A IA vai transformar Hollywood – mas não será uma história de terror
Por: Katie Notopoulos, Fast Company
As personagens e o cenário pareciam familiares, e as vozes estavam quase correctas, mas algo estava ligeiramente errado. No episódio, Eric Cartman está desiludido com o facto de os actores de Hollywood terem entrado em greve. Por isso, cria uma aplicação deepfake que consegue colocar a imagem de qualquer actor em qualquer filme e, com um amigo, apresenta-a a Marc Andreessen. Tentam também recrutar Harrison Ford, Meryl Streep e Tom Cruise, mas descobrem que os actores vão para Marte com Elon Musk.
O mini-episódio não foi feito pelos criadores de South Park, mas sim por uma empresa chamada Fable Simulation, que foi buscar recursos à série animada para mostrar a sua nova ferramenta de IA generativa. Chamada Showrunner AI, esta ferramenta consegue escrever, dirigir, editar e dar voz a episódios de um programa, bastando para isso um pequeno estímulo. Sem surpresa, houve uma reacção mista à demonstração, apresentada apenas algumas semanas depois de o Screen Actors Guild e o Writers Guild of America (WGA) terem entrado em greve, em parte devido à forma como a IA poderia ser utilizada em Hollywood.
O episódio falso não é propriamente “cómico” – nem vale a pena ser visto por alguém que não esteja interessado na tecnologia de Fable. Mesmo assim, representa os receios mais profundos dos criativos de Hollywood e do público relativamente à IA: que, num futuro próximo, estejamos todos a assistir a um entretenimento sintético gerado da forma mais barata possível por estúdios e estações, escrito por robôs e representado por versões geradas por computador das estrelas de cinema, uma versão oca e substituta dos filmes que adorámos.
Mas a Fable vê as coisas de outra forma. A empresa espera que a sua marca de conteúdos personalizáveis ofereça aos telespectadores uma nova forma de interagir com os programas de televisão. A empresa, que angariou fundos do Founders Fund e do 8VC, planeia lançar uma série animada gerada por IA que é uma sátira da vida em Silicon Valley. A Fable criará a primeira temporada utilizando a IA. Em seguida, entregará o programa a um grupo seleccionado de criadores, que utilizarão a sua ferramenta Showrunner para desenvolver uma segunda temporada, com os episódios originais a servirem de dados de treino. Eventualmente, a geração de episódios será aberta aos espectadores, que poderão utilizar a IA da Fable para conceber as suas próprias histórias.
O fundador da Fable, Edward Saatchi, prevê um futuro em que exista uma espécie de “Netflix da IA” que permita aos espectadores escolherem entre uma série de episódios personalizados dos seus programas favoritos. «[Poderia] também falar com a televisão e dizer: “Gostaria de ter um novo episódio do programa e talvez colocar-me nele, e fazer com que isto ou aquilo aconteça no episódio”», explica Saatchi, que fundou o agora extinto estúdio de conteúdo de RV da Oculus antes de lançar a Fable em 2018. «Nos próximos três a cinco anos, isso parece muito viável para toda a indústria, para que a relação entre o público e o criador comece a desaparecer.» Pelo menos, é essa a visão.
Os pioneiros têm a mania de apregoar que as novas tecnologias vão transformar radicalmente o nosso mundo. Normalmente, porém, essa tecnologia que mudará o mundo transforma-se em algo intrigante, mas muito diferente das promessas. Os NFT não substituíram as obras do Louvre, mas essa forma de autenticação de blockchain pode servir para identificar a proveniência de coleccionáveis digitais. Também não estamos todos a usar Oculus amarrados à cabeça e a passar os nossos dias no metaverso, mas há um futuro potencial para os óculos portáteis (veremos o que acontece quando o da Apple for lançado). A promessa (ou ameaça) da IA generativa de alterar completamente como consumimos entretenimento parece igualmente exagerada.
«Quase todas as pessoas que falam sobre o que vai acontecer neste espaço não pensam em como as pessoas consomem realmente os media e no que querem», afirma o escritor-comediante Adam Conover, apresentador da série da Netflix “The G Word” e membro do conselho de administração do WGA West. Embora o WGA tenha negociado protecções contra a IA para os escritores no seu novo contrato com a Alliance of Motion Picture and Television Producers, Conover não está muito preocupado. «Talvez haja algum amigo gerado por IA que apareça no Twitch e as pessoas o usem em segundo plano enquanto fazem os trabalhos de casa», refere. «Mas isso não irá competir com os filmes. Os filmes são: “Quero sentar-me no escuro. Quero ver a pessoa mais gira do mundo a dizer as coisas mais engraçadas do mundo e a saltar de mota num penhasco.” É isso que as pessoas querem.»
De facto, à medida que Hollywood começa a usar as possibilidades da IA generativa, os desenvolvimentos mais encorajadores até agora parecem menos susceptíveis de substituir os humanos do que de os ajudar.
“Thank You for Not Answering”, do realizador Paul Trillo, é uma curta experimental sobre saudade e solidão – interpretada pela IA. Trillo entregou a criação dos efeitos visuais para o seu filme à ferramenta Gen-2 da empresa de investigação de IA Runway, que gerou excertos surreais de um homem e de uma mulher. A voz-off que acompanha o filme, uma mensagem de um homem para um amor há muito perdido, foi feita com a IA de voz da ElevenLabs.
Não há nada no filme, que estreou na Primavera passada, que Trillo tente fazer passar por “real”. As feições dos seres humanos são esquisitas e estranhas, quase assombradas. A certa altura, uma mulher vira a cabeça, mas os seus ombros torcem para o outro lado, sugerindo que o alvo da afeição do homem pode ser parente de Linda Blair de “O Exorcista”.
