Como a Nestlé Portugal chegou aos 711 milhões de euros
Anna Lenz é uma grande mulher. Em altura e vontade. A primeira mulher CEO da história da Nestlé Portugal assumiu o cargo a meio de 2022 com a felicidade de uma criança que recebe o melhor brinquedo que podia ter. E por três motivos: pelo cargo em si, por entrar meses antes de se celebrar o centenário e por ser em Portugal.
Anna é filha de pai italiano e mãe alemã. Já viveu em 29 países e fala seis línguas como se fossem quase a sua, a materna. Mas mesmo tendo sido no Brasil que conheceu o marido e pai dos filhos, é em Portugal que se sente em casa. A terceira filha, aliás, nasceu por aqui, estava Anna Lenz à frente da Nespresso, na altura, e confirma que em todos os países por onde passou só num comprou casa: cá.
Agora, e apesar de saber que ser CEO da Nestlé é sempre um cargo a prazo, quer acreditar que por aqui ficará os cinco anos limite e que, no entretanto, só poderá dar o melhor e conseguir o melhor. Seja em resultados, crescimento, como orgulho interno face à marca.
Porque Anna tem determinação e querer. Um andar certo e um sorriso aberto quando fala de projectos e ideias, do que já alcançou e do que ainda está para vir. Formada em Matemática Teórica, hoje é nas marcas, na inovação, na sustentabilidade e no marketing – «se cortarmos no Marketing e na inovação, deixamos de nos diferenciar», defende – a que hoje mais se entrega. Isso e aos 2500 colaboradores da Nestlé Portugal que conseguiu, pela primeira vez, reunir na sede da empresa aquando da celebração do centenário da presença no mercado português. De resto, a actual CEO nem gabinete tem, preferindo sentar-se entre colegas, à janela, numa mesa corrida e com mais Pc’s.
Assume as funções de CEO pouco antes de a Nestlé Portugal celebrar os seus 100 anos de presença no mercado. Hoje, que balanço faz da actividade da empresa?
Tive duplamente sorte, a de chegar a esta função e do momento em que a assumi. Cheguei em Julho de 2022 e 2023 foi o ano do centenário. Muito do que fizemos foi em torno dessa data, seja com colaboradores, parceiros, consumidores. Foi um momento que permitiu consolidar e celebrar o que é a Nestlé Portugal e o que significa para os portugueses. Além de, ao nível dos Recursos Humanos, ter reforçado o orgulho na marca.
Fizemos uma grande festa para os 2500 colaboradores que foi um momento bastante emocional. Ainda o ano passado, a Nestlé foi reconhecida como a melhor empregadora em Portugal. Em alguns países, a Nestlé tem esse reconhecimento na categoria. Mas nós ficámos como os melhores entre todos, desde as tecnológicas aos unicórnios. Isso diz muito da força de uma marca já centenária.
Já partilhou que elegeu a sustentabilidade, a economia e a diversidade como três pilares do negócio. Em que é que isso se traduziu e o que conseguiu concretizar?
Várias coisas. A nível de sustentabilidade, desafiámos por exemplo os colaboradores para fazerem 100 projectos de sustentabilidade, desde limpar a praia ou dar aulas numa escola. Em função dessas iniciativas, plantámos centenas de árvores. E temos muitos desafios futuros. Temos duas fábricas em Portugal e queremos que tudo o que aqui seja produzido seja “designed for recycling”. Isso não quer dizer que no país onde venha a ser vendido possa ser reciclado, mas a nossa filosofia é que devemos dar massa crítica aos governos para que, a prazo, implementem novas regras. E a nossa ambição é chegar mesmo aos 100% este ano, ou seja, que tudo o que produzimos em Portugal possa ser reciclado.
E na área da economia?
Criámos 110 postos de trabalho adicionais, muito em resultado do Nestlé Business Service (NBS). É que além de estarmos, aqui também fornecemos muitos serviços, nomeadamente de Marketing, para fora.
Como temos pessoas altamente qualificadas e os resultados têm sido tão bons, estamos a receber cada vez mais pedidos de outros mercados. Até em termos de desenvolvimento de carreira é bom. Portugal é um país pequeno, e isto permite que as pessoas da Nestlé Portugal possam ir para o NBS.
