De juntas a câmaras, passando pelo Governo: esconder documentos e faturas é um hábito que ‘une’ a classe política em Portugal

Há um elemento que ‘une’ a comunidade política em Portugal, seja qual for o quadrante político: sejam câmaras municipais ao Governo, passando pelas juntas de freguesia, os responsáveis políticos recusam mostrar como gastam o dinheiro dos cartões e fundos de maneio que têm nos respetivos gabinetes. De acordo com a revista ‘Sábado’, frequentemente se recorre a serviços jurídicos pagos pelo Estado e chegam a invocar “reserva da vida privada”, numa história de dois anos, com 42 queixas, 21 processos judiciais e seis sentenças.

No verão de 2023, a revista pediu, ao abrigo da Lei de Acesso a Documentos Administrativos, à Junta de Freguesia das Avenidas Novas (Lisboa), extratos de qualquer cartão bancário titulado pela junta nos últimos três mandatos, assim como relatórios dos pagamentos das ajudas de custo, mas também faturas de despesas com fundo de maneio – almoços e jantares.

“Não tem esta Junta de Freguesia nada a esconder que não possa ser relatado ou apresentado nos termos legais”, foi a resposta do Executivo de Daniel Gonçalves, da coligação Novos Tempo. “Todavia, teremos nós, igualmente, de ter em conta interesses terceiros, legalmente protegidos, que não podem ser ‘beliscados’ pela ação investigatória.”

O pedido foi feito também a todas as Juntas de Freguesia da capital, mas aos ministérios do Governo (então sob liderança socialista), à Câmara Municipal de Lisboa e a todas as câmaras circundantes de Lisboa, incluindo a margem sul do Tejo. Em todas, salvo raras exceções, houve um muro de silêncio.

A recusa nas Avenidas Novas foi apenas o início de uma recusa em toda a linha: a junta sustentou, num parecer jurídico, que o pedido dizia respeito a “elementos sensíveis, em setores sensíveis”. Outro argumento – utilizado por outras juntas e câmaras – foi que eram demasiados documentos, pelo que facultá-los implicaria a afetação de funcionários e a consequente perturbação dos serviços.

Foi o caso da junta de Belém (de Fernando Ribeiro Rosa, do PSD), que indicou que “paralisaria o funcionamento dos serviços”; já a dos Olivais (Rute Lima, PS) frisou que só dispunha de dois funcionários na contabilidade e um nos recursos humanos: na Estrela (Luís Newton, PSD), o pedido “implicava um esforço manifestamente desproporcionado”, com “claro impacto negativo” nos serviços, a mesma desculpa da de Benfica (José da Câmara, PSD), com um resposta praticamente igual à da Estrela.

A câmara do Barreiro (Frederico Rosa, PS) acusou o “trabalho hercúleo” e a de Sesimbra (Francisco Jesus, CDU) recusou porque era “um esforço desproporcionado”. Já a junta de São Vicente (Natalina Moura, PS) salientou o “esforço de meios desmesurado”, que provocaria a “paralisação ou o entorpecimento” dos serviços, sustentando que “não foi identificado e justificado qual o interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante” para aceder a estes documentos.

A ‘Sábado’ fez queixa na Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA), entidade que faz uma espécie de arbitragem entre quem pede um documento e quem está na posse dele. Em 42 pareceres, a CADA refutou sempre o argumento de que se pode recusar mostrar documentos apenas porque dá muito trabalho. Por exemplo, no caso das Avenidas Novas, a junta “deve explicar os fundamentos e dificuldades existentes”, ou seja, tem de demonstrar o que alega.

No entanto, referiu a publicação, houve juntas e câmaras que prontamente apresentaram a documentação solicitada: foram elas a câmaras de Almada, Odivelas, Loures, Matosinhos, Palmela, Oeiras e Sintra. E algumas juntas de freguesia de Lisboa: Arroios, Ajuda, Beato, Campolide, Campo de Ourique e Marvila.

