Jaba Recordati: «O acesso à inovação é uma questão fundamental»

Nelson Pires, CEO da Jaba Recordati, explica os principais desafios e oportunidades do sector da Saúde em Portugal.

Neste momento em que estamos a discutir o orçamento de estado, julga que a saúde dos Portugueses vai sair beneficiada?

Julgo que há um aumento considerável dos recursos financeiros alocados na saúde, mas não são geridos de forma eficiente e têm sérios problemas organizacionais. Por uma questão de organização. O maior custo verificou-se quando reduzimos o horário de trabalho das 40h semanais (exceto médicos) para 35h. Imediatamente aqui se verificou uma necessidade de mais recursos humanos e logo mais custos. Outra questão prende-se com a falta de autonomia dos hospitais e centros de saúde para tomar decisões. Finalmente a questão da meritocracia que não existe na carreira pública.

Ao nível do medicamento, que conheço melhor, existe uma suborçamentação crónica do SNS. Sendo que as consequências desta suborçamentação crónica se refletem, em termos financeiros, em défices sucessivos, ano após ano, e na acumulação de dívida aos fornecedores. O Conselho das Finanças Públicas refere que no OE de 2022 “existia desde logo um défice previsto de 1.260,6 M€, com um incumprimento previsto da regra de equilíbrio da lei de Enquadramento Orçamental”. Em Junho de 2024 existia um total de dívida de 818,8 M€ com um preço médio de pagamento de 189 dias.

O nosso país investe o suficiente em saúde quando vemos urgências fechadas, medicamentos que existem noutros países e não no nosso, grávidas a ter os seus filhos em ambulâncias?

O investimento público em saúde feito em Portugal é apenas 70% do valor médio per capita da EU. Logo não podemos aspirar a ter mais que na EU. Sendo que o investimento público em medicamentos em Portugal é cerca de 83% do valor médio per capita da EU. E este impacto do investimento do SNS com medicamentos tem vindo a diminuir na despesa total e na despesa publica em saúde desde 2010.

Investimos então pouco em medicamentos?

O Investimento do SNS com medicamentos está ainda mais artificialmente, sobredimensionado. Não reflete o real investimento com medicamentos, que é muito mais baixo do que é referido pelas autoridades. Porque a Indústria farmacêutica efetua um total de devoluções, fruto de um acordo entre a APIFARMA e o estado. As devoluções da IF aumentam todos os anos, tendo atingindo em 2022 um valor superior a 428M€ evolução das devoluções. Representa mais de 10% do investimento em medicamentos feito pelo estado, que é suportado pela indústria farmacêutica. O Investimento do SNS em medicamentos, apenas em 2021 (deduzido de devoluções) conseguiu ultrapassar o valor registado há 12 anos, em 2010 (no tempo de crise). Mesmo com a recuperação da atividade assistencial no SNS no período pós-pandemia, este investimento pouco cresceu.

Para clarificar, a Indústria farmacêutica devolve ao estado muito dinheiro, como vimos, e de várias formas. Por exemplo, em medicamentos novos, o estado define o número de doentes que quer tratar (os chamados CAPs). Quando o número de doentes excede os limites de encargos, a IF paga na totalidade o custo do medicamento, devolvendo ao estado este valor. Esta situação é inadmissível e algumas empresas preferem não lançar em Portugal, agravado pelos baixos preços praticados no nosso país, e aos atrasos verificados na aprovação. Os contratos deste tipo deveriam ser dependentes de resultados clínicos, de “Pay per performance”, algo que a IF defende há muito tempo. As devoluções realizadas, aumentam de 19% em 2018 para 45% em 2022 .Existe falta de transparência quando se refere que se gasta muito com medicamentos, não reflete o investimento líquido real, que em 2022 é no mínimo inferior em 6% a 12% ao reportado pelo INFARMED. Acrescido pelas devoluções devidas pelo acordo entre APIFARMA/ Governo e diferenças entre preço de lista e preço financiado.

Muitos dos nossos doentes têm de percorrer várias farmácias para encontrarem os seus tratamentos. Qual o motivo?

Julgo que existem vários motivos. O primeiro é o preço baixo dos medicamentos (dos mais baixos da Europa). A atual conjuntura não é compatível com uma política de redução sucessiva de preços aplicada nos últimos 20 anos aos medicamentos em Portugal, sem possibilidade de revisão em alta (exceto uma pequena nos últimos 2 anos, em medicamentos muito baratos), mesmo quando tal ocorre nos países de referência. E, sobretudo, sem acomodar ajustes para cobrir a inflação, aumento dos custos de produção, aumento das taxas, etc. No ambulatório, em 2022, o preço médio por cada embalagem dispensada nas farmácias comunitárias representava 79% do preço de 2010 e abaixo do preço médio de 2012 (com a Troika em Portugal). Os custos de fabrico, aumentaram 40,6% (custo unitário dos inputs entre 2016 e 2022). Sendo mais significativos nos anos de 2020 e 2022 com aumentos anuais de 13,3% e 9,4%, respetivamente, correspondendo aos anos de eclosão da pandemia COVID-19 e início da guerra na Ucrânia. Este fator cria sérias debilidades nas cadeias de abastecimento. É urgente atualizar os preços dos medicamentos, sobretudo daqueles com preços mais reduzidos, de forma a evitar que alguns produtos sejam descontinuados e que haja este risco de desabastecimento. Assim como a distribuição num mercado Europeu livre, prefere exportar os medicamentos aqui disponibilizados ara mercados onde os preços são mais altos (quase todos da Europa) e assim terem mais e melhores resultados líquidos, de forma legal e legítima.

