Do Algarve a Alcobaça, passando pelo Vale do Tejo: mudanças bruscas no tempo deixam agricultores portugueses em sobressalto. Ameaças à produção vão muito além do calor e frio

Do Algarve, a Alcobaça, passando pelo Vale do Tejo, o cenário vai-se repetindo de forma cada vez mais insistente: um dia de sol e calor não quer dizer necessariamente que o dia seguinte seja igual, pode mesmo significar chuva, vento e frio. As mudanças cada vez mais drásticas de temperatura, como as que temos assistido recentemente, colocam desafios tremendos ao setor da agricultura, já de si envolto em enorme contestação nas ruas devido à falta de apoios.

Para compreender o efeito destas constantes mudanças de temperatura e estado do tempo, ‘visitámos’ partes do país para falar com associações de produtores agrícolas para entender como reage a fruta a esta instabilidade. E não é só o ‘São Pedro’ que deixa os agricultores com receio, há muito mais.

Comecemos pelo sul do país: José Oliveira, presidente da AlgarOrange – Associação de Operadores de Citrinos do Algarve -, indicou, à ‘Executive Digest’, as suas preocupações não só com as mudanças bruscas de tempo, mas também outro problema grave que atravessa a região: a seca extrema, que pode ‘arruinar’ a famosa laranja do Algarve durante três ou quatro anos… ou mais.

“Pode afetar. Todas as árvores, no início da primavera, têm a floração e depois a frutificação. A partir daí vão crescendo, vai formar-se a produção da próxima campanha”, começou por explicar José Oliveira. “Estas flutuações de temperaturas: se forem muito altas, podem efetivamente condicionar. Se a seguir vierem condições de tempo com temperaturas muito baixas podem queimar. Toda esta instabilidade poderá ter consequências significativas na produção da próxima campanha.”

Há, no entanto, outro perigo: geadas. “Já tivemos temperaturas acima da média aqui no Algarve, e agora temperaturas mais baixas, como agora, ainda não são de molde a poder causar danos substanciais. Agora se vierem temperaturas extremas, onde se possa configurar o aparecimento de geadas, isso sim, tem consequências muito grandes”, apontou.

No entanto, é a falta de água que assusta os produtores. “É gravíssimo. As previsões começam a dizer que possamos chegar a setembro sem água, o que vai obrigar a que se tomem medidas muito graves”, apontou, salientando “que a agricultura tem parte da sua área já com restrições bastante severas. Foi anunciado um corte de 25% para a agricultura, mas este valor é uma média. Há situações de 7/8 mil hectares onde os cortes de água rondam os 50% e outros até acima”, criticou.

E o que pode daí resultar? Uma produção em risco, anunciou. “Numa situação destas, a produção vai ser gravemente afetada e, muito provavelmente, se as condições se agravarem ainda mais, para o ano vamos ter pomares ou a morrer ou a entrar numa situação de sobrevivência – com alguma dotação de água para que a planta não seque. Estariam a entrar em regime de dormência, no qual se corta a copa, tinha de ficar praticamente sem folhas para que a evaporação não eliminasse a água necessária”, sublinhou.

“E se entrarmos nessa situação, estamos a falar de um período de 3, 4 anos – e se houver água -, para recuperar a produção desses pomares afetados. Neste momento o Algarve depende da chuva. Se não chover significativamente até maio, estaremos perante uma situação de uma gravidade que nem sequer as pessoas têm noção”, referiu José Oliveira, que não hesitou a deixar críticas. “O que estamos a ver é que os consumos não baixam, em janeiro houve mesmo um aumento no setor doméstico urbano. Esperemos que não se chegue à situação de Barcelona”, concluiu.

Do Algarve a Alcobaça

Hélder Duarte, técnico da Narc Frutas – Cooperativa de Fruticultores e Horticultores da Região de Alcobaça -, não escondeu os problemas que atravessa a região, que podem agravar-se substancialmente. “As alterações climáticas afetam sempre a produção. Agora é que se fala muito, mas já cá ando há uns anos, mas em outros tempos também havia secas. O que está diferente agora é que chove muito menos. A época do outono, inverno e primavera é muito mais curtinha. Enquanto há 30 anos chovia desde setembro até maio, agora resume-se a novembro/dezembro/janeiro. E se não houver chuva nessa altura, dificilmente haverá noutra altura do ano”, apontou.

Ou seja, “para as atividades de rua, é sempre um problema. Nunca sabemos quando chove ou não, quando faz granizo ou geadas. Claro que isso vai afetar a produção, vai ser sempre mais instável”.

