Pedro Jóia: “Zeca Afonso faz-nos muita falta”
Virtuoso da guitarra, instrumento que toca desde os sete anos, Pedro Jóia tem um longo percurso no mundo da música, não só como intérprete, mas também como compositor. O seu mais recente trabalho discográfico, intitulado “Zeca”, apresenta dez músicas do carismático cantautor e assegurou-lhe presença nos ‘tops’ de vendas ao longo de quase 20 semanas. O músico relembra como foi o processo de construção do trabalho, avalia a delicada situação da Cultura em Portugal e não acredita que o Chega conquiste grande expressão eleitoral.
Com que critério escolheu as dez músicas do álbum?
O desafio, desde logo, era complicado, porque escolher dez músicas de entre um manancial tão grande era difícil. Tive de estabelecer vários critérios: primeiro, as melodias que me pareceram mais fortes, porque, uma vez que não iria usar as palavras, tinha de me valer das melodias que todos conhecemos. Outro critério que teve muito peso foi o guitarrístico, ou seja, houve peças que resultaram melhor na guitarra, outras não tão bem, e esse acabou por ser, em última instância o critério que sobressaiu. Queria transformar aquelas canções em objetos guitarrísticos. Foi, portanto, uma mistura desses dois critérios.
Transformaram-se em músicas novas? Ganharam uma dimensão diferente da que tinham?
Por um lado, sim. Quis fazer uma homenagem. Como instrumentista queria tornar aquilo em objetos complexos, arrojados e ousados, mas não queria perder a força e a simplicidade das músicas. São as mesmas canções, quem ouve reconhece aquelas melodias.
É surpreendente que o álbum tenha estado tantas semanas nos primeiros lugares das vendas?
Para mim foi muito surpreendente [risos]…
O que nos diz isso sobre o interesse do público pela música de Zeca Afonso?
Há aqui duas coisas que me surpreenderam: primeiro, sabemos que o Zeca foi um autor importantíssimo na nossa História recente, embora muita gente nova já não conheça porque deixou de passar na rádio e de fazer parte das nossas vidas. E por isso também senti obrigação de construir este disco: tenho 50 anos, ainda vivi o tempo dele, embora não o conhecendo pessoalmente ouvi-o muito na rádio, ainda existe essa ligação afetiva em muitos de nós à sua música. Mas o que mais me surpreendeu foi que um disco instrumental conseguisse estar tanto tempo lá em cima nos tops, uma palavra de que não gosto muito, mas enfim… Esse foi o lado positivo, não me admirava que a música do Zeca estivesse lá, porque muita gente conhece, é fácil trabalhar a música do Zeca e chegar lá; a questão é que, com música instrumental, é um caso muito raro vender-se em Portugal.
As gravações tiveram acompanhamento da viúva de Zeca Afonso: isso foi um incentivo ou um fator extra de pressão?
A Zélia, viúva do Zeca, foi uma das primeira pessoas a quem falei deste projeto e, ao falar-lhe, expliquei como queria abordá-lo e ela sempre foi muito aberta nesse aspeto, não me pôs qualquer entrave, falámos muito sobre o Zeca, sobre a relação dele com a guitarra, etc. E depois também falei muito com o Fausto sobre isto, porque ele conviveu muito com o Zeca e foi legitimando este trabalho. Agora, claro, era fundamental falar com a Zélia e ter a sua concordância.
Faz falta uma figura como Zeca Afonso no contexto que vivemos?
Absolutamente. O Zeca Afonso faz-nos muita falta. Sabendo de algumas facetas da sua personalidade, o Zeca era, além de um grande artista, uma pessoa de enorme abnegação e de uma generosidade e altruísmo tão grandes, isso que é tão raro hoje em dia…
E uma voz de intervenção em termos sociais e políticos…
Era uma espécie de farol e patriarca desta nova geração de músicos que veio depois. Era alguém para quem todos olhavam como um exemplo e todos sabemos como foram os últimos tempos da sua vida… Era uma espécie de lenda viva da nossa consciência social, política, coletiva.
Como analisa o que se passa na Cultura neste tempo de pandemia e que avaliação faz às respostas do Estado?
Começando pelas respostas do Estado: são muito ténues, há que dizê-lo, a Cultura acaba sempre por ser o parente pobre de tudo isto, não é por acaso que há dias, falando com um amigo, dávamos conta de como a Cultura só ocupa aqueles segundinhos finais nos noticiários das televisões, é uma espécie de bombom, “então tomem lá, vá, uma noticiazinha sobre Cultura”… Depois de tudo o resto, da covid, do desporto, do futebol que ocupa largos minutos do noticiário, no fim há aquele bombonzinho da Cultura. Isso é um bocado sintomático do espaço que ocupa na nossa sociedade e, claro, da fatia do Orçamento do Estado que lhe corresponde: nunca chega a 1% e acho que nunca chegará. Andamos nisto, um bocadinho na esmolazinha… Por outro lado, os artistas são sempre aqueles que estão na primeira linha quando é preciso chamá-los – para apoiar a política, as causas… É muito ingrato tudo isto e as pessoas vão sobrevivendo. Mas sei que há gente a passar muito mal, há gente que se vê obrigada a sair da Cultura para sobreviver, é dramático.
