“À la Carte” com Guy Villax, CEO da Hovione: «Tive uma vida fascinante»

Aos 58 anos, Guy Villax é, há mais de 20 anos, CEO da Hovione. Ao longo deste percurso, afirmou a empresa como líder em inovação e uma referência do emrcado global de CDMO (Contract Development and Manufacturing Organization) do sector farmacêutico.

Hovione foi fundada em Portugal em 1959 por Ivan Villax e sua mulher Diane Villax. Começou como um laboratório situado na cave da casa do casal em Lisboa, onde cresceu Guy Villax, um dos quatro filhos do casal, que viria a entrar na empresa a tempo inteiro aos 24 anos.

O seu primeiro grande desafio, em 1984, foi o de encontrar espaço em Macau, construir uma fábrica, obter a sua aprovação pela Food and Drug Administration (FDA) e fazer a transição para outro director-geral.

Guy recorda este período, em que também viajou pela China, Coreia do Sul, Paquistão e Birmânia, como uma «experiência fascinante». Em 1990, regressa a Portugal e assume a Direcção de Vendas e Marketing. «Em 1997 tornei-me CEO da Hovione. Houve uma evolução clara, que aconteceu com o meu papel de líder comercial da empresa.

Dois anos antes, em 1995, o meu pai teve uma operação bastante séria e, quando regressou, seis meses mais tarde, acho que todos os circuitos de decisão tinham sido alterados e encontrou-se uma solução. Depois, houve outra grande mudança em 2003. O meu pai morreu em Junho e, em Setembro, reuni a família e uns amigos. Disse-lhes que o negócio continuava, que os números estavam bons, e corria tudo bem com os produtos e os clientes. Havia, no entanto, uma grande diferença: tinha deixado de ter reporting line. E isso não podia ser.

Então, propus que a Hovione começasse a funcionar com um Conselho de Administração, em que maioria de membros fosse não executivos e independentes. Foi assim que funcionámos durante muitos anos até 2014, quando achei que o board não tinha número suficiente. Éramos só cinco e não dava para pôr os comités a funcionar. Assim, a partir de 2015 passámos a funcionar com o mínimo de sete membros do board, com comités a funcionar com três pessoas cada e com um chairman que também não é da família e é não executivo.

Acho que isso tem sido espantosamente positivo para a empresa. As empresas familiares têm muitas vantagens pela sua natureza mas têm também muita auto-destruição na sua natureza relacionada com o tema do sucesso, da capacidade em atrair pessoas competentes e de criar uma meritocracia. O desafio é muito complexo, as competências necessárias são muito exigentes e especializadas. Este acaba por ser um emprego difícil. E a Hovione caminha para ser claramente uma empresa muito profissional. Se porventura houver executivos da Hovione que também são Villax, óptimo. Mas não é regra.

Entre a família (que se reparte pelos quatro filhos do fundador, 16 netos e bisnetos) é necessário criar um clima em que haja muito orgulho na empresa. Tem de haver um entendimento de que há dividendos não monetários para se conseguir promover o orgulho, a vocação, a afinidade e uma grande consideração pela empresa. Portanto, existem hoje uma série de mecanismos para encorajar a terceira geração a vir trabalhar durante o Verão ou fazer estágios. Uma vez por ano fazemos uma viagem em família. Somos 26 pessoas e vamos a qualquer sítio durante três ou quatro dias.

A última viagem foi a Budapeste e visitámos a Universidade onde o meu pai estudou. Desde sempre que temos um Family Book que tem os valores, as regras e o protocolo de família. A primeira edição foi escrita pelo pai e pela mãe. Um documento destes tem de ser vivo e actualizado constantemente. O meu dia-a-dia é pouco rotineiro. Continuo a viajar cerca de 25% dos meus dias de trabalho, empenhado em visitar clientes e em conhecer e acompanhar os seus desafios. São os clientes que nos dizem quais os melhores rumos que devemos tomar. Sempre tive uma grande preocupação pela área da qualidade e por desenvolver um entendimento sobre os reguladores, porque numa indústria muito regulamentada quem está próximo do regulador e entende as exigências consegue estar à frente da onda.

VIDA

Nasci em Lisboa, em 1960. Estudei no Liceu Francês, na Avenida Engenheiro Duarte Pacheco, a partir do jardim infantil. Estive lá até ao actual nono ano. Depois deu-se o 25 de Abril. O meu pai já tinha mudado de país e reconstruído a vida. Não o queria fazer outra vez, mas pegou nas crianças e mandou-nos provisoriamente para o Reino Unido… porque tínhamos lá um avô.

