A sua entidade patronal propôs um corte salarial. Sabe o que fazer?
O mundo tem destas reviravoltas. Quem trabalhasse na aviação comercial ou na hotelaria, em janeiro de 2020, tinha um verdadeiro arco-íris no horizonte: afinal, o setor do turismo era o que mais crescia e as viagens aéreas multiplicavam-se ao ponto de a construção de um segundo aeroporto internacional em Lisboa ser motivo de inflamado debate nacional.
Bastou um imprevisto para que tudo desabasse. A partir de março, meros dois meses depois, o setor via cair os seus lucros e entrava em prejuízos nunca vistos. Quase de um dia para o outro, o confinamento decretado para proteger a saúde pública fazia o turismo passar, num estalar de dedos, de bestial a besta.
A situação da TAP, a companhia aérea nacional, destronou o aeroporto no altar das grandes discussões do nosso país. A uma fase de lay-off, seguiu-se a reestruturação: dispensas em massa – milhares de trabalhadores a termo sem renovação do contrato, muitos outros com rescisões por acordo – e reduções de salário, com ou sem subtração de horas de trabalho, montaram um palco complexo para salvar a transportadora.
Uma assistente de bordo, cujo anonimato preservamos, aceitou, tal como tantos outros profissionais da empresa, uma redução de 25% do salário e de 15% do tempo de trabalho. A dieta salarial vai durar quatro anos, sendo que no segundo ano, 2022, a redução do vencimento foi de 20%, mantendo-se a diminuição do tempo de trabalho. A incerteza ainda era muita, e os trabalhadores cujos contratos não cessaram aceitaram a situação, pela grave crise que a companhia atravessou.
O acordo conseguiu-se por manifesta falta de alternativa, apesar de, por lei, não ser permitido diminuir salários. Ou melhor: baixar os vencimentos sem uma redução correspondente no tempo de trabalho. O corte salarial atingiu todo o pessoal de cabine (comissários e assistentes de bordo), mas foi ainda maior para comandantes e copilotos: 50% de redução durante quatro anos.
“Sinto que a maioria está conformada e com muito medo de ser despedida, apesar de não encontrarmos alternativa. Temos consciência de que a situação da empresa foi muito afetada pela pandemia”, adiantou. A hipótese de ir a tribunal resolver o assunto não foi ponderada, diz esta profissional.
O que resta a trabalhadores nesta situação? Resistir com a solução encontrada, e esperar por dias melhores.
Reduzir para sobreviver
Ora, a lei diz que só pode haver diminuição na retribuição-base e nas demais componentes do salário dos trabalhadores em situações excecionais de crise, que obriguem a empresa a reduzir ou suspender a atividade.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com as empresas que entraram em lay-off. Mal refeitos da crise de 2008 e dos anos seguintes, que levaram a cortes abruptos de rendimentos, empresas e trabalhadores viram-se perante a hecatombe económica da pandemia.
Mas, em tempos normais – ou quando recuperarmos da crise sanitária –, o que é regra?
Podem deixar de ser atribuídos “extras” como cartão de crédito ou viatura de serviço, pode haver redução em despesas de representação ou extinção de subsídios de refeição ou de transporte?
Em regra, não.
A redução pode basear-se numa alteração do contrato. Por exemplo, se alguém teve direito a um aumento salarial, por passar a ter isenção de horário de trabalho, esse acréscimo pode ser-lhe retirado assim que deixe de estar no referido regime.
Outro exemplo: redução do horário, com acordo do trabalhador. Não pode ser imposta pelo empregador. A redução salarial será proporcional à diminuição da carga horária. Imaginemos que o funcionário passa a trabalhar 30 horas semanais, em vez de 40: um salário de 2000 euros desce até 1500 euros.
Há ainda outro caso a ter em conta: o trabalhador passar para uma categoria inferior. Mas, mais uma vez, terá de concordar com a despromoção. E o fundamento tem de ser a necessidade premente da empresa ou do trabalhador.
O empregador pode, por exemplo, reduzir a retribuição-base, aumentando os subsídios?
Não, pois isso pode levar a uma redução das contribuições para a Segurança Social e a uma consequente diminuição das prestações sociais, como subsídios de desemprego ou de doença, ou ainda ao cálculo da reforma. Mas haveria ainda outra pedra no sapato do trabalhador nesta situação: as compensações e indemnizações por cessação do contrato.
Se, na empresa, houver um despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho ou, mesmo, se um eventual despedimento for considerado ilícito pelos tribunais, o montante a que tem direito é calculado tendo como referência apenas a retribuição-base e as diuturnidades. Estas correspondem àquela parte da retribuição correspondente à antiguidade na empresa, e que hoje poucos recebem. Ora, havendo redução da retribuição-base, o trabalhador seria prejudicado no cálculo de uma indemnização ou compensação.
Cabeça fria em situações quentes
É importante não esquecer que, independentemente de se tratar de uma situação difícil, se mantêm os direitos dos trabalhadores, em particular a proibição de reduzir a retribuição.
Comece por recusar qualquer proposta nesse sentido, embora não seja impossível a retirada de alguma regalia que não constasse do contrato, não tivesse sido negociada, nem fosse determinante na aceitação da oferta de trabalho (por exemplo, lugar de estacionamento disponibilizado pela empresa). Mas o trabalhador pode estar perante uma empresa “ligada à máquina” e ser obrigado a optar entre ceder no salário ou perder o emprego. Ou, ainda, pôr em causa o emprego dos colegas.