Trillo trabalha frequentemente com ferramentas de IA para criar efeitos visuais alucinantes. Recentemente, dirigiu um vídeo musical para o produtor electrónico francês Jacques, em que o músico passeia pelo Louvre enquanto alucinações da arte ganham vida, graças a ferramentas da Runway e da Stable Diffusion. «Estou menos interessado em [utilizar a IA para fazer] coisas que posso filmar com uma câmara do que em criar imagens que não conseguia criar antes», explica Trillo.
Enquanto o mundo da arte experimenta o potencial alucinatório da IA, as equipas de efeitos visuais utilizam-na para expandir as possibilidades de contar histórias. Muitos efeitos visuais tradicionais envolvem tarefas realmente mundanas, como editar algo pixel a pixel, quadro a quadro – um trabalho caro e que consome muito tempo, explica Lon Molnar, director de criação da empresa de efeitos visuais Monsters Aliens Robots Zombies (MARZ). Fundada em 2018, a empresa de Toronto foi pioneira na utilização de IA generativa de nível hollywoodiano para obter melhores efeitos visuais em menos tempo e com menos custos para os estúdios. Deu vida a Thing, a mão com vida própria da série “Wednesday”, da Netflix, transformou Paul Bettany no androide Vision para o “WandaVision” da Marvel, e rejuvenesceu um vilão interpretado por Willem Dafoe para o filme da Marvel-Sony “Homem-Aranha: Sem Volta a Casa”.
Embora a tecnologia de Molnar poupe dinheiro aos estúdios, ele não prevê que os êxitos de bilheteira reduzam os seus orçamentos como resultado disso. «O que acontece é que o público exige mais, certo? Mais efeitos visuais, mais espectáculo», observa. «Quando “A Guerra dos Tronos” foi lançado, havia dragões voadores a incendiar aldeias cheias de pessoas. Antes, não tínhamos isso na televisão. Agora que já vimos isso, toda a gente espera tê-lo.» Assim, em vez de termos dragões ou Caminhantes Brancos em apenas alguns episódios, podíamos tê-los em todos os episódios. Em vez de apenas dois dragões, podemos ter 10 ou 100.
A IA pode tornar os êxitos de bilheteira mais espectaculares, mas as coisas vão tornar-se ainda mais interessantes à medida que os programas mais pequenos e os cineastas independentes se apoderarem destas ferramentas. A MARZ já trabalhou com a comédia de vampiros “O Que Fazemos nas Sombras”, produzida por Taika Waititi e Jemaine Clement, para criar um enorme troll que vive em Staten Island para um dos seus episódios. Criaturas tão bem concebidas são normalmente encontradas em filmes de fantasia de grande orçamento, não em comédias pequenas. Mas nos próximos cinco a 10 anos, diz Molnar, os filmes e programas de menor orçamento terão acesso fácil a efeitos com a qualidade da Marvel. Com a tecnologia de envelhecimento, os argumentistas podem criar narrativas mais ambiciosas que saltam no tempo. Com a capacidade de criar paisagens urbanas convincentes, os dramas históricos podem ir muito para além dos poucos locais cuidadosamente explorados que normalmente servem de cenário.
Ao nível mais básico, a IA generativa pode tornar os filmes de baixo orçamento tremendamente mais polidos. Trillo refere o elevado custo de voltar atrás para refazer uma cena para captar uma linha de diálogo, corrigir um erro de continuidade ou inserir um elemento que, em retrospectiva, é essencial para o enredo. Nada disto pode ser feito com um orçamento apertado. Mas com a IA, é possível «gerar um modelo de vídeo [com base] em todas as filmagens da cena e, em seguida, gerar novas filmagens com base na fotografia captada», constata. «Isso irá reescrever as regras da pós-produção.»
Também há vantagens para a distribuição de filmes. A mais recente ferramenta de IA da MARZ, a LipDub.AI, melhora as dobragens em língua estrangeira manipulando a boca do actor, eliminando a incompatibilidade, muitas vezes desagradável, entre os lábios e a língua. A dobragem em língua estrangeira é rara na América do Norte, onde estamos habituados a que a pequena quantidade de conteúdos estrangeiros que consumimos seja legendada. No entanto, em todo o mundo, a dobragem continua a ser extremamente comum e o público está habituado a ver séries e filmes norte-americanos nas línguas locais.
Os benefícios para um filme de grande orçamento são claros, sublinha Jonathan Bronfman, director-executivo da MARZ. Se conseguirmos fazer com que o Homem de Ferro de Robert Downey Jr. pareça um falante fluente de mandarim, «esse filme vai gerar mais receitas na China porque a experiência de visualização é melhor», explica. Mas esta tecnologia, que está a ser desenvolvida por várias empresas diferentes, também pode abrir a porta a filmes e programas de televisão de outros países para entrarem mais facilmente no mercado de língua inglesa. Recentemente, a Netflix tem tido um enorme sucesso com séries em língua estrangeira, como o thriller francês “Lupin” e o sul-coreano “Squid Game”, com muitos norte-americanos a optarem por ver a versão dobrada. Com uma dobragem melhor, ainda mais norte-americanos poderão escolher esta opção – permitindo que cineastas emergentes de todo o mundo encontrem um público maior no estrangeiro.
Imagens mais nítidas, efeitos especiais melhorados, custos de pós-produção mais baixos, distribuição global mais ampla – isto não parece exactamente o guião dos piores pesadelos de argumentistas e actores. Até mesmo Trillo, que está tão envolvido com a tecnologia de IA generativa como qualquer outra pessoa em Hollywood, acredita que a melhor produção de filmes virá de algo inatamente humano: a experiência pessoal. «É isso que dá origem a histórias interessantes», diz. «São as coisas que não estão nos dados de treino.»