Direto à manifestação na Europa está ‘sob ataque’: impunidade policial em Portugal suscita preocupações, denuncia Amnistia Internacional

Uma nova investigação da Amnistia Internacional traça um quadro muito sombrio dos ataques ao direito de manifestação em todo o continente europeu, onde as autoridades estão a difamar, impedir, dissuadir e punir ilegalmente as pessoas que protestam de forma pacífica. Em Portugal, a Amnistia Internacional aponta recomendações em sete áreas-chave.

O direito de reunião pacífica está a ser severamente atacado por toda a Europa. Cada vez mais, os Estados estigmatizam, criminalizam e reprimem os manifestantes, impondo restrições injustificadas e punitivas e recorrendo a meios ainda mais repressivos para silenciar a dissidência.

Um novo relatório da Amnistia Internacional, denominado ‘Under-protected and over-restricted: The state of the right to protest in 21 countries in Europe’ (em português, “Pouco protegido e demasiado restringido: O estado do direito de manifestação em 21 países da Europa”), revela um padrão de leis repressivas em todo o continente europeu. Aliado a esta legislação, o relatório destaca o uso de força excessiva e desnecessária, as detenções e ações judiciais arbitrárias, as restrições indevidas ou discriminatórias, bem como a utilização progressiva de tecnologias de vigilância invasivas, que resultam num retrocesso sistemático do direito de manifestação.

Principais preocupações em Portugal

1. Legislação sobre direito de reunião pacífica em Portugal;

2. Restrições quanto à hora, local e conteúdo dos protestos, sanções e punições;

3. Tratamento discriminatório e diferenciado por parte da polícia;

4. Policiamento dos protestos;

5. Responsabilização dos agentes das forças de segurança;

6. Desobediência civil;

7. Estigmatização e retórica negativa contra os protestos.

Todas estas preocupações, e respetivas recomendações da Amnistia Internacional para cada uma delas, podem ser consultadas no documento “Portugal – 7 Preocupações e Recomendações”, que pode consultar aqui:

PREOCUPACOES_PORTUGAL_

Controlo policial, impunidade e vigilância

A investigação por trás deste relatório comprova o uso excessivo e/ou desnecessário da força por parte das autoridades contra manifestantes pacíficos, nomeadamente, a utilização de armas menos letais. Em vários países, os incidentes relatados provocaram ferimentos graves e, em alguns casos, permanentes: ossos ou dentes partidos (França, Alemanha, Grécia e Itália), perda de uma mão (França), perda de um testículo (Espanha) e ossos deslocados, lesões oculares e traumatismos cranianos graves (Espanha).

Noutros, o uso da força constituiu tortura ou outros maus tratos. Por sua vez, na Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Polónia, Eslovénia, Sérvia e Suíça, as forças policiais recorreram ao uso excessivo da força contra crianças. A investigação também encontrou casos de impunidade policial ou de falta de responsabilização em vários países: Áustria, Bélgica, França, Grécia, Alemanha, Itália, Portugal, Sérvia, Eslovénia, Espanha, Suíça, Turquia e Reino Unido.

Por exemplo, em Portugal, desde 2016, a Inspeção-geral da Administração Interna apenas publicou um único caso de sanções disciplinares a agentes no âmbito de manifestações.

As tecnologias recentes e os instrumentos de vigilância têm sido regularmente usados pelos Estados para assegurar uma vigilância direcionada e alargada dos manifestantes. Esta vigilância abrange o acompanhamento e a monitorização de atividades e a recolha, análise e armazenamento de dados. Vários países alargaram a vigilância através de nova legislação, sem estabelecerem salvaguardas adequadas, o que deixa estas práticas expostas a abusos generalizados. A utilização da tecnologia de reconhecimento facial tem crescido significativamente na Europa. Atualmente, é explorada pelos serviços de aplicação da lei em 11 dos países analisados, estando outros seis a planear a sua introdução. Recorrer a tecnologia de reconhecimento facial para identificar manifestantes equivale a uma vigilância em massa indiscriminada, e não há medidas de proteção que possam evitar as consequências desta prática. A Amnistia Internacional tem apelado a uma proibição total desta tecnologia.

Estigmatização das manifestações

O relatório identifica uma tendência preocupante de estigmatização dos manifestantes e dos protestos, por parte das forças de segurança, com o objetivo de lhes retirar a legitimidade. A retórica nociva das autoridades dos 21 países é comum, com os manifestantes a serem descritos como “terroristas”, “criminosos”, “agentes estrangeiros”, “anarquistas” e “extremistas”. Esta associação negativa que tem sido também frequentemente usada para justificar a adoção de leis cada vez mais restritivas.