Significa que não deve ignorar a situação real da empresa, os custos que os cortes salariais evitarão e as previsíveis consequências se isso não acontecer. Em certos momentos, mais vale um salário menor do que uma empresa a fechar portas. Isto não quer dizer que se baixem os braços e se deixe que o processo siga o seu rumo, sem justiça nem seriedade, nos ajustamentos que estão na mesa das propostas.
Se a redução nas retribuições não for inevitável e transversal, ou se poupar quem tem os salários mais elevados, deixando de parte, por exemplo, órgãos de administração ou gerência ou os mais altos cargos da organização, os trabalhadores devem pôr-se em campo.
Transparência e negociação
Por isso, é fundamental uma política transparente por parte da empresa, com a correta divulgação dos dados que originem a necessidade de acertos salariais. Devem ser chamados a pronunciar-se os órgãos representativos dos trabalhadores (sindicato ou comissão de trabalhadores) ou, não existindo, deve ser formada, especialmente para o efeito, uma comissão que represente os trabalhadores afetados.
O futuro da empresa, o seu e o dos colegas podem exigir, portanto, aceitar uma redução salarial. Deve fazê-lo por escrito, indicando com exatidão os termos em que a aceita. O ideal é que o ajustamento salarial seja temporário, enquanto se mantiver a situação de crise da empresa ou do setor em que está inserida. E esperar por tempos melhores.
Situações em que o salário pode ser reduzido sem o acordo do trabalhador
Antes de mais, ninguém recebe o salário por inteiro: todos os meses, é retida uma parte destinada a compromissos fiscais, IRS e contribuições para a Segurança Social.
– Penhoras de salário para pagamento de dívidas ao Fisco, à Segurança Social ou a outras entidades, desde que exigidas por lei ou por uma decisão judicial, podem justificar uma diminuição do que se recebe ao fim do mês. Por exemplo, no caso de pensões de alimentos a ex-cônjuges ou aos filhos, o empregador será notificado para penhorar o salário. O corte pode ser de um terço da retribuição, mas o trabalhador não pode receber, por mês, menos do que o salário mínimo nacional (760 euros a partir de janeiro de 2023).
A penhora pode ser maior, se ficar garantido que lhe é entregue, pelo menos, o triplo do salário mínimo (2.280 euros a partir de janeiro de 2023). As diminuições podem justificar-se ainda por indemnizações que o trabalhador tenha de pagar à entidade patronal. Mas, também aqui, só é possível se forem reconhecidas pelos tribunais.
– Sanções pecuniárias aplicadas pela prática de infrações disciplinares são outra razão para cortes. Uma das punições previstas na lei, juntamente com repreensão, repreensão registada, perda de dias de férias, suspensão com perda de retribuição e despedimento, é a aplicação de uma “multa”.
– Amortizações e juros de empréstimos concedidos pelo empregador, assim como o pagamento antecipado de parte ou da totalidade do salário, também podem ser compensados por via do vencimento.
– Valores relativos a refeições no local de trabalho, a uso de telefones e a outras despesas, quando solicitadas pelo trabalhador e que o empregador tenha suportado com o consentimento daquele.
– Comissão de serviço, ou seja, situações em que o trabalhador passa a exercer outras funções (normalmente, funções de chefia) por determinado período, com acréscimo da retribuição. Quando a comissão cessa, o trabalhador regressa às funções que exercia até ao início da comissão com um salário mais baixo.
– Em situações de crise empresarial, o trabalhador pode ver reduzida a retribuição desde que isso se revele indispensável a assegurar a viabilidade da empresa e a manutenção do posto de trabalho. É o caso do lay-off, que tem a duração de seis meses até um ano (em caso de catástrofe ou outra ocorrência que tenha afetado gravemente a atividade normal da empresa).
O lay-off pode contemplar a redução do tempo de trabalho ou a suspensão do contrato. No entanto, o trabalhador terá sempre direito a auferir o montante um mínimo igual a dois terços da remuneração normal ilíquida ou o valor da retribuição mínima mensal garantida (760 euros a partir de janeiro de 2023), consoante o que for mais elevado.
E se houver abusos?
Queixe-se à ACT
O primeiro passo face a um abuso da entidade patronal ou a uma situação que deixe o trabalhador na dúvida é apresentar o caso à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Esta pode pronunciar-se a favor da ilegalidade da medida tomada pela empresa, solicitando que volte atrás e, eventualmente, aplicando-lhe uma coima, que pode ser pesada.
Recorra à mediação laboral ou aos tribunais
Outras possibilidades são o recurso à mediação laboral, caso o trabalhador entenda que ainda é possível um acordo, ou aos tribunais, para que decidam se o corte na retribuição é ou não ilegal.
Rescinda o contrato com justa causa
O trabalhador também pode decidir-se pela resolução do contrato com justa causa. Se lhe for dada razão, terá direito a uma indemnização entre 15 e 45 dias de retribuição-base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade (proporcional para ano incompleto). A indemnização nunca poderá ser inferior a três meses de retribuição-base e diuturnidades.
No entanto, é preciso provar que a conduta do empregador foi de tal forma grave que impossibilitou a manutenção do contrato. Ainda que considerem ilegal a redução da retribuição, os tribunais podem entender que isso não inviabilizaria a manutenção do contrato, havendo outras formas de reação por parte do trabalhador.