500 M€ e 97 projetos depois, incêndios continuam a devastar Portugal: E “não estamos a caminho de uma solução. Muito longe disso”, lamenta especialista
Os incêndios em Portugal não têm dado descanso às autoridades nacionais, particularmente os bombeiros, com Odemira a ser o palco mais fustigado pelas chamas até ao momento.
O Ministério do Ambiente e da Ação Climática revelou recentemente que 2023 é o ano com o maior esforço de sempre na prevenção e combate aos incêndios, com uma verba de cerca de 500 milhões de euros. Em 2017, o investimento em prevenção atingia cerca de 20%, indo os restantes 80% para o combate. De acordo com o Governo, atualmente, cada um destes eixos conta com cerca de 50%.
O ministério acrescentou ainda que “têm vindo a ser adotadas um conjunto de medidas no âmbito da reforma da floresta, de modo a tornar o sector florestal mais resiliente e atrativo, enfrentar as alterações climáticas e alcançar os objetivos de neutralidade carbónica em 2050, acompanhadas de um reforço financeiro robusto”.
Apesar do reforço ‘musculado’ a nível financeiro, agosto voltou a lançar dúvidas sobre a eficácia da prevenção dos incêndios: de acordo com dados provisórios do ICNF, a área ardida em meio rural atingiu 25.279 hectares, 6.155 dos quais destruídos em apenas 24 horas e mais de metade (58%) nos primeiros oito dias de agosto.
Este cenário obriga a uma questão: foi bem feita a prevenção? Perguntámos a Duarte Caldeira, presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil, e a resposta envolve várias vertentes mas com uma conclusão óbvia: é necessário muito mais, a diversos níveis – do Governo até ao habitante rural -, do que um ‘saco de dinheiro’. Até porque as soluções – ou melhor, as garantias de um risco menor, já existem.
O estudo dos incêndios em Portugal está feito, revelou o especialista. “Entre 2018 e 2020, a Assembleia da República criou o Observatório Técnico Independente, que foi composto por 10 elementos – entre investigadores e professores – para analisar a problemática dos incêndios rurais em Portugal e produziu um conjunto de relatórios. Vejamos o caso do incêndio de 2018 na serra de Monchique. Nesse estudo, sustentámos que foi verificado que, na sequência do incêndio, ficou muito material queimado no terreno, o que é natural. Passados quatro anos, encontrámos em Monchique madeira queimada decorrente desse incêndio e que não foi atempadamente recolhida. Mas será esta uma questão exclusiva deste incêndio? Infelizmente, não é”, exemplificou, para descrever um cenário complexo.
O especialista referiu que a prevenção é “subjetiva”. Ou melhor, “falar de combate é óbvio mas falar de prevenção é subjetivo. O investimento do Governo, que é correto, tem de fazer perceber em que medida pode resultar numa redução das vulnerabilidades da nossa floresta”, precisou.
E são muitas, referiu. “Há ações necessárias de médio e longo prazo, desde logo o ordenamento florestal, a tentativa de dar escala à estrutura fundiária do país caracterizada por meio milhão de pequenos proprietários, uma vez que a floresta portuguesa é, em 95%, propriedade privada e só 5% propriedade pública, grande parte dela ao abandono, o que potencia o risco”, referiu.
“O ordenamento florestal não é um elemento isolado do ordenamento territorial, ou seja o desordenamento florestal resulta do desordenamento do território. A primeira questão é criar condições, com objetivos a médio e longo prazo, que permita alterar os desequilíbrios. Depois, associado a isto, o modelo de desenvolvimento: apostámos nos últimos 20 anos no completo abandono de parte significativa do território continental, em particular o interior norte e centro, onde estão localizados os maiores níveis de risco. O território sem pessoas é, por natureza, um território de risco adicional”, criticou.
E que soluções podem ser avançadas para tentar garantir que 2024 seja um ano mais ‘pacífico’ em termos de chamas, isto porque 2023 está já ‘chamuscado’?
