De Taiwan a Budapeste: o misterioso rasto dos pagers que mataram mais de uma dezena de pessoas no Líbano?

De Taipé a Budapeste: qual é o misterioso rasto dos pagers que vitimaram dezenas de pessoas no Líbano? A cadeia de fornecimento dos dispositivos abrange três continentes, revela esta quinta-feira o ‘Financial Times’.

A Gold Apollo é uma empresa de 40 pessoas num subúrbio pobre de Taipé, uma das dezenas de milhares de empresas de Taiwan que fabrica os baratos produtos eletrónicos: lançado em 1995, quando os telemóveis ainda davam os primeiros passos, os pagers caíram praticamente no esquecimento, sendo que os atuais ‘best-sellers’ da Gold Apollo são os discos vibratórios que os restaurantes utilizam para distribuir pelos clientes para avisar que o seu pedido está pronto.

Na passada terça-feira, às 15h30, milhares de pagers da Gold Apollo explodiram em Beirute, o que mergulhou a capital libanesa em pânico e enviou centenas de membros do grupo militante xiita Hezbollah para os hospitais.

O rastro da transformação destes dispositivos numa arma vai desde um confuso chefe executivo taiwandês até um físico de partículas húngaro que fez ‘um desvio’ inesperado para vender eletrónica barata num edifício de escritórios junto de uma autoestrada de Budapeste, salientou a publicação.

De acordo com a investigação preliminar do Hezbollah, os espiões de Israel terão conseguido sequestrar uma entrega de pagers para o Líbano, embalaram-nos com uma pequena carga de explosivos e componentes e depois fazerem-nos detonar quase simultaneamente. “É algo que pode ser feito, e tem sido feito, por Israel, mas nunca a esta escala”, reconheceu uma pessoa com experiência anterior na utilização de equipamento de comunicações para se infiltrar em alvos de espionagem. “Fazer isto exatamente ao mesmo tempo para tantos dispositivos é algo inédito.”

Pelo menos uma dezena de pessoas morreram, incluindo duas crianças, segundo as autoridades de saúde locais. Houve também cerca de 2.700 pessoas feridas, disseram as autoridades. O Hezbollah disse que 10 dos mortos eram seus membros. Culpou Israel e prometeu vingança, aumentando ainda mais as tensões entre os rivais regionais após 10 meses de escalada de ataques transfronteiriços que ameaçaram transformar-se numa guerra total.

Mas este ataque audaz deixou um rasto em três continentes: em Taiwan, a procuradoria de Shilin salientou que está a ser investigado por um departamento que trata de casos de segurança nacional. Mas a forma como um lote de pagers AR924 pretos com a marca Gold Apollo nas costas acabou no centro desta operação confundiu até Hsu Ching-Kuang, fundador e presidente da empresa, que foi cercado por repórteres de televisão diante do seu escritório esta quarta-feira.

Em poucas horas, ofereceram meia dúzia de explicações diferentes: um responsável de vendas começou por dizer que a empresa vendia para o Líbano há anos. Depois apontou para Budapeste, nomeando a BAC Consulting como uma empresa com a qual tinha um acordo de licenciamento de longa data. Isto permitiu à BAC conceber, fabricar e vender os pagers em regiões designadas, mas sob a marca Gold Apollo.

Segundo o Governo de Taiwan e especialistas da indústria, qualquer dispositivo deste tipo montado na Europa ou no Médio Oriente teria ainda de adquirir a maioria dos componentes a empresas taiwanesas ou chinesas. Foi também destacada a complexidade das cadeias de fornecimento de tecnologia, que abrangem dezenas de milhares de pequenas empresas de Taiwan, muitas delas dirigidas por pessoas com vasta experiência na gestão de fábricas na China ou no Vietname, mas com pouca compreensão sobre questões de segurança transfronteiriças ou regras de controlo das exportações.

“As principais partes dos pagers são chips de comunicação de baixo custo, recetores e placas-mãe de nível básico”, destacou um funcionário do Ministério dos Assuntos Económicos de Taiwan. “A maioria deles é feita por empresas taiwanesas e chinesas.”

O que nos leva a Budapeste: a BAC Consulting, de acordo com os registos da empresa húngara, foi criada em maio de 2022 por uma mulher chamada Cristiana Rosaria Bársony-Arcidiacono, agora com 49 anos. Será a única diretora da empresa que gerou lucros de cerca de 800 mil dólares em 2023. No seu perfil no LinkedIn, destaca-se um doutoramento da UCL em física de partículas entre as suas qualificações, bem como passagens por outras instituições de elite do Reino Unido, como a Soas e a London School of Economics.

Os registos da empresa indicam o seu endereço residencial como um arranha-céus da era comunista no norte de Budapeste, onde os vizinhos garantem não se lembrar de a ver nos últimos anos. A imagem da responsável também surge no site de uma empresa chamada Eden Global Impact, sediada em Mission, em São Francisco (Estados Unidos), que a descreve como uma “especialista em ações e programas humanitários e sociais, com amplas competências no setor sem fins lucrativos” – o grupo lista produtos à venda que vão desde geradores de energia solar, sistemas de filtragem de água e um “telefone descentralizado por satélite fora da rede”. O que permanece incerto é a razão de uma académica com vasta experiência em alterações climáticas, física de partículas e economia global estaria a vender pagers de Taiwan a compradores libaneses.

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