenvolvermos talentos e profissionais cada vez mais qualificados, que por sua vez obrigam as organizações a acompanhar a sua necessidade de aplicar o conhecimento adquirido. Claro que esta necessidade coloca as empresas perante um novo desafio: já que não se encontram os recursos necessários no mercado, terão de criar programas de formação e desenvolvimento, programas de engagement e retenção dos recursos ou novos programas de recrutamento.

Como antevê a evolução da empresa no próximo ano?
Tenho habitualmente uma atitude construtiva e positiva, por isso estou expectante e bastante confiante, acreditando que vamos responder aos desafios colocados, e que a nossa economia vai sair reforçada desta pandemia. Claro que vamos ser obrigados a repensar muitos dos modelos organizacionais tradicionais de trabalho, de liderança e até mesmo a reinventar ofertas, cadeias de abastecimento, canais de venda habituais, planeamento dos investimentos, planeamento da globalização, etc., mas é crítico realinhar prioridades, mantendo- -nos resistentes e resilientes.

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