Os atos pacíficos de desobediência civil têm sido cada vez mais enquadrados como uma ameaça à ordem pública e/ou à segurança nacional, o que dá às autoridades um pretexto falacioso para impor restrições e contornar as obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.

O discurso depreciativo por parte de políticos de alto nível tem sido uma resposta comum às manifestações de solidariedade com os palestinianos. No Reino Unido, as manifestações foram descritas como “marchas de ódio” pelo ministro do Interior e como “controlo da multidão” (mob rule) pelo primeiro-ministro. Por sua vez, na Eslovénia, em 2021, o então primeiro-ministro disse aos manifestantes para “irem para casa, para o sítio de onde vieram” e, em 2023, as autoridades encorajaram os seus seguidores no Twitter (X) a tirar fotografias aos manifestantes porque poderiam ser “terroristas”.

Na Alemanha, Itália, Espanha e Turquia, as forças de segurança não se limitaram a enquadrar os ativistas do clima como “eco-terroristas” ou “criminosos”, mas também recorreram a disposições relacionadas com o terrorismo e a leis relacionadas com o combate ao crime organizado e com a proteção da segurança nacional, de modo a visar estes ativistas.

Legislação anti-manifestação e respetiva penalização

Por toda a Europa, os Estados estão a ignorar as suas obrigações legais internacionais de respeitar, proteger e facilitar as reuniões pacíficas, de remover os obstáculos às manifestações e de evitar interferências injustificadas no exercício do direito de reunião pacífica.

Ainda que os 21 países em análise tenham ratificado os principais instrumentos de direitos humanos que protegem o direito de reunião pacífica, muitos não conseguiram implementar as disposições internacionais e regionais na sua legislação nacional. Este facto – combinado com a aprovação de novas leis repressivas, a imposição de restrições abrangentes e os pedidos de requisitos onerosos – criou um ambiente cada vez mais adverso às manifestações.

Nos últimos anos, os governos europeus impuseram restrições radicais às manifestações. A investigação da Amnistia Internacional mostra que as razões apresentadas pelas autoridades eram, em muitas ocasiões, infundadas. Além disso, os governos invocavam regularmente questões de “segurança nacional” e “ordem pública” como pretextos para reprimir a dissidência pacífica. Em Portugal, foram documentados abusos contra jornalistas por parte de agentes das forças de segurança enquanto estes faziam a cobertura de protestos.

Na Europa, os alegados argumentos de “ordem pública” ou de “segurança pública” apresentados nos últimos meses para proibir ou restringir manifestações de solidariedade com os palestinianos não respeitam os princípios da legalidade, da necessidade e da proporcionalidade, mas reforçam os preconceitos e estereótipos raciais. Em vários países, as manifestações de solidariedade com os palestinianos foram alvo de proibições e restrições no uso de determinados cânticos e símbolos. Estas proibições foram frequentemente aplicadas de forma violenta pela polícia.

Em muitos países examinados, os organizadores das manifestações são obrigados a notificar as autoridades dos seus planos e enfrentam sanções administrativas e/ou penais em caso de incumprimento. Os procedimentos de notificação constituem uma interferência nos direitos das pessoas e são, com frequência, usados pelos Estados de formas injustificadas e inaceitáveis à luz do direito internacional. Em quatro países – Bélgica, Luxemburgo, Suécia e Suíça – os organizadores são obrigados a solicitar previamente uma autorização para marcar uma manifestação.

A falta de notificação de um protesto (ou, se for caso disso, de não se pedir autorização) tem levado a que uma reunião seja considerada “ilegal” e, como consequência, que se ordene a sua dispersão, se prendam as pessoas envolvidas e se imponham sanções penais aos organizadores e participantes. Em Portugal, a Amnistia Internacional identificou casos em que os ativistas foram acusados e punidos pelo crime de desobediência por falhas na notificação de protestos, tendo sido sujeitos a penas suspensas convertidas no pagamento de multas.

Em alguns países, é legalmente exigido aos organizadores que mantenham a segurança e a ordem durante as reuniões, que cubram ou contribuam para os custos dos serviços públicos, como a limpeza das ruas, a segurança e a prestação de serviços de emergência, sendo mesmo possível que sejam responsabilizados pelos custos das ações dos participantes.

Em oito países, as manifestações nunca são autorizadas em determinadas zonas, como as imediações de edifícios governamentais, parlamentos e outros edifícios públicos. Em Portugal, a Amnistia Internacional foi ela própria – à semelhança do que acontece com qualquer grupo ou movimento social que deseje manifestar-se junto da embaixada de Israel – obrigada a posicionar-se a uma distância mínima de 100 metros para realizar um protesto. Estas restrições inibem os manifestantes a conseguir ser vistos e ouvidos pelas entidades a que se dirigem.

