Da Whole Foods à saúde holística: a história de um fundador

Por: Michael Brewster e Shana Ting Lipton, strategy+business

“As pessoas perguntaram-me quanto tempo demorou até o primeiro Whole Foods Market ser rentável, e eu digo, até às cerca das duas da tarde [do primeiro dia]», afirma John Mackey, cofundador e antigo CEO da empresa. O jovem empresário hippie que abriu a sua primeira loja (então chamada Safer Way) em 1978 em Austin, Texas, dificilmente poderia ter previsto que o negócio cresceria e se tornaria numa multinacional pioneira multimilionária em alimentos naturais. Adquirida pela Amazon em 2017 por 12,6 mil milhões de euros, a Whole Foods conta hoje com mais de 500 lojas nos EUA, Canadá e Reino Unido.
John Mackey deixou o cargo de CEO em 2022. Durante o seu mandato de 44 anos, transformou o seu instinto numa forma de arte, resistindo às convenções e criando uma cultura de trabalho em equipa e independência. A gestão foi descentralizada; autoridade atribuída às lojas locais e aos chefes de equipa, que, segundo o fundador, conheciam melhor os seus clientes. A Whole Foods estabeleceu normas de bem-estar animal para os seus produtos e criou a Whole Planet Foundation para financiar microcréditos a empreendedores nas comunidades onde adquiria produtos.
É claro que nem tudo foi pacífico. O tempo de John Mackey como CEO incluiu desafios de liderança por parte de investidores activistas, do conselho de administração e até do seu próprio pai. Em última análise, o seu sucesso na generalização dos alimentos biológicos e naturais fez com que o negócio acabasse por enfrentar uma concorrência crescente por parte de alguns supermercados tradicionais e até da Walmart, o que prejudicou os preços da Whole Foods.
John Mackey, que publicou recentemente um livro de memórias de negócios (“The Whole Story: Adventures in Love, Life, and Capitalism”), falou com a strategy+business sobre o papel da comunidade nos negócios, a lógica por detrás da aquisição pela Amazon e como a sua visão para o futuro da saúde o inspirou a liderar uma startup aos 70 anos.

strategy+business: A sua primeira loja em Austin quase faliu devido a uma inundação sem precedentes, e a comunidade reuniu-se para apoiar a Whole Foods. Como moldou a sua liderança?
John Mackey: Construímos aquela loja numa zona de “cheia de 100 anos”. E quando eu estava a falar com o proprietário, ele disse: «Bem, John, isso significa que, cerca de uma vez a cada cem anos, estarás dois metros e meio debaixo de água.» E eu respondi: «Vou aceitar essa probabilidade.» O problema é que tivemos a cheia de 100 anos logo no primeiro ano. Tudo foi uma perda total: o equipamento, o stock.
Mas aconteceu a coisa mais incrível no dia seguinte. Os membros da nossa equipa vieram trabalhar e ajudaram-nos a limpar a loja; olhei à volta e vi alguns rostos familiares, mas que não trabalhavam para nós. Eram os nossos clientes. Souberam o que acontecera e vieram ajudar-nos a limpar a loja. Muitos deles trabalharam dia após dia. E os nossos fornecedores estavam dispostos a oferecer-nos mais stock a crédito. Os investidores também investiram um pouco mais de dinheiro. Um banqueiro garantiu pessoalmente o nosso empréstimo de 100 mil euros. Incrível. Demorámos 30 dias a reabrir.
A Whole Foods deveria ter morrido no nosso primeiro ano, e eu não tinha uma palavra para isso naquela altura, mas os stakeholders salvaram-nos. Os nossos clientes, os nossos colaboradores, os nossos fornecedores, os nossos investidores, o banco, a comunidade de que fazíamos parte não nos deixaram morrer.
Percebi que éramos uma rede de relações interdependente. E eles preocupavam-se connosco. Não queriam que morrêssemos. Isto mudou a Whole Foods para sempre, porque a partir daí começámos a levar a sério cada uma destas diferentes relações e a tentar fazer o que está certo com elas, para criar valor conscientemente para todos os diferentes stakeholders.

strategy+business: Avançando para 2008, a crise financeira foi outro momento perigoso para a empresa, que era muito grande. Olhando para trás, há algo que teria feito de diferente durante este período?
JM: Esse foi um dos verdadeiros pontos de viragem da Whole Foods. O preço das nossas acções caiu 90%. Estávamos tão vulneráveis ​​a uma aquisição hostil que fomos procurar dinheiro para investir na empresa e evitar isso. Ainda recebemos accionistas activistas. Mas as acções subiram tanto que esgotaram rapidamente e não nos causaram problemas. As nossas acções começaram a sair do seu ponto mais baixo para atingirem novos patamares e recuperarem, não apenas os 90% que perderam, mas para três ou quatro vezes mais do que isso nos anos seguintes.
Mas perdemos a melhor oportunidade que já tivemos na história da empresa de baixar os nossos preços. Estávamos a começar a ter mais concorrência. O que poderíamos e deveríamos ter feito – e este é o meu maior arrependimento enquanto CEO – era baixar os preços nessa subida [do preço das acções]. As acções não teriam subido tanto. Não teríamos criado tanto valor para os accionistas no curto prazo. Penso que ainda seríamos uma empresa independente hoje, se o tivéssemos feito.

