A estatística fantasma: Centenas de mortes sob custódia policial na UE permanecem ignoradas

Entre 2020 e 2022, foram registadas pelo menos 487 mortes sob custódia ou em operações policiais em treze países da União Europeia que disponibilizam dados sobre o tema. Esta situação levanta questões sérias sobre a responsabilidade das forças de segurança e a transparência na investigação de mortes relacionadas com a polícia.

Um dos casos mais emblemáticos é o de Yazan Al Madani, um jovem sírio que, em 30 de maio de 2018, foi morto pela polícia em Roterdão, nos Países Baixos. O seu pai, Momtaz Al Madani, relata que, após Yazan ter uma crise psicótica, pediu ajuda à polícia, mas em vez disso, os agentes responderam com força letal. “Gritei que meu filho estava doente, que precisava de ajuda. Não ouviram, vieram para matá-lo”, afirmou Momtaz. Após a intervenção, Yazan foi alvejado e morreu pouco depois, levando o Ministério Público neerlandês a decidir não processar os agentes, alegando legítima defesa. Desde 2022, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos investiga o caso.

Dados alarmantes de mortes sob custódia

Os dados citado pelo El Confidencial indicam que, entre 2020 e 2022, a França registou o maior número de mortes, com 107 casos. Seguem-se a Irlanda, com 71 mortes; Espanha, com 66; e Alemanha, com 60. Contudo, quando se analisa o número de mortes em relação à população, a Irlanda apresenta a taxa mais elevada, com 1,34 mortes por 100.000 habitantes, em comparação com 0,14 em Espanha e 0,06 em Portugal. É importante notar que o número real de mortes pode ser maior, uma vez que os dados fornecidos por vários países são frequentemente incompletos.

A Comissão do Defensor do Povo da Garda Síochána na Irlanda destaca que “ao realizar comparações com outras jurisdições, é crucial entender como esses incidentes são definidos e categorizados, o que pode variar consideravelmente”. Embora a ONU recomende, desde 1991, a divulgação pública de todas as mortes relacionadas com as forças policiais, apenas alguns países da UE, incluindo Portugal, Dinamarca, França e Irlanda, disponibilizam esses dados de forma acessível.

A falta de definição e metodologia

Em 2023, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos pediu a todos os Estados que fornecessem dados sobre mortes sob custódia. O Conselho da Europa confirmou a ausência de dados e destacou a falta de uma definição comum na UE sobre o que constitui uma morte sob custódia e como estas devem ser investigadas. “O mais grave é que a ninguém parece importar que estas pessoas morram”, lamenta Jorge del Cura, um ativista espanhol que acompanha esses casos há décadas e que foi premiado com o Prémio Nacional de Direitos Humanos em 2019.

Em Espanha, o Ministério do Interior apenas compila dados sobre mortes ocorridas em contacto com a Polícia Nacional e a Guarda Civil, enquanto os governos regionais têm informações sobre as suas próprias forças policiais. No entanto, não existe um registo centralizado que unifique as informações sobre mortes envolvendo a polícia local.

Protocolo de Minnesota: uma diretriz ignorada

O Protocolo de Minnesota, uma diretriz da ONU, estabelece que todas as mortes que possam ser atribuídas ao Estado ou aos seus agentes, seja por ação ou omissão, devem ser investigadas. O protocolo especifica que o Estado tem a obrigação de investigar qualquer morte que ocorra em circunstâncias suspeitas, identificando falhas sistémicas que levaram à morte e propondo medidas para evitar casos semelhantes. Contudo, nenhum país da UE cumpre totalmente estas recomendações.

Ivan du Roy, um jornalista do meio francês Basta!, comenta que em França este tema continua a ser um tabu. “Se acusas a polícia, estás contra ela”, afirma. O jornal é um dos poucos a compilar informações sobre mortes sob custódia desde 2014. Na verdade, a organização civil Controle Alt Delete, que investiga casos nos Países Baixos desde 2016, revelou que o Ministério Público e a polícia não disponibilizavam todos os dados relevantes. “Forçámos o governo a informar sobre todos os casos de mortes relacionadas com a polícia”, afirma Jair Schalkwijk, jurista e cofundador da organização.

Vítimas mais vulneráveis: migrantes e pessoas com doenças mentais

Entre os treze países que disponibilizaram dados sobre mortes em contacto com a polícia, apenas a Hungria fornece informações sobre a nacionalidade das vítimas, enquanto outros países, como a Áustria, a República Checa, a Alemanha e a Espanha, fazem-no em alguns casos. Destes, 58 casos de morte foram identificados, com metade das vítimas a serem de origem estrangeira. Mathieu Rigouste, sociólogo e ativista, relaciona a elevada incidência de mortes entre a população migrante com a história colonial de países como o Reino Unido, a Espanha e a França. “Os crimes policiais concentram-se nos proletários não brancos”, observa Rigouste, citando o caso de Adama Traoré, um jovem de 24 anos, que morreu sob custódia policial em França.

