Ana João Rodrigues ganhou uma bolsa que “é o sonho de qualquer cientista”

Quando atendeu o telefone e lhe foi pedido para responder a perguntas sobre a bolsa europeia de dois milhões de euros que recebeu, Ana João Rodrigues estava “a mil à hora”. Mesmo assim, não deixou de aceder a enviar respostas a uma série de questões colocadas por e-mail nas quais se percebe, por um lado, a paixão e a dedicação ao trabalho; e, por outro, apesar dos múltiplos obstáculos, o orgulho em fazer Ciência em Portugal. Primeiro, fez uma apresentação resumida do percurso realizado para que os leitores possam entender melhor como tem sido a sua vida. 

 

Desde criança que queria ser cientista. Lembro-me de adorar fazer perguntas, já tinha um fascínio bem evidente pelas ciências (não só biologia, mas geologia, astronomia, química, etc). E esta paixão ficou até aos dias de hoje… Sempre fui deslumbrada pelo meio que me rodeia, por tentar perceber como as coisas funcionam! Nasci em Vila Nova de Famalicão há 39 anos. Sou licenciada em Biologia Aplicada (2003) pela Universidade do Minho; tenho o doutoramento em Ciências da Saúde (2008) na Escola de Medicina da Universidade do Minho. Atualmente lidero uma equipa de investigação no ICVS/Escola de Medicina da Universidade do Minho após experiências em laboratórios internacionais de referência nos EUA, Holanda, Itália, Finlândia e Portugal. Esta multidisciplinaridade foi algo de muito positivo e que me ajudou a crescer como pessoa e como cientista.

Em que consiste, numa linguagem simples, a investigação que está a conduzir?

Desde que acordamos somos inundados com estímulos variados do exterior. Neste contexto, o nosso cérebro evoluiu para filtrar informação e focar-se nos estímulos que são emocionalmente relevantes. Este filtro baseia-se na atribuição de um selo positivo ou negativo aos estímulos, um fenómeno que designamos como valência. Um estímulo com valência positiva induz recompensa, enquanto que um estímulo com valência negativa induz aversão.

Nas últimas décadas, os neurocientistas têm tentado descobrir como é que o nosso cérebro codifica a valência, e como é que isto leva a prazer e aversão, o que é crucial para compreender melhor a motivação e tomada de decisão no dia a dia. Uma das áreas que codificam valência é o nucleus accumbens, mas até hoje ainda não se sabe como é que isto acontece.

Este projeto vai usar ferramentas avançadas para registo da atividade neuronal, permitindo compreender como é que os neurónios do nucleus accumbens atribuem valência e como é que esta informação é descodificada, originando prazer ou aversão.

Que importância pode ter para o muito que nos falta descobrir sobre o cérebro (e também para problemas de saúde como a depressão e a adição)?

Ao perceber melhor como é que os nossos neurónios codificam informação do exterior, é mais um passo (de formiga) no entendimento deste órgão maravilhoso e ainda tão desconhecido! Perceber como o nosso cérebro funciona numa situação normal/fisiológica é essencial, pois a longo prazo este conhecimento pode ajudar a compreender melhor os mecanismos subjacentes a patologias como depressão e adição, onde se sabe que existe uma disfunção do circuito que codifica o prazer e a aversão.

Até que ponto esta bolsa de dois milhões é decisiva para a sua investigação nos próximos cinco anos?

Além do mérito e reconhecimento associado a estas bolsas da ERC, este financiamento permite sermos mais ambiciosos no tipo de ciência que fazemos, isto é, permite alargar e diferenciar a equipa de investigação, comprar equipamentos de ponta necessários ao desenvolvimento do projeto. O financiamento mais “tradicional”, como por exemplo da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), é mais limitado e durante períodos mais curtos de tempo. Por isso esta bolsa é o sonho de qualquer cientista, porque permite fazermos aquelas experiências científicas importantíssimas, mas que, muitas vezes, ficam na gaveta porque não temos financiamento suficiente.

Além do mérito e reconhecimento associado a estas bolsas da ERC, este financiamento permite sermos mais ambiciosos no tipo de ciência que fazemos, isto é, permite alargar e diferenciar a equipa de investigação, comprar equipamentos de ponta necessários ao desenvolvimento do projeto.

Já foi distinguida antes com outros apoios. Fale um pouco sobre esses casos…
Sim, felizmente a nossa equipa tem sido reconhecida nacional e internacionalmente pelo trabalho de excelência que tem desenvolvido. Salientava um projeto recente financiado pela La Caixa Foundation por um período de três anos, também dentro desta área do prazer e aversão, bem como da agência de ciência portuguesa – a FCT. Este ano, outros membros da equipa receberam várias distinções, nomeadamente da Fundação Bial, o que me deixa extremamente orgulhosa!

A equipa do ICVS, Escola de Medicina, é coordenada por Ana João Rodrigues e inclui Nuno Sousa, Carina Cunha, Bárbara Coimbra, Nivaldo Vasconcelos, Rodrigo Oliveira, Verónica Domingues, Raquel Correia e Natacha Gaspar.

Como está a investigação científica em Portugal e de que precisa com mais urgência?

Eu adoro Portugal, e quero fazer ciência no meu país, mas o investimento em Ciência tem sido irregular, polarizado, sem uma missão a longo prazo. A política científica muda de ano para ano, de governo para governo, não há regularidade no financiamento, os cientistas nunca sabem o que esperar… Para ter uma ideia, nos últimos dois anos tivemos 8% de aprovação no emprego científico, o que quer dizer que 92% dos cientistas que se candidataram ficaram de fora (desde investigadores em início de carreira até líderes de equipa). Na última “call” de projetos só 5% é que foram aprovados. Por isso temos equipas excelentes cujo líder e/ou membros não têm salário, mas também há equipas que têm salários mas não têm verba para desenvolver o seu trabalho científico. Estes números são o reflexo de uma ciência sem rumo, um desaproveitamento contínuo do dinheiro dos contribuintes, o que me entristece. Claro que Portugal não tem investimento suficiente em ciência, estamos aquém do que seria desejável, mas penso que o problema é mais profundo do que isso. Precisamos de regularidade nos concursos (quer para investigadores, quer para projetos), com regras bem definidas e processos de avaliação justos e transparentes. É essencial criar uma carreira científica (a longo prazo) para atrair e firmar os melhores cientistas. É preciso desburocratizar as universidades e institutos. Mas, mesmo com todas estas dificuldades, louvo a Ciência de excelência que existe em Portugal, fico tão orgulhosa por saber que temos equipas de referência em muitas áreas do saber! Temos as ideias, os cérebros e o expertise, agora resta dar as condições para a ciência portuguesa brilhar (ainda mais)!

Precisamos de regularidade nos concursos (quer para investigadores, quer para projetos), com regras bem definidas e processos de avaliação justos e transparentes. É essencial criar uma carreira científica (a longo prazo) para atrair e firmar os melhores cientistas. É preciso desburocratizar as universidades e institutos.

* Além de Ana João Rodrigues, outros cientistas portugueses foram distinguidos com bolsas da ERC, num total de 23 milhões de euros, incluindo cinco que estão a trabalhar além-fronteiras: Miguel Carneiro (Universidade do Porto); Maria João Amorim, Ricardo Henriques e Raquel Oliveira (Fundação Calouste Gulbenkian); Patrícia Vieira (Universidade de Coimbra). O quinteto que está no estrangeiro: João Matos (Áustria); Rui Benedito (Espanha); Ana Ferreira, Alexandra Silva e Vasco Carvalho (Reino Unido).

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