Mas investimos bastante ao nível de infra-estrutura e de Marketing. O ano passado investimos mais de 20 milhões em Capex – nomeadamente 10 milhões numa nova linha de bebidas de cereais, em Avanca, ou na instalação de pontos de recarga para carros eléctricos tanto nas nossas instalações como em casa dos nossos colaboradores.
Ainda o ano passado investimos 50 milhões em Marketing, depois de em 2022 termos reduzido um pouco até por causa da inflação.
E se pensarmos no terceiro pilar, o social, temos parcerias de longa duração e uma que voltou a ser relevante o ano passado foi com o Banco Alimentar contra a Fome, que nos contactou para darmos produtos para as famílias. Claro que demos, mas para conseguir uma maior escala, chamámos os nossos fornecedores – fosse de leite em pó, trigo ou embalagens – e desafiámo-los a que cada um desse a sua parte: nós emprestámos a fábrica e, com isso, conseguimos uma maior escala.
A Nestlé Portugal tem duas fábricas, cerca de 2500 colaboradores, seis delegações. Está prevista e expansão das instalações este ano?
No sentido de construir mais uma fábrica, não. O que estamos é sempre em processos constantes de modernização das fábricas, a trocar linhas, a melhorar ou tentar aumentar o volume de produção. Isso vai continuar. Vamos manter os níveis de investimento, mas não prevemos abrir uma nova fábrica, nos próximos anos.
O ano passado a Nestlé Portugal voltou a crescer nos resultados e o seu objectivo é consegui-lo, de novo, este ano. Em que áreas de negócio, em particular, e até que ponto é que esse investimento de 50 milhões em Marketing também ajudou a esse mesmo crescimento?
Investimos em Marketing e temos marcas extremamente fortes. Mas mesmo as marcas fortes precisam de ser cuidadas e vemos que quando investimos até em marcas como KitKat ou Buondi conseguimos retorno imediato. Por isso, é algo que vamos continuar a fazer.
Também temos que apoiar as inovações que fazemos e este ano temos uma inovação muito importante que é o lançamento da máquina Neo, da Dolce Gusto, que trabalha com cápsulas em papel que são compostáveis. É um novo sistema de uma máquina feita totalmente com material reciclado, que tem funcionalidades novas como a leitura de preparação do café…
Essa inovação foi desenvolvida…
Todas as grandes inovações são desenvolvidas naquilo que chamamos “above the market”. Temos mais de 4000 pessoas que são dedicadas a 100% à inovação…
… há muita que sai de Portugal e o nosso País é um grande mercado de teste!
Portugal é um mercado muito bom para testar depois do lançamento e por duas razões: porque temos um retalho muito concentrado e com uma boa relação, e porque os portugueses são muito experimentalistas. A esse nível, Portugal é muito inovador.
Mas sendo a Nestlé uma empresa tão grande, usamos a escala que temos para as inovações. Essa máquina em particular, a Neo, é o resultado de cinco anos de pesquisa, até porque a cápsula em papel tinha que aguentar a pressão.
A inovação que fazemos de produto é mais ao nível de marcas locais, como Cerelac ou Nestum, onde temos trabalhado na redução do açúcar para melhorar o perfil nutricional ou para lançar um novo sabor – como fizemos agora com Cerelac, com frutas.
Mas olhando às diferentes áreas de negócio, por onde acredita que se fará o crescimento, este ano?
Temos uma tipologia de negócios muito ampla, desde nutrição infantil a comida para animais, desde o lanche da manhã a produtos edulgentes… Se olharmos a nível percentual, o que mais cresceu o ano passado e que prevejo se mantenha é o negócio da Nestlé Health Science, de nutrição clinica e com uma vertente de vitaminas e suplementos – que tem crescido muito. Há cada vez maior consciencialização e valorização. Nos EUA já é uma categoria imensa. Aqui, surgiu mais com os desportistas mas há cada vez mais a consciencialização que para o envelhecimento saudável é fundamental a nutrição, a forma como nos alimentamos.
Esta é uma clara aposta para o futuro.
Também onde crescemos muito, e onde somos líderes da categoria, é no mercado pet. Por um lado, porque houve ainda maior penetração de animais nos lares no pós-COVID – e Portugal já tem uma grande taxa de lares com cães e gatos em casa – e porque há cada vez mais a informação que as sobras da alimentação humana não é o melhor para os animais.
Este é um negócio muito grande, mas onde continuámos a crescer em 2023.
Fecharam 2023 com 711 milhões de euros!