Como tem sido para si? Mexeu, por certo, muito com a sua agenda de concertos…
Tremendamente. Em março, toda a programação que tinha para o ano e era muito boa, desabou ao fim de 15 dias. No fundo, houve dois trabalhos que me salvaram o ano: uma banda sonora para a série “O Atentado”, exibida agora pela RTP; e uma música para o Teatro Experimental de Cascais, na peça “Yerma”, do García Lorca e com o Carlos Avilez. São obras de grande envergadura que me mantiveram muito ocupado. Mas os concertos, claro, pouquíssimos…
Começando pelas respostas do Estado: são muito ténues, há que dizê-lo, a Cultura acaba sempre por ser o parente pobre de tudo isto, não é por acaso que há dias, falando com um amigo, dávamos conta de como a Cultura só ocupa aqueles segundinhos finais nos noticiários das televisões, é uma espécie de bombom…
Compõe para teatro, cinema e televisão: tem preferência por algum destes meios? E, por outro lado, conhecemos grandes compositores no cinema, perdemos Ennio Morricone há pouco tempo, mas também há John Williams e muitos outros. Há algum para quem olhe com particular admiração?
Falou do Morricone – não só a obra dos cineastas italianos me fascina e as suas bandas sonoras, mas também as do Nino Rota. Sempre gostei muito dessas bandas sonoras, são partituras feitas à medida do grande cinema, de grandes realizadores como Fellini e outros. John Williams é uma dimensão diferente, uma espécie de Midas, as bandas sonoras dos filmes que fez foram sempre épicas e grandes produções. Mas eu sou mais daquela vertente do Morricone e do Nino Rota. Não diria que tenho uma preferência – compor para teatro é algo tão diferente de compor para uma série de televisão em episódios que, por sua vez, é tão diferente de compor para um filme. Na verdade, adoro as três facetas e são muito diferentes, colocando-me exigências muito variadas. E gosto desta dinâmica de discutir com o encenador ou com um diretor, estimula muito a minha criatividade.
No princípio da sua aprendizagem e ao longo do percurso estiveram Paulo Valente Pereira, Manuel Morais, Paco Peña, Gerardo Nuñez, Manolo Sanlúcar: que marcas ficaram de cada um deles?
Paulo Valente Pereira foi o homem que me ensinou a tocar guitarra quando eu era um miúdo com sete/oito anos. E isso por si só já é uma coisa tão extraordinária, ensinar uma criança a tocar guitarra, a saber colocar os dedos, pegar no instrumento, etc… Tenho um grande carinho e respeito pelo Paulo Valente Pereira por ter tido essa paciência enorme a ensinar uma criança, é duríssimo. Manuel Morais mostrou-me a beleza da música antiga e o primeiro impacto, o primeiro confronto com a música profissional, ainda hoje meu grande amigo. Os flamencos já fazem parte de uma outra fase, sobretudo o Manolo Sanlúcar, porque aí já foi beber de um mestre, de um grande solista, aquelas coisas que me ajudaram muito a não ter medo de enfrentar um palco, as angústias de um instrumentista.
Para um guitarrista como o Pedro, Paco de Lucía é, por certo, um nome venerado. Mas e guitarristas do rock como Jimi Hendrix, Jimmy Page, George Harrison, Mark Knopfler, por exemplo, o que lhe dizem?
Hendrix e os guitarristas do rock dos anos 60/70 foram fundamentais, ele foi quem praticamente inventou aquela linguagem. Mas falou há pouco do Mark Knopfler: não estando no mesmo patamar virtuosístico dos outros, sempre foi um guitarrista com uma identidade tão própria – ele toca uma nota e vê-se que é o Mark Knopfler. Vi-o várias vezes em concerto, nunca com os Dire Straits (e tenho muita pena) depois de ter sido um grande admirador dele quando tinha os meus 15 anos. Mas há também grandes guitarristas de elétrica no jazz, que é um instrumento tão diferente do meu que lhe chamaria outro instrumento: o Wes Montgomery, o Django Reinhardt, o John McLaughlin… Mas há dois guitarristas que me marcaram profundamente, não só porque os conheci, mas por terem marcado a minha cultura musical: um foi o Paco de Lucía, o maior guitarrista que a guitarra já conheceu; e outro foi o Carlos Paredes, um homem que tive o privilégio de admirar e conhecer de perto e ver a sua arte única. E uma coisa que me marcou, o homem e o instrumento – Paredes é, de facto, algo que andará sempre dentro de mim.
Tem tocado como solista, em trios, quartetos, nos Resistência, com orquestras, a acompanhar cantores: em que espaço se revê mais?
O que constrói um músico é tudo isso, mas aquele território em que me sinto mais completo é quando me apresento a solo num palco, eu e a minha guitarra, porque aí a comunhão é total e não tenho qualquer outro tipo de rede, sou eu ali, para o melhor e para o pior.