E isso tem reflexos na produção? “Tem-se notado nos pomares. Há uns anos existiam pomares de sequeiro, sem rega. Atualmente, deixaram de existir porque sem água não se consegue ter fruticultura. Enquanto há anos chovia durante mais meses, agora se for preciso estamos 3 meses sem chover. E há plantas que não se aguentam”.

A região de Alcobaça acolhe, orgulhosamente, a sua maçã Royal Gala e a pêra rocha, que lhe traz fama. “A colheita é em agosto/setembro, eventualmente outubro”, lembrou. “O que acontece é que com os picos de calor, como o do verão passado, faz diminuir bastante a produção: de repente surgiu um pico de sol e a fruta queimou, fruto desta instabilidade”.

“Nesta altura as árvores estão só a alimentar os frutos. E a qualidade? Influencia, claro. Por isso, aqui na zona, a chamada maça de Alcobaça faz a diferença por ser uma zona que não é demasiado quente, por estarmos entre o Atlântico e a serra dos Candeeiros e Montejunto. Passando a serra, há muito mais calor no verão. A qualidade dos frutos é completamente diferente: já não se conservam tão bem. Esta é uma zona de excelência para as [maçãs] vermelhas porque não temos grande picos de calor e temos estes nevoeiros do mar que dão a cor”, frisou.

“O que notámos, em anos mais quentes, temos frutos que se queimam mais com o sol, E se não tivermos pomares preparados com água, ninguém resiste. Se as plantas estiverem a 25 graus e passados dias estão a 35, são mudanças muito rápidas e nota-se que os frutos deixam de crescer e por vezes têm ‘escaldão’”.

E para a produção deste ano, o que se pode esperar? “No caso da pêra rocha, estamos a atravessar um momento muito difícil devido a doenças provocadas por fungos. Está a tornar-se insustentável – repare, surgem insetos na zona que há uns anos nem conhecíamos”.

De Alcobaça ao Vale do Tejo é um ‘salto’

No Vale do Tejo, as dificuldades mantêm-se, reconheceu Hugo Pereira, técnico da TEF – Organização de Produtores, dedicado à horticultura sustentável, que desenvolve a sua atividade nos concelhos de Rio Maior, Santarém e Cartaxo.

“A nossa principal cultura é o tomate de indústria, seguido do pimento, que são culturas que neste momento não estão na terra. O cultivo só se faz no final de março/abril”, começou por explicar.

E se o tempo se mostrar caprichoso, o que pode significar? “Pode haver crescimentos anormais quer por excessos de temperaturas quer por falta. Por exemplo, se houver uma vaga de frio na altura das plantações, ficam muito tempo sem se conseguirem desenvolver”, referiu. Porquê? A ‘culpa’ é dos infestantes, vulgo ervas. “O que prejudica porque depois as infestantes, mais rústicas, mais fáceis de se desenvolverem, vão ganhando terreno. É prejudicial porque o controlo é mais difícil.”

“Esse logo é o primeiro problema, ganhar terreno às infestantes. Se a temperatura conhecer extremos, o problema agrava-se”, indicou, salientando que “a agricultura é uma fábrica a céu aberto, é difícil controlar estes parâmetros”.

A produção vem diminuindo na região, apesar “do maior profissionalismo” dos agricultores. Mas é difícil contra “fenómenos recentes”, com o descontrolo das pragas. “A queda de produção é constante. É raro o ano que não aparece um problema com uma praga em particular, porque as temperaturas foram favoráveis para que se multiplicassem”, lembrou, garantindo que “tem vindo a agravar-se”.

Opinião idêntica tem a engenheira Rosário Queiroz, técnica de acompanhamento dos produtores da APAVE – Organização de Produtores Agrícolas do Vale do Tejo, SA, uma associação que igualmente se dedica ao cultivo do tomate. O principal perigo já está identificado em 2024.

“As mudanças no tempo afetam a produção devido à influência que têm nas pragas e doenças”, indicou. “Este deve ser um ano desses: com temperaturas elevadas e humidade estão reunidas as condições para desenvolvimento das pragas, que não têm uma interrupção do inverno. Os insetos deixaram de hibernar, ou seja, fazem gerações e as populações são enormes”, referiu, garantindo. “Esperamos doenças como o míldio, por causa da muita água e calor, e os tratamentos não estão a conseguir combater a doença”, apontou.

“Este não será um bom ano para a produção, prevê-se que será uma primavera fria, o que por vezes não é muito bom porque a planta sofre os choques no início. É o que temos vivido nos últimos anos”, referiu.

Ou seja, “maior dificuldade, maior despesa e aumento dos custos de produção, que depois se reflete nos consumidores. E isto não se aguenta”, concluiu.

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