“É falta de conhecimento”: Perto de metade dos alunos do Secundário não tem planos para o futuro profissional
Um estudo recente revelou que 47% dos estudantes do 10.º ano do ensino secundário em Portugal não têm uma ideia definida sobre o seu futuro profissional, uma realidade que acende alertas sobre o nível de conhecimento dos jovens acerca do mercado de trabalho e da organização social. Este é um dos dados do inquérito “Estudantes à Entrada do Ensino Secundário 2022/23”, conduzido pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), que envolveu 51% dos 113.271 estudantes matriculados em escolas públicas e privadas do continente.
Para a psicóloga clínica e professora catedrática Margarida Gaspar de Matos, esta ausência de expectativas não significa necessariamente falta de sonhos. “É falta de conhecimento. Os miúdos, por definição, sonham, mas não sabem como se organiza a sociedade civil ou o país. É muito importante mandá-los para a rua para que não fiquem apenas entre as paredes de casa e da escola”, defende, em declarações ao Público.
Já Raquel Raimundo, psicóloga escolar e presidente da delegação do Sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses, sugere que, apesar de comum nesta faixa etária, a indefinição não precisa de ser encarada como um problema. “Na adolescência, a principal tarefa é responder à questão ‘quem sou eu?’. É importante que mantenham o leque de escolhas aberto”, afirma, enfatizando que esse autoconhecimento se constrói ao longo do tempo. Raimundo reforça também a importância de os pais incentivarem os filhos, mostrando-lhes “coisas em que são bons” para os ajudar a conhecer as suas potencialidades.
Preferência por cursos de continuidade académica e “perversão do sistema educativo”
Os resultados mostram que 63% dos alunos que iniciaram o secundário em 2022/2023 estão inscritos em cursos científico-humanísticos, com maior concentração em Ciências e Tecnologias (50%) e Línguas e Humanidades (27%). Apenas 35% dos estudantes frequentam o ensino profissional, e apenas 1% segue cursos artísticos especializados. Para Gaspar de Matos, esta escolha maioritária por cursos teóricos é reflexo de uma “perversão do sistema educativo”. Segundo a psicóloga, “parece que os alunos estudam apenas para serem avaliados e para conseguirem entrar para a faculdade, não por vocação nem por gosto”. Esta prática, acrescenta, desencoraja o prazer pela aprendizagem e pela descoberta, mantendo a educação longe do “mundo real”.
Pressão social e estigma sobre o ensino profissional
A opção pelo ensino científico-humanístico também é motivada pela perceção de que esses cursos facilitam o acesso ao ensino superior, com 39% dos alunos a escolherem com base nas oportunidades de emprego que acreditam que estas áreas podem proporcionar. Contudo, Margarida Gaspar de Matos e Raquel Raimundo apontam que persiste um estigma em torno do ensino profissional, que é frequentemente visto como uma “segunda opção”, ainda que permita também o acesso ao superior. Para alguns estudantes, as preferências dos pais e as expectativas sociais pesam, levando-os a optar por cursos mais teóricos, ainda que alguns destes jovens revelem um perfil mais prático e técnico.
Raquel Raimundo destaca que os psicólogos escolares desempenham um papel crucial em ajudar os jovens a explorar as suas próprias paixões e interesses, desconstruindo, por vezes, as ideias pré-formadas sobre as diferentes áreas académicas e profissionais. O objectivo é que os alunos tomem decisões baseadas num conjunto de factores, incluindo os seus próprios interesses e habilidades, e não apenas na possibilidade de emprego ou na pressão social para prosseguir estudos.
Aulas de Cidadania como resposta
A inclusão das aulas de Cidadania, cujo programa está a ser revisto, pode, segundo especialistas, desempenhar um papel importante para incentivar a curiosidade e a interação dos jovens com a sociedade. “Para mim, cidadania é um miúdo de 14 ou 15 anos sair à rua e interessar-se pelo mundo”, explica Gaspar de Matos. Este conceito poderia incluir experiências práticas como voluntariado ou projectos comunitários, que ajudariam os jovens a descobrir as suas habilidades e gostos, permitindo um contacto mais próximo com a realidade.
Os dados do estudo indicam que 67% dos estudantes desejam terminar o 12.º ano e continuar a estudar, sendo que 71% manifestam vontade de frequentar o ensino superior. No entanto, apenas 23% escolheram o curso com base no seu interesse em aprender sobre aquela área específica. Para Gaspar de Matos, isto reflete uma orientação excessiva para a avaliação e um foco insuficiente no prazer pela aprendizagem.
Este estudo, além de dar um retrato das aspirações dos alunos do ensino secundário em Portugal, evidencia a necessidade de proporcionar experiências que os preparem para o mundo fora da escola, incentivando-os a participar e a interessar-se pela sociedade em que estão inseridos, e promovendo uma educação que vá além do simples acesso ao ensino superior.