strategy+business: Porque é que, em última análise, decidiu vender, e porquê à Amazon?
JM: Precisávamos de combater a narrativa sobre [a alcunha] “Whole Paycheck”, que nos prejudicava realmente. Precisávamos de baixar os nossos preços. Mas como empresa em bolsa, se estiver a vender algo por um euro e começar a vendê-lo por 90 cêntimos, no curto prazo, as suas vendas descem, as suas vendas [comparáveis] ​​nas lojas descem, os seus lucros descem, e o preço das suas acções desce. E isso é muito difícil de enfrentar num mercado focado em [resultados] trimestre a trimestre.
A Amazon permitiu que a Whole Foods baixasse os seus preços quatro vezes nos primeiros dois anos. Isso é pensamento a longo prazo. E foi uma decisão muito boa. Raramente ouço a narrativa do “Whole Paycheck”; talvez não tenha desaparecido completamente, mas já não é o principal quando se fala de Whole Foods, e a Amazon tornou isso possível.

strategy+business: Em “The Whole Story”, diz que teve algumas dúvidas sobre a aquisição por parte da Amazon. Ainda sente isso?
JM: Lamento as circunstâncias que tornaram a venda à Amazon a melhor opção. Se tivesse de voltar nas mesmas circunstâncias, tomaríamos a mesma decisão. Os nossos accionistas activistas disseram-nos: «Vamos assumir o controlo do vosso conselho, despedir a vossa equipa de gestão e vender a empresa pelo lance mais alto.» Pensei que podiamos resistir. Esse foi um dos caminhos não trilhados. Mas precisávamos de tempo para mudar o nosso negócio. Precisávamos de baixar os nossos preços e isso seria doloroso. A outra opção que tínhamos era fechar o capital, mas isso teria gerado dívidas de milhares de milhões de euros.
Acordei uma manhã e pensei: «Será que a Amazon estaria interessada?» E fiquei muito entusiasmado porque admirava a Amazon. Admirava Jeff Bezos. Tivemos uma ligação tremendamente boa. Assim, contactámos a Amazon para ver se estariam interessados. Eles ficaram muito entusiasmados com a ideia. Aconteceu muito rapidamente. Seis semanas após a nossa primeira reunião, assinámos um acordo de fusão.
Mas pergunto-me sempre: se tivéssemos lutado, poderíamos ter permanecido independentes? Na altura, a minha função era procurar uma solução em que todos saíssem a ganhar, incluindo os investidores. Isso [acabou por ser] uma coisa boa para os nossos clientes. Baixámos os preços quatro vezes nos primeiros dois anos. Foi bom para os membros da nossa equipa. Todos receberam um aumento. Foi bom para os nossos fornecedores porque continuamos a fazer negócios com eles. A Amazon.com escolheu muitos dos nossos fornecedores. Foi bom para os nossos accionistas porque conseguiram um aumento de cerca de 40%. Portanto, saíram realmente todos a ganhar.

strategy+business: 44 anos é um longo mandato como CEO sob quaisquer normas. Como contribuiu isso para o sucesso da Whole Foods?
JM: Existe uma filosofia de investimento que se tem mostrado muito bem-sucedida, que é investir em empresas lideradas por fundadores, porque os fundadores adoram a sua empresa e pensam a longo prazo com ela. É o bebé deles. Querem ajudá-lo a crescer e nutri-lo.
O que acontece à medida que as empresas envelhecem e os fundadores se reformam é que se contratam gestores profissionais, ou estes trabalham com a empresa e sobem na hierarquia. E é uma triste verdade que a maioria dos CEO na maioria das grandes empresas em bolsa só são CEO durante talvez cinco, seis, sete anos. Esse é o mandato médio. Por isso, não vêem a longo prazo e não perguntam o que será realmente bom para a organização daqui a 10, 15, 20 anos.
Corre-se um grande risco quando se traz alguém de fora. Por vezes é necessário fazê-lo porque a empresa precisa de ser abalada. A cultura precisa de ser mudada e desafiada. Mas o pensamento a longo prazo é uma das coisas que pode ser sacrificada quando o faz.
Uma das coisas que mais me impressionou na Amazon – e uma das razões pelas quais quis que a Whole Foods se juntasse à Amazon – é que era muito óbvio para mim que Jeff Bezos pensa realmente a longo prazo. Não pensa trimestralmente, anualmente. Nem pensa cinco anos à frente. Está a pensar em 10, 15, 20 anos depois.

