A história da guerra na Ucrânia mede-se em mortos: há um homem que os traz para casa, um de cada vez

A guerra da Ucrânia, que já ultrapassou os dois anos de duração, criou ‘heróis’ ucranianos que dão o seu contributo como podem: é o caso de Oleksii Yukov, um instrutor de artes marciais de 38 anos, cuja função é dar descanso a muitas famílias – ele lidera uma equipa de voluntários que recolhe corpos na Ucrânia.

“Não chore. Porque se ficar fraca, ninguém a vai ajudar. Não chore na frente de ninguém, eles não valem a pena. Chore apenas diante do túmulo do seu filho”, indicou Yukov, numa conversa telefónica com uma mãe cujo filho foi ferido em batalha e deixado para trás. O homem diz o mesmo a todas as mães, indicou a ‘Associated Press’: recomenda para falarem dos seus filhos mortos para que sejam lembrados. No entanto, há uma pessoa em particular que Yukov não quer ver esquecida: Oleksandr Romanovych Hrysiuk, conhecido como Sasha para a sua mãe Olha.

O verdadeiro custo da guerra na Ucrânia – e as probabilidades enfrentadas por cada lado – pode ser medido em corpos. Mais de meio milhão de pessoas foram mortas ou gravemente feridas em dois anos de guerra na Ucrânia, segundo estimativas da inteligência ocidental – um número de vítimas humanas não visto na Europa desde a II Guerra Mundial.

A Rússia tem 3,7 vezes mais homens em idade de lutar do que a Ucrânia em 2022, segundo dados do Banco Mundial. O que significa que, embora a Rússia tenha sofrido quase o dobro de baixas que a Ucrânia, segundo estimativas da inteligência ocidental, numa base per capita, as perdas da Rússia continuam a ser inferiores às da Ucrânia.

Yukov entende que, para pessoas distantes, a guerra é geopolítica, a morte pode ser contada em números e o dinheiro é mais importante do que os homens. Mas ele tem outra visão. “A guerra tem uma face”, disse. “Morte, estupidez e horror.”

Sasha desapareceu sem deixar rasto

A última vez que Olha Hrysiuk conversou com o filho, Sasha perguntou sobre as colheitas da primavera, a horta, os cavalos e as vacas, a 15 de maio de 2022. Sasha desapareceu no dia seguinte e durante 3 dias Olha conheceu apenas o silêncio. Não lhe era estranho, porque Sasha lhe disse que ia sair numa missão e que poderia estar fora de contacto.

No quarto dia, a mãe ligou para o chefe da sua aldeia, que contactou o escritório militar mais próximo, que falou com a sua unidade militar para saber que Sasha estava desaparecido – para encontrar o estudante de fisioterapia, que tinha recebido uma cruz de prata da mãe antes de ser convocado, a 3 de abril, a nora de Olha conseguiu falar com alguns soldados da unidade de Sasha através das redes sociais. Disseram-lhe que Sasha estava morto, lamentaram não ter podido trazer o seu corpo porque o bombardeamento era muito pesado. O que puderam fazer foi escondê-lo numa cave em Dovhenke, uma aldeia rural que caiu nas mãos dos russos.

Sasha, de 27 anos, durou exatamente seis semanas na guerra. Olha estava determinada a trazer o filho de volta, fosse qual fosse o estado dele.

Mas como?

Olha começou a fazer ligações – para a Cruz Vermelha ucraniana, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, o Escritório Nacional de Informação da Ucrânia, os militares ucranianos, a Sede de Coordenação para o Tratamento de Prisioneiros de Guerra, todas as linhas diretas e grupos de voluntários que conseguiu encontrar. Inclusive escreveu cartas ao Ministério da Defesa e ao próprio presidente Volodymyr Zelensky. Foram seis meses de agonia para Olha. “Eu simplesmente não poderia viver sem tentar”, disse. “Como é possível nem ver os ossos do meu filho! Estava até pronta para ir pessoalmente para Dovhenke!”
Até surgir o contacto da ‘Black Tulip’: se eles não conseguirem, ninguém consegue, disseram-lhe.