Para Duarte Caldeira, há pontos essenciais que devem começar já a ser devidamente trabalhados. “Enquanto não forem encarados vamos continuar a repetir os problemas”, precisou.
– a estrutura fundiária do país: enquanto não encontrarmos uma forma de envolver os meio milhão de proprietários com parcelas de terreno com menos de 5 hectares, ou seja, sem rendimento, não vamos diminuir o risco.
– o próprio combate: estamos num período onde o trabalho está circunscrito à altura em que ocorrem incêndios. Mas a vigilância da floresta tem de ser entendida como a vigilância policial das cidades. Temos 12 mil homens e mulheres alocados a este dispositivo, que é ativado em maio e desativado em outubro. É preciso uma definição exata dos sapadores florestais, os profissionais que têm por missão trabalhar a floresta todo o ano, e que precisam de valorização da carreira. Os sapadores são a mão de obra qualificada que necessita de ser dignificada. Alias, é frequente a abertura de concursos ao qual as pessoas não aderem.
– aceleração do processo de cadastro da propriedade: foi feito um esforço enorme, em algumas zonas do território, no cadastro predial, mas é preciso acelerar de modo a que se saiba exatamente quem é quem para desenvolver as estratégias de envolvimento dos proprietários.
– envolvimento das Forças Armadas é importante mas há um erro político a corrigir: sobretudo no patrulhamento das zonas de risco, mas em bom rigor não existem para esta função. Se calhar é tempo de concluir que foi um erro político a integração do corpo de guardas florestais, que tinham um grau de especificidade, todo o ano, para a deteção do risco e sensibilização da população, na Guarda Nacional Republicana (GNR). Deve ser feito um corpo próprio para vigiar e trabalhar a floresta todo o ano.
“Aplicação prática dos estudos macro esbarra na realidade”
A estrutura política, de cima a baixo, é também uma das faces do problema, considerou o especialista. “Havia um slogan há uns anos que dizia ‘pensar global, agir local’. A insuficiente ação local é uma das vulnerabilidades deste sistema de prevenção, a nível da freguesia e depois o município. Temos um país pequeno mas com enorme diferenciações no espaço territorial. As estratégias globais de matriz são aconselháveis para gestão orçamental e planeamento estratégico mas têm de ter uma execução o mais próximo possível do cidadão”, indicou Duarte Caldeira, salientando que “os planos de ação têm de ser muito trabalhados no perfil das comunidades, que para mim é a principal vulnerabilidade da nossa estratégia de abordagem dos incêndios”.
Até porque “falamos de grandes investimentos, de meios aéreos – sabia que o Plano Nacional de Gestão Integrada dos Fogos Rurais tem 97 projetos, mais não sei quantos planos de ação? Na perspetiva macro, está tudo certo. Mas a aplicação prática esbarra com a realidade, que encontra mil dificuldades na sua execução”.
Portanto a conclusão é óbvia. “A grande falha da abordagem do planeamento dos incêndios rurais em Portugal é o excesso de planeamento macro e de não trabalhar de uma forma mais criteriosa e mais próxima das populações em planos de ação à tipologia dos territórios onde há pessoas.”
E que pode ser feito? “A solução é política, as soluções técnicas estão todas identificadas. Não há país com mais investigação do que o nosso. Defendo que estaria na hora de olhar para esta questão e atribuir unidade governamental que tivesse exclusiva competência o combate aos incêndios rurais. O combate na sua amplitude política, para resolver os problemas essenciais no território, no desenvolvimento económico e envolvimento de população, que fariam diminuir as situações de risco”, finalizou, garantindo:
“Depois do desastre de 2017, embora seja justo que tenha havido alguma evolução, continuamos num perfil de probabilidade de ocorrências que não eliminámos para que possamos dizer que estamos a caminho de uma solução. Estamos muito longe disso.”