strategy+business: O Inquérito Voz do Consumidor 2024 da PwC descobriu que os inquiridos estavam dispostos a pagar 9,7% acima do preço médio por bens produzidos ou adquiridos de forma sustentável. O que retira da experiência de vender alimentos biológicos e especiais a um preço premium?
JM: Quando se coloca isto de forma hipotética, as pessoas tendem a ser um pouco mais atenciosas. Mas quando se deparam com escolhas na loja, nem sempre agem de forma tão idealista porque têm escassez de dinheiro e têm de fazer uma troca. É preciso pensar que as pessoas estão numa constante não apenas de riqueza, mas de idealismo. Algumas pessoas pagarão muito mais. Alguns não pagarão um cêntimo a mais. Depende simplesmente da pessoa.
A Whole Foods gastou muito tempo e dinheiro a criar o seu programa de bem-estar animal em cinco etapas, que apresentava diferentes níveis de bem-estar. Quanto melhor for o bem-estar, mais cobramos pelos produtos. As pessoas mais idealistas eram veganas. Não queriam que vendêssemos nenhum tipo de alimento de origem animal. Depois havia outras que não pensavam duas vezes antes de pagar mais pelo melhor e mais elevado grau de bem-estar. E provavelmente eram pessoas muito ricas que simplesmente não olhavam para os preços. Depois havia outras pessoas que queriam comprar um bem-estar animal melhor e mais elevado, mas ficavam zangadas porque achavam que era demasiado caro. E depois havia outros que não se importavam com isso, mas falavam do sabor. Existe este espectro de diversidade de rendimentos, idealismo, compromissos. Portanto, tínhamos soluções diferentes para clientes diferentes e parecia funcionar muito bem. Ainda funciona muito bem para a Whole Foods.

strategy+business: Ao olhar para o futuro da alimentação e da saúde, qual considera ser o papel da tecnologia?
JM: Agora temos tecnologia que pode criar carnes celulares. Podemos cultivar carne de bovino ou de frango basicamente numa fábrica e é biologicamente idêntico. Trata-se de uma enorme melhoria, do ponto de vista ético – alimentos de origem animal sem sofrimento animal.
Estou entusiasmado com muitas das inovações tecnológicas que ocorrem na saúde. Temos agora capacidade tecnológica para compreender o quão saudável é cada indivíduo. Podemos criar uma linha de base, e com o Apple Watch e o Oura Rings, diferentes tipos de monitores contínuos de glicose, podemos monitorizar a saúde das pessoas quase minuto a minuto. À medida que isto melhorar, teremos cada vez mais dados sobre cada indivíduo. E, pela primeira vez, somos realmente capazes de ajudar as pessoas a tornarem-se a versão mais saudável de si mesmas. A tecnologia torna isso possível e a IA contribuirá. Ajudará a melhorar o diagnóstico de qualquer tipo de doença e a trabalhar ao lado dos médicos.
Estou muito optimista de que a tecnologia, embora cause alguns problemas em geral, eleva a humanidade. Tenho todas as razões para acreditar que a humanidade será muito mais saudável e estará em melhor situação daqui a 20 anos do que hoje.

strategy+business: Como aplica esta visão ao seu novo empreendimento, Love.Life – a startup integrada de saúde e bem-estar que lançou em 2023?
JM: A Love.Life, de certa forma, é apenas uma continuação do propósito mais elevado que eu tinha na Whole Foods – ajudar as pessoas a serem mais saudáveis –, mas a Whole Foods tratava apenas de alimentos. Abriremos estes grandes clubes de saúde holísticos e completos. O primeiro será na zona de Los Angeles. Estará localizado num centro onde a Whole Foods possui uma loja de muito sucesso. Teremos um restaurante saudável, um ginásio de última geração e um spa muito bom. Teremos estas modalidades de recuperação, tratamentos de saúde alternativos, três campos de pickleball e também um centro médico.
A visão geral é que testaremos os nossos membros, descobriremos a sua saúde básica e depois [ajudá-los-emos] a tornarem-se o mais saudáveis ​​possível – fisicamente, mas também emocional e espiritualmente – como uma comunidade de pessoas dedicadas ao crescimento pessoal, bem-estar e saúde.
Estou muito entusiasmado com isso. Será lindo, um lugar muito especial. Será divertido. Voltei à aventura. Voltei ao modo de arranque. Sou novamente um empresário, não dirijo uma grande empresa. Estou a criar algo novo com os meus amigos, pessoas que amo, pessoas que ajudaram a criar a Whole Foods.

strategy+business: Qual a diferença de lançar uma startup hoje e aos 70 anos, como um CEO mais experiente?
JM: Agora, com 70 anos, sei muito mais do que quando tinha 24. E não tinha dinheiro quando tinha 24. Agora posso investir neste negócio sozinho. Estou menos dependente de investimentos externos. Por outro lado, tenho menos energia. Não farei o mesmo tipo de semana de trabalho de 80 horas.
Mas do ponto de vista externo, a maior diferença é que a Whole Foods [inicialmente] passou despercebida. Ninguém nos prestou atenção durante cerca de 20 anos. Espero que as pessoas prestem atenção ao Love.Life desde o primeiro dia em que abrimos. A internet não existia quando começámos a Whole Foods. Não havia redes sociais. Não havia smartphones. As boas ideias hoje são rapidamente descobertas, copiadas e iteradas rapidamente. Isso é uma coisa boa. O capitalismo é ainda mais dinâmico do que costumava ser. 

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