‘Black Tulip’ é o nome da rede de voluntários de recolha de corpos com quem Yukov trabalhou em 2014, quando a Rússia tomou a Crimeia e invadiu o leste da Ucrânia. O instrutor de artes marciais viria a fundar o seu próprio grupo, o ‘Ptatsdarm’. É função de Yukov trazer todos de volta.

Já recolheu fragmentos de um homem espalhados por árvores para devolver os restos à mãe do soldado; retirou restos humanos quentes de um helicóptero em chamas. Houve uma mãe que lhe pediu que recuperasse o braço do filho, pendurado numa determinada árvore: assim o fez. Vasculhou em fezes para recuperar ossos ou dentes de homens cujos cadáveres foram devorados por porcos. “Se fosse o seu filho morto, roeria a m**** toda com os dentes para enterrar o corpo”, frisou.

Yukov corre contra o tempo, que devora cadáveres, para trazer todas as almas para casa. Mas há muitos. Ele não consegue colocar todos no carro, mesmo que os amarre no teto ou os carregue nas mãos. “Às vezes eu só quero gritar. Gritar. Porque se percebe a loucura e a dor que isso é”, garantiu. “Entendo que não tenho vida suficiente para terminar este trabalho de procura pelos mortos.”

No final do verão de 2022, Olha e o seu outro filho contactaram Yukov e enviaram fotos de Sasha e da sua tatuagem, assim como imagens satélite da sua localização aproximada. Yukov chegou a Dovhenke em setembro, pouco depois da partida dos russos. Mais de 90% dos edifícios foram destruídos ou danificados e foi difícil encontrar a cave onde a unidade de Sasha disse tê-lo deixado. Além disso, havia minas.

A 19 de setembro, Yukov deu um passo e ouviu um clique. A força da explosão derrubou-o no chão. “Estava deitado e senti como se não tivesse pernas”, descreveu Yukov. Foi levado ao hospital pela sua equipa, com as pernas amarradas com um torniquete. No rosto, tinha um pano branco ensanguentado no local onde costumava ficar o seu olho direito.

Duas semanas depois, Yukov regressou a Dovhenke, com os olhos tapados como os de um pirata, e tropeçou de muletas a tentar encontrar Sasha. Era muito perigoso e foi preciso esperar mais algumas semanas até que fossem removidas as minas. Nessa altura, Yukov tinha um novo olho de vidro, incrivelmente real até ele bater com os nós dos dedos.

Em Dovhenke, um pequeno gato cinza, com o nariz ferido, saltou para o ombro de Yukov para depois circular num ponto nos destroços. A equipa começou a escavar ali. Pouco sobrava de Sasha, sob os escombros de um prédio destruído. Havia marcas de incêndio e fragmentos de morteiros de 120 mm, assim como sinais de uma grande explosão. Conseguiu recuperar partes do corpo de Sasha, colocados num grande saco branco, assim como a cruz de prata oferecida por Olha.

Desde o início do conflito, Yukov já terá recolhido mais de 1.000 corpos: mais de metade eram russos. “Não estamos a lutar contra os mortos”, explicou. “Não separo os corpos dos soldados russos dos ucranianos. São todos almas para mim.”

Olha esperou durante muito tempo por notícias. Quando Yukov enviou uma fotografia do colar encontrado na cave de Dovhenke, a mãe do soldado caído em combate reconheceu-o imediatamente. Olha nunca mais conseguiu ver o rosto do filho. Quando recuperou o corpo, Sasha não tinha mais rosto.

Olha enterrou o que restou de Sasha a 16 de março de 2023 no cemitério da sua aldeia. “É muito importante para mim saber que o corpo dele está ao meu lado”, referiu. “Estamos todos à espera da vitória. Para mim, é o mais importante. Se não vencermos, por que morreu meu filho – e tantos outros filhos?”

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