Draghi, o “dragão”, “padrinho” e “guardião” que evitou “maus caminhos” ao euro
Mario Draghi ficará na história como o banqueiro central que teve a coragem de salvar o euro quando muitos acharam que era uma “missão impossível”, dizem os economistas contactados pela Lusa, que destacam as medidas anunciadas em setembro e que facilitam o trabalho a Christine Lagarde, que recebe um legado “exigente”, mas mais “leve” do que dos anteriores presidentes do BCE.
O responsável preside à sua última reunião como presidente do Banco Central Europeu (BCE) na quinta-feira, 24 de outubro, depois de oito anos à frente dos destinos da autoridade monetária da zona euro.
“Em alternativa ao já popularizado ‘Super Mario’, que não deixa de lhe assentar bem, especialmente se nos recordarmos de quando muitos acreditavam que a sua missão era impossível, penso que poderíamos também adotar o cognome de ‘Guardião do Euro’”, afirmou Clara Raposo, professora e presidente do ISEG, em declarações à Lusa.
Francesco Franco, professor da Nova School of Business and Economics (Nova SBE), considerou que o sobrenome do ainda presidente do BCE “é muito adequado”. “Draghi significa ‘Dragões’ (no plural) em italiano”, disse.
Rui Bernardes Serra, economista chefe do Montepio, comentou, por seu turno, que “Draghi não foi o pai do euro, mas foi certamente aquele que se substituiu aos pais e evitou que o adolescente ‘euro’ fosse por maus caminhos”.
“Bem podia ser assim o padrinho do euro. Mas esse nome em Itália tem segundas interpretações. Talvez seja simplesmente “Il Salvatore del Euro”, acrescentou o economista-chefe.
Para Rui Bernardes Serra, Mario Draghi “foi claramente o presidente do BCE que mais contribuiu para a preservação do euro”.
O economista-chefe do Montepio recordou que existe uma medida que mede a probabilidade de a zona euro terminar — o ‘Sentix Euro Break-up Index’ –, e que essa probabilidade chegou a atingir um valor máximo de 73% em julho de 2012.
“No dia 26 de julho de 2012, Draghi proferiu a mais famosa e determinante frase do seu mandato: ‘O BCE está preparado para fazer tudo o que for preciso para preservar o euro. E, acreditem em mim, será suficiente’. Podemos, assim, dizer que sim, Draghi pode ter salvado o euro”, referiu o economista-chefe.
No mesmo sentido, João Borges Assunção, professor da Universidade Católica, considerou que “poder-se-á dizer que Draghi foi mais influente do que os seus antecessores, apenas dois” – o francês Jean-Claude Trichet e o holandês Wim Duisenberg, que foi o primeiro presidente da instituição.
O docente da Católica recordou que o mandato de oito anos de Draghi coincidiu com o período de 2011 a 2019, em que a política monetária foi, à escala mundial, um dos principais instrumentos da política económica.
“E com desafios invulgares devido à co-ocorrência de diversos fatores: risco sistémico no setor financeiro, risco de sustentabilidade da dívida de países desenvolvidos, inflação muito baixa e, pontualmente, deflação e taxas de juro próximos do limite inferior de zero”, recordou.
Segundo Francesco Franco, “a história é escrita pelos vencedores”, pelo que será necessário esperar.
“Pessoalmente, acredito que ele merece ser lembrado como um banqueiro central extremamente experiente que teve a coragem de tomar decisões. Na hora mais sombria, salvou a zona euro”, disse.
João Borges Assunção recordou ainda que, “no início, havia algumas dúvidas sobre se [Draghi] teria todas as condições para desempenhar um bom mandato”, frisando ser “incontroverso que a generalidade dos observadores considera que fez um bom mandato”.
Para Clara Raposo, “Mario Draghi foi um resistente e garantiu alguma coesão na zona euro”, tendo sabido “liderar e manter um rumo, mesmo quando foi muito criticado”.
“Sem essa determinação não é certo que o euro tivesse resistido”, frisou a professora do ISEG, acrescentando que, “por muito que hoje se estranhe o longo período de taxas de juro baixas (até negativas), a verdade é que o euro atravessou a crise financeira iniciada em 2007 e as crises soberanas subsequentes, tendo-se afirmado como uma moeda estável e mais resiliente do que muitos críticos esperariam”.
Legado exigente mas mais leve
Os economistas contactados pela Lusa consideram que as medidas anunciadas por Mario Draghi em setembro facilitaram o trabalho a Christine Lagarde, que recebe do italiano um legado “exigente”, mas mais “leve” do que dos anteriores presidentes do BCE.
“Cremos que Mario Draghi facilitou o trabalho de Lagarde, nomeadamente ao ter anunciado já as medidas de estímulo na última reunião [de setembro]. Diria que o legado de Draghi não é pesado, mas leve”, afirmou Rui Bernardes Serra, economista-chefe do Montepio, à Lusa, acrescentando que “é mais fácil suceder a Draghi do que ter sucedido aos anteriores presidentes do Banco Central Europeu (BCE)”.
Já Clara Raposo, professora e presidente do ISEG, considerou que “a herança deixada a Christine Lagarde é exigente”, o que “não se deve propriamente a Mario Draghi, mas sim à natureza da união económica e monetária e ao atual contexto internacional, geopolítico e económico”.
João Borges Assunção, professor da Universidade Católica, afirmou, por seu turno, que “a nova presidente do BCE entra numa altura em que há uma divisão clara entre os membros do Conselho de Governadores do BCE em matéria de condução da política monetária”.
Segundo o professor da Católica, a “principal tarefa” de Lagarde “será conseguir dar ao Conselho a liderança intelectual que o seu antecessor atingiu, o que lhe permitirá comunicar eficazmente com o mercado e com os vários governos nacionais dos países que integram a zona euro”.
No mesmo sentido, Clara Raposo frisou que a primeira grande tarefa de Lagarde será “encontrar uma forma de funcionamento harmoniosa com a sua equipa no BCE” e que “só assim poderá ter eficácia na definição de políticas que vier a querer implementar”.
Francesco Franco, professor da Nova School of Business and Economics (Nova SBE), salientou, à Lusa, que “Draghi deixa um banco central que produz pesquisas de vanguarda úteis para capacitar os decisores” e que dispõe de “um conjunto renovado de ferramentas de política monetária que são coerentes com os novos níveis da taxa de juro natural”, ou seja, a taxa de juro ideal para o banco central.
No mesmo sentido, segundo Rui Bernardes Serra, “Draghi fez uma leitura extensiva dos tratados europeus”, que proíbem o financiamento dos Estados em mercado primário, mas não o proíbem em mercado secundário, o que faz com que o BCE esteja atualmente a financiar os Estados através das suas compras em mercado secundário.
“Com Draghi, o BCE utilizou instrumentos nunca antes utilizados pela instituição, nomeadamente, os programas de compra de dívida”, salientou o economista-chefe do Montepio.
Contudo, apesar dos avanços, Francesco Franco destacou que “a arquitetura da área do euro ainda está inacabada” e que “Lagarde tem uma tarefa difícil pela frente”.
“Mas, devido ao seu histórico percurso, sou otimista”, acrescentou o docente da Nova SBE.
Para Clara Raposo, “Lagarde é ainda uma incógnita enquanto líder do BCE”.
Christine Lagarde deixou a liderança do Fundo Monetário Internacional (FMI) para ser presidente do BCE, funções que vai exercer a partir de 01 de novembro.