A fábrica nunca parou. Em 1976, os dois irmãos mais novos e a minha mãe voltaram para Lisboa. Eu continuei em Inglaterra. Acabei por ficar a morar sozinho. Foi o descobrir de um mundo novo com muitas oportunidades. Comecei cedo a prestar contas a mim próprio. O ter vivido sozinho levou-me a desenvolver, por um lado, uma grande resiliência e capacidade de ser independente. Mas depois também leva a que se tenha enorme dificuldade em pedir ajuda às outras pessoas. Não é tudo bom.

Acabei o Liceu Francês, tirei um curso de Gestão e de Contabilidade (licenciou-se pela University College at Buckingham) e, depois, fui trabalhar para a Price Waterhouse. Em Londres, como hobby, fiz muita fotografia a preto e branco. Naquele tempo, o filme só tinha 36 fotografias, mas era muito divertido. Eu fotografava sobretudo pessoas e paisagens. Era tudo manual e, ao fim ao cabo, até conseguia fazer o juízo de quanta luz é que havia. Ajustava a velocidade e a abertura a olho. Aprendi a técnica em óptimos livros.

Ainda continuo a ler muitos livros porque acho que as decisões são tomadas com base nos dados e que se pode aceitar a incerteza. Mas com a noção de quanto incerto pode ser. Na Price Waterhouse trabalhei quase três anos. Achei que era pouco dinâmico e comecei a escrever cartas para ver se arranjava emprego nos Estados Unidos da América. Quando expliquei ao meu pai ele disse-me para eu ir trabalhar para a Hovione, ser vendedor de produtos na Ásia.
Esta conversa aconteceu por carta. Assim, em 1984, passei a vender os princípios activos da Hovione desde Carachi, no Paquistão, até Seul, na Coreia do Sul. Um dos grandes mercados era a Índia. Nos anos 80 vendíamos muito para lá e, três décadas depois, dominam o mercado internacional dos genéricos.

Comecei por ser vendedor e foi nessa fase que surgiu a oportunidade de construir uma fábrica em Macau. Encontrámos o terreno em 1984 e, no princípio de 85, começámos uma primeira fase de demolição e terraplanagens. Depois deixámos passar o Verão, por causa dos tufões. A partir de Setembro começou a contar os 14 meses da construção da fábrica. Em 1992, funcionava e estava tudo bem. Houve uma entrega a outro director-geral e eu voltei para Portugal.

Durante uma primeira fase tive responsabilidade a nível financeiro e depois passei a ter responsabilidade comercial, nas vendas, no marketing e também na identificação de produtos novos. Foi uma vida fascinante, estes anos que passei entre Hong Kong e Macau. Hong Kong era naquele tempo uma cidade que tinha muito orgulho em si própria. Lembro-me de ir à Birmânia. Ninguém ia à Birmânia nesse tempo. Casei em 1997 e conheci a minha mulher, Cristina, em Londres.
Temos três filhos – dois rapazes e uma rapariga. Conhecemo-nos num brunch em casa de um americano. Casámos em Sintra.

ORIGENS

O meu pai, Ivan Villax, tinha acabado a licenciatura em Engenharia Química na Universidade de Budapeste, em Junho de 1948. Nesse Verão começou a dar-se uma grande mudança no País, com os comunistas a tomarem conta do Governo apoiados pelas tropas russas que estavam na Hungria. E o meu avô, numa bela noite de Agosto, decidiu que não havia futuro.

Pela calada da noite seguiram viagem com o objectivo de atravessarem a fronteira, obviamente a monte. Chegaram à Áustria, mas continuavam na zona russa. Sem qualquer segurança tinham que chegar até Salzburgo para estarem na zona americana, onde já havia segurança. Os meus avós, o meu pai e os seus irmãos estiveram sete meses a viver em Salzburgo até encontrarem forma de poder ter um visto para trabalhar noutro país.

Houve várias peripécias, mas a chave do assunto foi o professor Vitória Pires, que era um cientista português e nesse momento secretário de Estado da Agricultura. Conhecia o meu avô, através das reuniões científicas que tinham – o meu avô era professor de genética – e convidou-o para vir para Portugal fazer o trabalho que desempenhava na Hungria.