Sim, numa combinação entre o que vendemos em Portugal – 577 milhões de euros – e o que exportamos, seja para a Nestlé noutros países ou directamente a clientes, como é o caso de Nestum que é muito vendido para países com grandes colónias de portugueses.
O negócio, total, foi então de 711 milhões de euros e o crescimento de 34 milhões, o que significa 5,5% face ao ano anterior. O crescimento vem, de facto, do mercado português. O mercado de exportação foi “flat” e o doméstico cresceu 7,5%.
Para este ano, o que prevê?
Não revelando números, queremos crescer “a single digit”.
Desde 2022 que temos tido vários desafios. Um deles foi manter os produtos disponíveis. Houve tantas quebras na cadeia de abastecimento e para nós sempre foi prioridade manter os produtos. Dizer “temos que produzir” e, no limite, teremos qua adaptar algumas receitas ou o portefólio.
E as mais recentes paragens e manifestações por parte dos agricultores, não têm tido impacto?
Para já, não.
Mesmo trabalhando a Nestlé Portugal com cerca de 900 fornecedores locais?
É verdade. Compramos 60% de tudo o que fabricamos em Portugal. Claro que há produtos que por falta de oferta não conseguimos, como é o caso do café. Já o trigo compramos 40% e só não compramos mais por falta de oferta.
Mas quando falamos de serviços e materiais indirectos, compramos mais de 90% localmente.
Prevê vir a aumentar o número actual de fornecedores?
Procuramos sempre ter uma supply chain próxima. Às vezes temos contratos internacionais cujo abastecimento, depois, é garantido por delegações dentro do país.
Tendo em conta a inflação e a inflexão de compra de produtos de marca, por parte dos portugueses, em prol de novo reforço da procura de marcas de fabricante, até que ponto é que está a ter impacto no desempenho da Nestlé?
As marcas retalhistas tinham uma quota ainda baixa em Portugal, quando comparado com outros países. Mas o aumento da inflação e um poder de compra em quebra, fez com que tivessem o maior crescimento de toda a Europa, em termos percentuais. Claro que sentimos esse efeito, mas também nos dá um impulso para afirmarmos o que nos diferencia. E o que nos diferencia é, acima de tudo, as marcas que temos e temos marcas muito fortes. Daí, também, a necessidade que temos de investir nas nossas marcas, para partilhar o que é que elas aportam a nível nutricional, sensorial e de inovação.
O ano passado, por exemplo, quando lançámos Kit Kat Cereals, foi um dos maiores retornos que tivemos e, no fundo, o que fizemos foi trazer uma marca forte de chocolate para outra categoria.
Este espírito de inovar e ser diferente – como ter menos açúcar, ser mais saudável, ter benefícios funcionais – faz com que os consumidores continuem a comprar Nestlé.
Não vão ajustar preços ou alterar o volume das embalagens…?
Não está previsto virmos a alterar embalagens, mas sei que é um assunto importante. Uma empresa quando precisa de compensar o custo ou aumenta o preço ou reduz a quantidade. No fundo, é quase a mesma coisa mas a percepção, por parte do consumidor, é completamente diferente.
Tirando algumas matérias-primas, como o cacau que está com uma forte subida de preço, continuamos a trabalhar nas eficiências internas, pelo que não vamos reduzir investimento nas marcas e nunca reduzimos, também – mesmo nos anos de alta inflação – o investimento ao nível da sustentabilidade. Até porque temos metas até 2030 ou 2050 que nos comprometemos alcançar.
Assim como não reduzimos o investimento em inovação. São quase dois biliões de euros a nível mundial. Se cortarmos no Marketing e na inovação, deixamos de nos diferenciar.
Quais são os principais mercados para onde a Nestlé Portugal exporta hoje?
Exportamos muito para Espanha, França, para os principais países europeus.
Tendo em conta a legislação de produtos alimentares, como é que a Nestlé tem vindo a adaptar os seus produtos?
Muitas vezes a Nestlé, seja a nível das leis de nutrição ou Sustentabilidade, é quase um impulsionador para criar leis. Na redução de açúcar trabalhámos anos e fizemos três coisas essencialmente: uma redução gradual do açúcar nos produtos ao longo do tempo sem o consumidor dar conta (por exemplo no Chocapic), depois noutros adoptámos um lado científico (hidrólise enzimática, em que sem alterar o gosto consigo reduzir o açúcar) e, por fim, temos os consumidores que realmente querem produtos sem açúcar (como o Nestum Zero ou Cerelac 40% menos açúcares). Portanto, uma vez que chega a legislação, esta já não nos impacta.