E tocar com vozes do fado como a Mariza, a Raquel Tavares, o Ricardo Ribeiro, como foi?
Como lisboeta que sou, o fado é a minha cultura musical mais próxima e gravei um disco, em 2007/08, sobre a obra do Armandinho, um grande guitarrista de Lisboa, que me deu um grande prazer e mergulhei profundamente na obra dele. isso também me abriu outras portas para colaborar com fadistas e cantores. Mas a minha relação com o fado é muito íntima, não só por ser de Lisboa, mas porque é muito guitarrística, embora seja uma guitarra diferente. Estive muitos anos a acompanhar cantores que vão da Mariza ao Ney Matogrosso, em palcos grandes ou pequenos, viagens até mais não, voltas ao mundo, Brasil profundo, todas essas experiências musicais me enriqueceram…
Além disso, tem a experiência de colaboração com a flautista norte-americana Susan Palma Nidel…
É uma grande flautista nova-iorquina, solista da North Country Chamber Orchestra, e conheci-a num projeto que gravou aqui sobre música portuguesa. Convidou-me, desenvolvemos uma forte amizade e já fizemos muitos concertos nos Estados Unidos com esse repertório e com outro. É uma querida amiga, uma americana com alto nível de cultura e sensibilidade apurada.
Além de intérprete e compositor, o Pedro é também espectador de música, teatro, cinema, ballet? Gosta de ler? Que autores?
Sou um leitor compulsivo, os objetos que mais compro são livros, de tudo um pouco. Agora estou a ler o Gonzalo Torrente Ballester, “Crónica do Rei Pasmado”. Antes li “As vinhas da Ira”, do Steinbeck, e li Lobo Antunes, por exemplo. A leitura acompanha-me no dia a dia e não consigo passar sem um livro. A espectáculos vou menos do que gostava e já era assim antes da pandemia, são vicissitudes da minha vida.
Falemos dessa fase com Ney Matogrosso, mas também Simone ou Gilberto Gil, entre 2003 e 2007, no Brasil. Como caracteriza esse universo musical?
O Brasil daquela época era muito diferente, era uma sociedade mais descontraída; hoje está muito dividida, mais agressiva, muito polarizada, um pouco como os Estados Unidos, e tenho pena que fosse por esse caminho. Eu vivi numa época muito boa lá, no tempo do chamado milagre económico. Tudo aquilo durou mais ou menos até aos Jogos Olímpicos e depois degradou-se. Foi um privilégio tocar com o Ney Matogrosso, um grande artista, um ser humano incrível, corri o Brasil inteiro de norte a sul em duas ’tournées’ que fiz com ele. é um meio musical muito aberto e as pessoas não têm complexos de cantar e tocar umas com as outras, não importam os estilos; aqui temos muito esse estigma.
Cruzou-se com Chico Buarque?
Convivi de perto. Naquela altura eu fumava e costumava ir a uma pizzaria no Jardim Botânico. Muitas vezes tinha de vir fumar cá fora e quem é que encontro nessa altura? O Chico. Tinha gravado no “Jacarandá”, um disco meu de 2003, o tema “Tanto Mar”, do Chico, para o qual convidei o Rão Kyao. Certo dia, estou a fumar um cigarro com o Chico, ele sempre muito interessado em Portugal, e dei-lhe o disco, contando que gravara um tema dele. No encontro seguinte, o Chico disse-me que adorou, ouvia o disco sempre no carro dele e daí nasceu uma espécie de amizade. Tenho pena de não ter convivido mais com ele, mas é…
Um génio?
Sim, arrisco dizer que é talvez o autor, o compositor mais incrível de língua portuguesa.
É preciso ter muito cuidado com o fenómeno do Chega, a democracia tem este lado perverso que é termos de dar voz também àqueles que não têm coisas boas para nos dizer, mas não acredito que em Portugal haja território para aquilo crescer muito.
Falou há pouco dos dias difíceis que se vivem no Brasil e a ligação a Bolsonaro é imediata. Olhando para os Estados Unidos, o mundo fica um pouco melhor com a saída de Trump e a entrada de Biden? E como avalia o Chega em Portugal num quadro de ressurgimento da extrema-direita?
É preciso ter muito cuidado com o fenómeno do Chega, a democracia tem este lado perverso que é termos de dar voz também àqueles que não têm coisas boas para nos dizer, mas não acredito que em Portugal haja território para aquilo crescer muito. Quero acreditar que este país é sensato, aprendeu com os erros do passado e aquele folclore vai chegar a um ponto em que não cresce mais. Quanto ao Trump e à previsível saída de Bolsonaro dentro de dois anos: claro que, se aqueles ‘clowns’, como Biden chamou a Trump, deixarem o poder vamos ter de volta a democracia, mesmo que seja penosa a saída de Trump, como já percebemos.
Acredita que teremos de volta a América que acolheu os estrangeiros de braços abertos?
Penso que sim, embora o meu conhecimento de viagens pela América me tenha permitido tomar contacto com as realidades mais sombrias do interior, muito diferente das costas, e não sei até que ponto vão resignar-se.