A proteção dos dados pessoais, avançados pelos órgãos políticos, foi um argumento muito utilizado para recusar o acesso aos documentos: a CADA elucidou: “É uma questão que se prende com o controlo dos gastos de dinheiros públicos e, assim, também de transparência da atividade administrativa.”

Por exemplo “o cartão de crédito mais não é do que um meio de pagamento de despesa pública. (…) As movimentações dos cartões usados em funções não constituem dados sensíveis. O uso dado a cartões de crédito e débito não é pessoal, mas funcional”, e como tal, a informação “pode ser escrutinada”.

Os “dados pessoais” apareceram também nas recusas das juntas do Lumiar (Ricardo Mexia, PSD), Benfica (Ricardo Marques, PS), Carnide (Fábio Sousa, CDU) e Santa Maria Maior (Miguel Coelho, PS). Na junta de Belém, foi mesmo evocado a “proteção pelo sigilo bancário”, a exemplo da câmara do Seixal, de Paulo Silva (CDU).

A câmara do Barreiro (do PS) recorreu a um parecer do seu encarregado de proteção de dados, que alegou que as faturas têm “dados pessoais”, que teria de haver uma “autorização escrita” passada pelo presidente e vereadores para se poder aceder às despesas que efetuaram no exercício do cargo e que o jornalista tem de “alegar qual é o interesse concreto no acesso aos documentos”. Concluiu: “Recomenda-se que o município não faça transmissão nem conceda o acesso aos documentos, nestas condições.”

O exemplo foi seguido pela câmara de Setúbal, da CDU, que indicou que “não é possível expurgar os dados” das faturas de restaurantes ou extratos de cartões bancários, pelo que os documentos “não devem ser fornecidos” – a câmara comunista referiu mesmo que a publicação “não é parte interessada”, pelo que deveria “apresentar um novo pedido que se atenha àquilo que, salvo melhor opinião, poderá corresponder ao direito que pretende exercer que foi manifestamente excedido”.

Os 18 ministérios do Governo de António Costa, assim como o gabinete do primeiro-ministro, foram alvos dos mesmos pedidos: nenhum respondeu, pelo que foi feita queixa na CADA, que instou os ministérios a fornecer os documentos. Desde esse momento, os ministérios deram respostas iguais sobre como funcionava o regime de ajudas de custos, fundos de maneio e cartões bancários nos gabinetes, mas nem uma palavra sobre quando se poderia consultar os mapas, extratos e faturas de todas estas despesas.

A recusa motivou a instauração de um processo judicial a cada um deles: com a mudança de Governo, a ‘Sábado’ informou por email o ministro da Presidência e solicitou que o novo Executivo fornecesse a documentação requerida, até para cumprimento dos pareceres da CADA. António Leitão Amaro nunca respondeu.

Os tribunais já condenaram dois ministérios, incluindo o de Leitão Amaro, que continua sem cumprir a sentença: de acordo com o organismo, o que estava em causa era o acesso a “milhões de documentos” e que “o objeto da informação solicitada contém dados pessoais de certos titulares de cargos políticos e cargos públicos”.

No entanto, a juíza Ana Rita Pinto destacou que se “presume que está apenas em causa o acesso a documentos administrativos. Embora os documentos solicitados possam ser documentos nominativos – porquanto as faturas, recibos, talões, etc, podem conter informações sobre a data da despesa, o horário em que foi realizada, o local…
– o que é certo é que tais despesas foram efetuadas no exercício de funções, razão pela qual não pode ser negado o seu acesso, tratando-se de controlo de gastos de dinheiros públicos e de transparência da atividade administrativa”.

A Câmara Municipal de Lisboa é o caso que se arrasta há mais tempo. Em setembro de 2022, ao novo executivo foi solicitado a mesma documentação sobre os anteriores, do PS. Carlos Moedas prestou alguma informação, mas nunca abriu as portas da câmara sobre as suas faturas e extratos. Seguiram-se os tribunais.

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