Quatro países impõem proibições gerais em função do tempo e outros aplicam restrições relacionadas com o chamado “conteúdo” das manifestações, prevendo sanções administrativas e penais para quem violar estas regras.

Atacar a desobediência civil

Apesar de a desobediência civil pacífica – a violação premeditada da lei por razões de consciência – estar protegida pelo direito de reunião pacífica, os Estados estão cada vez mais a enquadrá-la como uma “ameaça” à ordem pública e/ou à segurança nacional, respondendo-lhe com métodos progressivamente mais severos. É o caso das dispersões desnecessárias por parte da polícia, do uso de força excessiva, das detenções com base em leis que carecem de clareza jurídica, das acusações criminais severas e das sanções que incluem penas de prisão. Em Portugal, a Amnistia Internacional documentou situações semelhantes de uso excessivo de força por parte das forças de segurança na dispersão de manifestantes, como aconteceu no dia 21 de janeiro de 2019, na Avenida da Liberdade, e a 2 de fevereiro de 2024, na Praça do Município, em Lisboa.

Existem disposições preventivas na Alemanha, em Itália e no Reino Unido, que preveem que as pessoas sejam proibidas de frequentar determinados locais ou atividades futuras – e, em alguns casos, detidas – para as impedir de participar em atos de desobediência civil.

Efeito inibidor e discriminação

A vigilância indiscriminada, o forte policiamento, os inúmeros requisitos e o risco de sanções penais criam medo e desencorajam a participação em manifestações. Esta disuasão afeta desproporcionadamente as pessoas de grupos racializados e marginalizados, que já correm um maior risco de violência, desigualdade, discriminação racial e outras formas de discriminação por parte dos funcionários do Estado. Além disso, enfrentam barreiras acrescidas à participação, sendo mais suscetíveis de sofrer restrições e repressão.

Em diversos países, a identidade (percebida) dos organizadores e participantes nas manifestações, bem como as causas pelas quais se mobilizam, influenciaram as restrições impostas pelas autoridades. Muitos Estados parecem estabelecer uma distinção discriminatória entre diferentes movimentos, grupos e causas de protesto. Estas tendências estão em linha com o inquérito publicado, em março, pela Amnistia Internacional Portugal e feito em parceria com a Universidade Católica Portuguesa, que indicava que um terço dos inquiridos considerava que a polícia tinha um comportamento parcial consoante os protestos. Com uns, agia de uma maneira e com os outros, de outra.

As restrições impostas a manifestações, por exemplo, organizadas por ou em solidariedade com grupos racializados, pessoas LGBTI e migrantes, requerentes de asilo ou refugiados foram justificadas com inferências assentes em estereótipos raciais e de género, o que revela racismo institucional, homofobia, transfobia e outras formas de discriminação.

Em Berlim, em 2022 e 2023, as manifestações planeadas para assinalar a Nakba palestiniana foram proibidas de forma preventiva, tendo por base estereótipos discriminatórios prejudiciais dos participantes esperados, que a polícia caraterizou como “propensos à violência”.

Na Polónia e na Turquia, há muitos anos que as pessoas LGBTI sofrem um nível elevado de restrições discriminatórias, bem como de assédio por parte das autoridades.

“O direito de protesto na Europa corre o risco de ser destruído por mil golpes, com as pessoas que saem à rua a enfrentarem uma avalanche de restrições cada vez mais repressivas, sanções penais, violência estatal, discriminação e vigilância generalizada. No entanto, apesar destas agressões, as pessoas continuam a protestar para preservar direitos duramente conquistados e para assegurar novos direitos”, afirmou Catrinel Motoc, ativista sénior do Gabinete Regional da Amnistia Internacional para a Europa.

“Em vez de restringir os protestos pacíficos e punir os que saem à rua, os Estados de toda a Europa têm de repensar totalmente a sua abordagem. Os protestos devem ser facilitados e não silenciados, e a teia repressiva de leis promulgadas deve ser reformada de modo a torná-las compatíveis com as obrigações internacionais em matéria de direitos humanos”, acrescenta Catrinel Motoc.

Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional, lembra que “ao longo da história, as manifestações pacíficas desempenharam um papel fundamental na conquista de muitos dos direitos e liberdades que hoje tomamos como garantidos”.

Contexto

Países que integram esta análise: Áustria, Bélgica, Reo. Checa, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Polónia, Portugal, Sérvia, Eslovénia, Espanha, Suécia, Suíça, Turquia e Reino Unido.

O projeto faz parte da campanha global da Amnistia Internacional “Protege a Liberdade”, que visa defender o direito de protesto em todo o mundo.

Ler Mais