Em Portugal, há muitas marcas da Nestlé que entendemos como nossas. Isso é um desafio?
Eu acho que é óptimo haver esse balanço. Por um lado temos um “head quarter” e uma escala que nos permite ter um apoio de “cash flow” se queremos fazer uma coisa, mas depois temos raízes locais muito fortes. A Nestlé conseguiu ser essa multinacional muito próxima dos portugueses, somos um dos mercados que mais marcas locais tem. No café, por exemplo, Buondi ou Sical, e depois a Nespresso que tem o glamour de uma marca internacional. Temos fábricas locais aqui. A nível de Sociedade e Economia isso permite ter uma integração e um peso importante dentro do país, em vez de sermos só uma delegação comercial, estamos muito enraízados. É uma vantagem.
Já trabalhou em 29 países. Há desafios adicionais para uma mulher CEO?
Nunca senti qualquer descriminação. Há 20 anos que trabalho no Grupo Nestlé, tenho três filhos e recebi ofertas de promoção quando estava grávida, bem como aumentos salariais quando estava de licença maternidade. Diria que o meu estilo de liderança define-se muito pelos valores que os meus pais me deram e não maioritariamente por ser mulher. Sendo a primeira mulher a assumir a liderança máxima da Nestlé em Portugal, isso traz uma certa responsabilidade ou simbolismo. A diversidade vai muito além do género. Para mim é muito importante não descriminar pela idade, devemos ter pessoas na chefia, umas que são mais novas e outras com uma certa experiência. Em Portugal temos culturas diferentes [há mais de 50 nacionalidades entre os colaboradores] mas isso para mim significa riqueza.
Mas qual é o seu estilo de Gestão?
Sou muito virada para pessoas. Para mim é muito importante as pessoas com quem eu trablho e é com elas que chegamos aos resultados. Não quero ser a chefe em que 50 pessoas preparam uma apresentação para mim e eu depois aprovo ou não aprovo. Eu quero trabalhar de forma a agregar valor à equipa e não ser uma barreira. Quando tenho uma opinião muito forte sobre um assunto posso decidir, mas sou mais de delegar porque sou de consensos.
Tendo em conta que já passou por 29 países, o que encontrou de diferente em Portugal?
Em Portugal, as pessoas são muito leais e ajudam-se, não são individualistas. Senti esse valor de trabalhar em conjunto e de chegar a algo muito forte. Ao nível de trabalho, na Suíça, dizem que Portugal é uma jóia. E isso tem a ver com a força das marcas e com o “approach” muito construtivo. Quando queremos fazer alguma coisa ou comunicamos, as pessoas conhecem-se, existe uma construção em conjunto com os parceiros.
O facto de ter estado sempre na Nestlé tem prós e contras. Quais é que são?
Nunca pensei que iria estar 20 anos na Nestlé. A Nestlé tem o valor do respeito, pelas pessoas, pelo meio ambiente. Há a possibilidade de uma carreira a longo prazo e de deixar as pessoas em quem acreditam experimentar novas coisas. Existe mobilidade. Por exemplo, temos pessoas da “supply chain” que foram para o marketing. E existe um sentimento de família mesmo sendo uma empresa tão grande. A desvantagem é perguntar-me a mim própria: “Será que eu não sou muito condicionada porque na Nestlé se faz ou não assim?”. É um risco que tento combater mantendo-me em contactos com outras pessoas e ver como se faz lá fora. O perigo é sempre o de ter filtros inconscientes.
Que legado gostava de deixar após este seu cargo na Nestlé Portugal?
Eu cuido da Nestlé Portugal alguns anos, como os meus antecessores fizeram. Depois, o meu dever é deixar a empresa melhor do que quando cheguei. Quando fizemos 100 anos convidámos todos os ex-directores gerais da Nestlé e cada um deles contou como acompanhou esse processo de transição. O ano de 2023 será sempre muito especial para mim em tantas coisas: o nosso chairman mundial veio visitar-nos, o Presidente da República e vários ministros. Não sei o que 2024/2025 vai trazer, mas acho que as pessoas vão sempre referir como comemorámos estes 100 anos.