Ficou responsável pelos institutos que faziam a selecção de cereais para obter o máximo de rendimento. Acabou por ir trabalhar para Elvas na estação de melhoramento de plantas. Foi através dessa situação que o meu pai veio viver para Portugal. Começou a trabalhar naquilo que outrora se chamava o Instituto Pasteur de Lisboa. Ficou nove anos e, em 1959, cria a Hovione, um ano depois de ter casado com a minha mãe, Diane Villax.

No Instituto Pasteur o meu pai tinha um emprego, mas podia fazer investigação. O contrato que tinha é que fazia a investigação e, se o Instituto Pasteur conseguisse dar valor às invenções e às patentes dele, tudo bem. Mas se ao fim de seis meses não o tivesse feito, as patentes passavam a ser da propriedade dele para poder explorá-las. E foi esse valor de patentes que permitiu o arranque da Hovione. A minha mãe nasceu em Portugal mas a família dela era metade inglesa, metade portuguesa. Trabalhava em Lisboa, conheceu o meu pai (através de amigos comuns, numa festa) e casaram-se em 1958. Tiveram quatro filhos. O pai era o cientista, o engenheiro e tratava da produção.

A mãe tratava do livro de cheques e das exportações porque os clientes eram todos do estrangeiro. Foi uma forma de crescer e de viver muito original. Vivíamos em casa, na Lapa, e na cave havia dois laboratórios. Havia também um género de cantina para dar almoço a meia dúzia de pessoas. No rés-do-chão havia um escritório com contabilidade e mais funcionários. Quando o negócio cresceu instalaram-se equipamentos na casa do jardineiro.

Nos anos 60, tivemos um telex e a máquina fazia uma barulheira infernal. Quando recebíamos os telexes do Japão, a máquina escrevia sozinha meia-hora. Por volta de 1970 todas as actividades passaram para Loures. No pós 25 de Abril, por termos começado a fornecer os EUA, fizemos a expansão a partir de Macau pela preocupação em dividir o risco político. Se a minha educação foi muito rígida? Tinha autonomia brutal. Não me lembro dos meus pais me dizerem para não sair à noite ou voltar à meia noite.

Queriam saber por onde é que andava, claro. Gostavam muito de conhecer os meus amigos e gostavam que eles fossem lá a casa. Lembro-me que os verões em Lisboa eram muito quentes. Íamos para o Guincho, Estoril ou Portinho de Arrábida, ainda antes de haver a ponte. Atravessámos de cacilheiro.

CONQUISTAS

Um em cada dois comprimidos para curar a hepatite C sai das fábricas da Hovione. É algo nos dá muita alegria e muita satisfação porque são quase quatro milhões de doentes curados. Começámos a trabalhar com uma empresa americana chamada Vertex e fizemos todos os produtos que desenvolveram para a fibrose quística. É extraordinário porque a criança toma este medicamento e ao fim de duas horas pode estar a correr.

A fibrose quística é uma doença genética, com a qual as crianças nascem, e não conseguem respirar porque os pulmões ficam cheios de líquido. Tipicamente, a esperança média de vida são 28 anos. O que é a tecnologia spray drying? A maior parte dos novos medicamentos são desenhados por computador e são moléculas grandes muito complexas. Isso faz com que sejam muito pouco solúveis no organismo. Nesta técnica que fomos pioneiros, somos líderes e andamos a desenvolvê-la há cerca de 15 anos.

É uma forma inovadora de abordar os problemas. Permite que em vez de se ter o produto em forma cristalina conseguimos tê-lo na sua forma amorfa mas estável. A única vantagem competitiva sustentável é a capacidade de aprender e a capacidade das empresas se reinventarem. Tem de se estar muito atento para saber quais são as novas oportunidades e temos que aceitar que há coisas que nos pareciam fantásticas e actualmente são autênticos road blocks. Temos de saber limpar e andar para a frente.

Claro que há concorrência e é importantíssimo estar atento ao que os outros fazem. Mas acho que a Hovione tem tido uma sorte invulgar por ser um fornecedor da indústria farmacêutica, que tem tido um crescimento constante nos últimos 50 anos. É uma situação muito favorável. A Hovione, apesar de estar numa situação favorável, tem sabido apostar e fazer certas opções estratégicas muito antes que a concorrência.

Nós fomos para a China em 1979 e nenhum dos nossos concorrentes se lembrou de fazer isso. Quando decidimos fazer o centro de investigação em Princeton, em 2001, estávamos a apostar nas pequenas biotechs. Nenhum dos nossos concorrentes fez isso».

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