Os nossos doentes conseguem ter os mais recentes medicamentos do mercado de imediato?

O acesso á inovação é uma questão fundamental. Os medicamentos inovadores aumentam a longevidade e a qualidade de vida das populações; tendo sido uma revolução contra doenças até agora incuráveis permitindo poupar num conjunto de custos associados à doença. O acesso à inovação terapêutica é um direito do cidadão só que o desenvolvimento de medicamentos personalizados tem aumentado exponencialmente os custos da Investigação e Desenvolvimento farmacêutico. Só que os portugueses aguardam, em média, quase dois anos (710 dias) para utilizarem as novas terapêuticas disponíveis, situação que se agrava para os 794 dias, no caso da oncologia. A média europeia é de 559 dias no caso da oncologia. Portugal ocupa o 28º lugar entre 35 países, em termos do tempo médio de disponibilidade dos medicamentos inovadores. Considerando o conjunto dos países da União Europeia, Portugal encontra-se atrás de países como a Hungria, a Estónia, a Eslovénia e a Letónia. O modelo não funciona conforme definido pelas autoridades, pois é burocrático, não transparente, não envolve os doentes, nada funcional e sem contraditório.

Porque não existe uma Indústria farmacêutica mais dinâmica em termos de I&D em Portugal?

Existem alguns casos de sucesso em Portugal, infelizmente poucos. Mas o mesmo acontece na Europa, estando este investimento a desviar-se para os EUA. Devido a uma política de burocratização e de baixos preços. Só que a I&D na indústria farmacêutica corre muitos riscos. O tempo médio de desenvolvimento de um novo medicamento é de 13,5 anos, com um custo médio de 1,2 mil milhões de euros. Apenas 8% dos compostos candidatos identificados em fase pré-clínica ultrapassar todas as etapas até à introdução no mercado. Não existem empresas com esta capacidade financeira, nem capital de risco em Portugal, para este nível de investimento de risco. Recordando que o risco de não proteger o investimento das empresas farmacêuticas em I&D é o de estas perderem capacidade de investir na investigação de novas moléculas.

Temos uma oportunidade relacionada com os ensaios clínicos. Pode gerar uma economia gigante, atrair talento e know-how, mas também permitir acesso precoce dos doentes a tecnologias inovadoras a custo zero. A Indústria Farmacêutica é responsável por cerca de 90% dos Ensaios Clínicos realizados em Portugal, permitindo, assim, que os doentes tenham acesso às terapêuticas mais inovadoras. São instrumento de crescimento das capacidades científicas existentes e de promoção da transformação desta em valor económico e social. Deve ser dinamizada através da agência criada para esse efeito, o AICIB que tem o contributo também da IF.

A Indústria farmacêutica é importadora ou exportadora? Exporta mesmo mais que o vinho do Porto, como referem alguns dados publicados?

É verdade sim. A Indústria Farmacêutica foi responsável por 2,8 mil milhões euros de exportações em 2023, com crescimento de +44% anual. Em apenas dois anos existe uma escalada para mais do dobro, evidenciando-se como importante motor das exportações e do desenvolvimento económico. As exportações da Indústria Farmacêutica são o principal impulsor das exportações da Saúde, ultrapassando 84% do total das exportações da Saúde. Representam 1,1% PIB de 2023, contribuindo com +0,3 pontos percentuais relativamente a 2022, e constituindo 3,6% das exportações nacionais. Por isso defendemos uma tutela económica da saúde. Devia ser o Ministério da Economia a tutelar e acompanhar a indústria como agente económico que gera inovação e valor. Deveria ser responsável por definir as políticas de preços e margens de comercialização, em lugar da fixação administrativa dos medicamentos e produtos de saúde. A definição e concretização de um programa de melhoria das condições concorrenciais, controle de práticas não-conformes e simplificação do enquadramento regulamentar, que, sem prejuízo da defesa dos cidadãos e da saúde pública, torne mais eficiente o funcionamento dos mercados, estimulando o investimento, a competitividade e o valor económico.