A questão da saúde mental também é uma preocupação significativa. Apesar de muitos países não fornecerem informações específicas sobre a condição mental das vítimas, apenas Dinamarca, Espanha, França e Alemanha confirmaram que, em 43 casos, a pessoa tinha problemas de saúde mental ou estava em “estado de agitação”. Dados anteriores dos Países Baixos indicam que, entre 2016 e 2020, 28 das 50 pessoas falecidas apresentavam doenças mentais.

Schalkwijk, da Controle Alt Delete, sublinha que, apesar de os dados indicarem que muitas das pessoas que morrem em situações policiais sofrem de doenças mentais, não houve mudanças no sistema policial para abordar esta questão. “Não mudaram nada, apesar de saberem que muitas das pessoas que morrem nas mãos da polícia têm problemas de saúde mental”, alerta.

Causas das mortes: disparos com arma de fogo em primeiro lugar

Os disparos com arma de fogo por agentes da polícia são a principal causa de mortes sob custódia ou em operações policiais. Em países que disponibilizaram informações sobre as causas das mortes, mais de um terço das mortes entre 2020 e 2022 resultaram de ferimentos por armas de fogo, totalizando pelo menos 98 vítimas. Destas, 41 ocorreram em França e 27 na Alemanha. O aumento no número de mortes por disparos começou em 2017, após reformas na Lei de Segurança Pública do governo de François Hollande que ampliaram as situações em que os agentes podiam usar a força letal.

Além das mortes por disparos, também se verificaram casos em que foram utilizadas armas não letais, como pistolas taser, que em algumas situações não respeitaram as recomendações dos fabricantes, especialmente no que diz respeito ao uso contra pessoas em estado de agitação. Entre 2020 e 2022, foram registados pelo menos oito casos de morte envolvendo o uso de pistolas taser na Alemanha, Países Baixos e França, sendo que, em cinco desses casos, as vítimas apresentavam problemas de saúde mental.

A segunda causa mais comum de morte foi classificada como “natural”, com 53 vítimas, sendo esta uma categoria que é muitas vezes utilizada de forma vaga, especialmente em Espanha. Um caso notório é o de Stephan Lache, que morreu sob custódia policial em Madrid em 2018. Após ser detido, Lache foi encontrado morto no dia seguinte na sua cela, após ter sido agredido e medicado sem a sua consentimento.

Condições críticas de custódia

Muitas mortes catalogadas como “naturais” envolviam indivíduos sob efeito de drogas ou álcool. Na Irlanda, a embriaguez em espaço público é considerada crime, e o Defensor do Povo Irlandês não fornece dados específicos sobre as circunstâncias de tais mortes. Contudo, recomendações foram feitas para evitar mortes sob custódia relacionadas com a intoxicação. Entre 2020 e 2022, pelo menos 19 pessoas em estado de embriaguez morreram nos calabouços da polícia francesa devido a problemas de saúde.

Em 2023, o Departamento de Polícia do Ministério do Interior da Finlândia confirmou que 16 mortes entre 2013 e 2023 foram causadas por intoxicações, salientando que o abuso de álcool e drogas foi um fator em mais de metade dos casos. A polícia finlandesa está a tentar mudar a prática de levar pessoas em estado de embriaguez para a esquadra, especialmente quando estas não representam um risco para a segurança pública.

Entre 2020 e 2022, foram registados pelo menos 43 suicídios sob custódia policial, a maioria dos quais em Espanha, França e Dinamarca. Em países com menos mortes sob custódia, como a Letónia e a Hungria, os suicídios representaram uma percentagem significativa das mortes. Na Alemanha, alguns estados não incluem suicídios nos relatórios, a menos que tenham sido precedidos por ações coercivas da polícia.

Falta de investigação e consequências para os agentes

Apesar das recomendações da ONU para que as investigações de mortes relacionadas com forças de segurança sejam submetidas a escrutínio público, a informação sobre estas investigações é escassa. Em muitos casos, as autópsias são as únicas investigações realizadas. O Ministério do Interior austríaco destaca que em 2022, dos 132 casos de mortes relacionadas com a polícia, apenas 13 resultaram em investigações formais. O que resulta é que, de acordo com os dados disponíveis, apenas 97 das 487 mortes registadas entre 2020 e 2022 resultaram em consequências legais para os agentes envolvidos, sendo que a maioria dessas consequências foi mínima.

Nos últimos anos, a perceção pública sobre a polícia tem-se deteriorado. Cidades como Londres, Paris e Madrid têm visto crescentes manifestações contra o uso excessivo da força policial. O número de casos de mortes sob custódia é uma questão que, se não abordada, poderá continuar a alimentar o descontentamento e a desconfiança nas forças de segurança.

A invisibilidade das mortes sob custódia policial na União Europeia é uma questão urgente que exige uma resposta robusta e um compromisso sério para garantir que as vidas perdidas não sejam esquecidas. A falta de dados claros, investigações inadequadas e a impunidade que muitas vezes envolve os agentes da lei demonstram uma necessidade de reforma profunda no sistema de justiça e nas práticas policiais. É crucial que os Estados-Membros da União Europeia implementem diretrizes claras e coerentes para garantir que cada morte sob custódia seja tratada com a devida diligência e transparência, respeitando os direitos humanos e promovendo a justiça.

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