A IF tem uma produtividade superior a todas as outras indústrias transformadoras. É uma indústria com um elevado valor acrescentado. A IF representa um emprego qualificado superior (cerca de 45%) ao de outras indústrias, como a eletrónica. Pode promover a re-industrialização do país, como fator essencial para impulsionar o crescimento e a competitividade do sector, relançar a produtividade, aumentar as exportações, criar reservas robustas na área das ciências da vida. Bem como para promover o desenvolvimento médico e científico e o crescimento do valor acrescentado nacional.

A indústria farmacêutica investe em Portugal?

O investimento direto é feito e bastante elevado. Em 2022, Portugal atingiu novo máximo de investimento em I&D de 4,1 mil milhões euros, representando 1,7% do PIB. O motor deste desempenho são as empresas, com 62,2% do investimento total (1,1% do PIB) e aumento anual de +19%. Para além de que os medicamentos e as vacinas são os maiores responsáveis pelo aumento da esperança de vida e pela melhoria da qualidade de vida. Evitaram mais de 110 mil mortes desde 1990. Os medicamentos contribuíram para o aumento de até 10 anos de esperança de vida. Uma verdadeira revolução social. Mas também para a sociedade, pois os medicamentos permitiram aos doentes continuarem a ser produtivos, gerando cerca de 280M€/ ano em rendimento adicional para as famílias em apenas 8 doenças (1.000€/mês por família) avaliadas por um estudo realizado pela McKinsey em Portugal.

Cada vez se fala mais do envolvimento dos doentes no diagnóstico e tratamento das suas doenças. Existem problemas de literacia em saúde em Portugal?

Existem alguns problemas. O cidadão no centro do sistema, como defendemos, implica uma maior participação deste no sistema de saúde e nas decisões sobre a sua saúde. As competências e conhecimentos necessários para o cidadão aceder, compreender, avaliar e utilizar informação sobre saúde que lhe permitam tomar decisões sobre cuidados de saúde, prevenção da doença e modos de promoção de uma vida saudável não podem estar circunscritos ao “Dr Google”. A APIFARMA, através do “Tratar de Mim”, desenvolveu um programa de literacia em saúde, em parceria com a Associação Nacional das Farmácias (ANF), Direcção-Geral da Saúde (DGS), INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., Ordem dos Farmacêuticos, Ordem dos Médicos e Valormed. O objetivo é consciencializar a população para a importância da utilização responsável e segura dos medicamentos não sujeitos a receita médica e alertar para a relevância da adoção de estilos de vida saudáveis. Mas sabemos que é uma “maratona” e não uma “corrida de 100m”.

Estando a população a envelhecer mais, a viver melhor durante mais anos e a I&D a aumentar os custos, como manter um modelo de sistema de saúde sustentável?

A IF acredita que apenas a sustentabilidade do modelo será positiva para todos, incluindo as empresas. Propusemos real partilha de risco às autoridades, mas estas, por falta de informação digital, não o podem fazer na maioria das doenças. Temos sugerido muitas mais soluções e contribuímos com quase 500 milhões de euros por ano em devoluções ao estado. Pegando num exemplo:

– como financiar as Terapias de precisão e as Terapias Avançadas? As que podem alterar de forma permanente o perfil do risco de uma determinada patologia? Entendemos que os benefícios têm que ser necessariamente equacionados a um horizonte de longo prazo, pois a administração única e a população alvo é muito limitada. O elevado custo inicial (quase sempre dose única) tem uma eficácia de longa duração. Eficácia que deve ser medida em ganhos de anos de vida ajustados pela qualidade (QALY), que por norma são bastante elevados.

Como vemos os desafios Futuros são aplicar os novos modelos de Financiamento já propostos (ou encontrar novos), que garantam a sustentabilidade do estado social. Seja financiar por Outcomes, condicionado ao desempenho do medicamento no mundo real; ao pagamento por resultados ou financiamento condicionado a geração de evidência adicional. Com estes modelos propostos pela IF que são justos e objetivos, existe uma real Partilha de Risco. Fomentando um clima socioeconómico favorável, que reforçe os fatores de atratividade para o investimento em Portugal. Garanta o acesso, a sustentabilidade do sistema e incentivos adequados à inovação para a Indústria Farmacêutica, atraindo investimento para o nosso país.

Quais são as previsões para 2025?

Acredito que a revisão de preços a ocorrer até final do ano vai ser idêntica à do ano anterior, permitindo alguma estabilidade no acesso ao medicamento. Também que iremos renovar o acordo entre a Apifarma e o Governo, permitindo que os produtos de preço mais barato, subam preços. Acabar com a política de CAPs é um desígnio, para erradicar uma injustiça para a IF e para o doente. Por outro lado, garantir confiança através da previsão fiscal e legislativa. Se conseguirmos tudo isto, que não é tão complicado como parece devido à elevada qualidade dos elementos do Ministério da saúde, conseguiremos focar na sustentabilidade do sistema nacional de saúde. O mais importante para os cidadãos!

Este artigo faz parte do Caderno Especial “O futuro da Saúde”, publicado na edição de Novembro (n.º 224) da Executive Digest.