Se o conflito na Ucrânia escalar para Guerra Mundial, quem será mobilizado no nosso País? Os primeiros dias explicados por um tenente-general

A guerra entre Rússia e Ucrânia, que já dura há mais de dois anos e meio, tem levantado questões sobre como os países da NATO, incluindo Portugal, se mobilizariam num cenário de escalada do conflito para uma eventual Terceira Guerra Mundial, que, segundo vários analistas, se pode tornar um cenário cada vez mais provável, com o envolvimento de soldados da Coreia do Norte no combate, e a contínua ameaça de uso de armas nucleares por parte de Putin, que esta terça-feira ganhou novos contornos.

No caso português, o processo de mobilização apresenta diferenças significativas em relação ao de países como a Rússia, que viu a mobilização de mais de 300 mil reservistas logo no início da invasão da Ucrânia, especialmente devido ao caráter voluntário e profissionalizado das Forças Armadas em tempo de paz, uma realidade estabelecida desde o fim do serviço militar obrigatório, em 2004.

Perante a possibilidade de uma guerra declarada entre a Aliança Atlântica e a Rússia, e caso se desse um ataque de Moscovo contra um dos aliados, seriam ativados os artigos 4.º e 5.º da NATO. O primeiro respeita a um aviso de uma emergência de segurança crescente que precisa de atenção urgente, enquanto o segundo consagra o princípio da defesa mútua (e foi invocado apenas uma vez, aquando dos atentados terroristas do 11 de Setembro).

Conflito entre NATO e Rússia seria “uma situação complexa”. Mas há planos prontos a ativar
Contactado pela ‘Executive Digest’ o tenente-general Marco Serronha, explica que uma eventual declaração de guerra entre os dois blocos militares levanta “uma situação complexa”.

“Isto vem do artigo 5º da NATO, que diz que é responsabilidade de todos os membros defenderem a agressão ou a iminência da agressão. Neste caso concreto, não é preciso a Rússia dar um tiro para a NATO agir, basta os serviços de informações militares da aliança darem o alerta dessa possibilidade para imediatamente a NATO desencadear os mecanismos de alerta rápido que tem de planeamento de defesa militar”, começou por dizer o especialista.

“Há graus de alerta que vão aumentando conforme a informação vai surgindo. Se a Rússia começasse a colocar o seu sistema de alerta nuclear a funcionar, com comunicações entre sistemas de comando e controlo e as bases onde estão os mísseis balísticos, qualquer alteração do sistema nuclear russo seria imediatamente um alerta. Mas, no caso convencional, é mais fácil porque Moscovo teria de movimentar meios no terreno, o que demora mais tempo. Não acredito, no entanto, que a Rússia tome qualquer tipo de ação num país NATO”, indicou o tenente-general.

“O sistema de reação da NATO tem um conjunto de processos de decisão que tem de ser tomado. Para já, tem de haver acordo para decretar o Artigo 5º – por isso há receios que possa haver países a roer a corda e atrasa o sistema. Pode haver um boicote do sistema, porque tem de haver unanimidade na decisão, por consenso de todos. A ativação do sistema de resposta tem de ter concordância de todos, o que é uma fragilidade da NATO”, sublinhou, garantindo que “o tempo conta” nesta situação. “Há aqui um processo que demora tempo, e essa demora pode prejudicar a resposta da NATO.”

“Os planos são ativados por regiões, embora haja também um plano global. Há diversos planos: para o leste, o Báltico, o Atlântico “, referiu o especialista militar, salientando que os detalhes dos planos “são, como imagina, secretos, estão escritos, aprovados e objetos alguns deles de treino, em exercícios que pretendem testar partes desses planos”.

As Forças Armadas portuguesas estão, portanto, perfeitamente avisadas de qualquer eventualidade. Mas o avanço de tropas nacionais depende do tipo de ameaça. “Se a ameaça for terrestre, evidentemente que a ativação dos planos implica as três componentes mais conhecidas: aérea, naval e terrestre. Mas também há a parte cibernética, na comunicação estratégica. Tudo isso é ativado de forma conjunta. Mas não há dúvida que os meios militares terrestres, que não estão pré-posicionados – e Portugal tem uma companhia na Roménia num quadro de vigilância avançada -, serão os primeiros”, termina o tenente-general.

Quem seria chamado a combater em Portugal? O contingente militar ativo e os reservistas

Atualmente, Portugal conta com cerca de 27 mil militares no ativo, número que varia ligeiramente dependendo das fontes e que já não é oficialmente atualizado desde a descontinuação do Anuário Estatístico de Defesa Nacional, em 2016. Num cenário de necessidade iminente de reforço das forças armadas, o primeiro passo seria mobilizar este contingente, que engloba os ramos do Exército, Marinha e Força Aérea.

A seguir, seriam chamados os militares na reserva, divididos em duas categorias.

A primeira é composta por militares da reserva ativa, que ainda desempenham funções administrativas nas Forças Armadas. A segunda inclui militares na reserva fora da efetividade, que permanecem nesta condição durante cinco anos até atingirem a idade de reforma, geralmente aos 66 anos. Juntos, estes dois grupos somam cerca de 8 mil pessoas, o que elevaria o contingente nacional para aproximadamente 35 mil militares, segundo fontes militares.

Numa eventual mobilização, os militares mais jovens seriam destacados para a frente de combate, enquanto os mais velhos assumiriam funções de retaguarda, tirando proveito da experiência para desempenhar papéis de comando e controlo.

Recrutamento de civis: um vazio legal

Caso as forças regulares e os reservistas fossem insuficientes, seria necessário mobilizar civis. A Lei do Serviço Militar, de 1999, prevê a existência de uma reserva de recrutamento composta por cidadãos portugueses com idades entre os 18 e os 35 anos, que podem ser convocados de forma excecional. No entanto, esta possibilidade carece de regulamentação específica, o que cria incerteza quanto à aplicação prática deste recurso.

Embora tenha havido discussões sobre a necessidade de rever o modelo de recrutamento, incluindo a criação de um grupo de trabalho anunciado em 2020 pelo então ministro da Defesa João Gomes Cravinho, até ao momento não foram implementadas alterações significativas.

Uma solução mais imediata seria mobilizar ex-militares que já tenham prestado serviço e atualmente trabalhem em entidades civis, como as forças de segurança. Este grupo, segundo estimativas, poderia aumentar o efetivo nacional para cerca de 40 a 45 mil pessoas, com menor necessidade de formação.

Mobilização geral seria ‘último recurso’

Num cenário de maior necessidade, a Lei de Defesa Nacional prevê a mobilização de toda a população. O artigo 38.º estabelece que o Estado pode convocar cidadãos de todas as idades para a defesa da pátria, determinando ainda que essa mobilização pode ser total ou parcial, abrangendo setores de atividade ou áreas territoriais específicas.

Embora não exista um plano conhecido, seria natural que a prioridade recaísse sobre os mais jovens, até aos 35 anos, mesmo que não possuíssem formação militar prévia. Neste caso, seria necessário um período de formação de cerca de seis meses. Com base nos dados do Instituto Nacional de Estatística, Portugal conta atualmente com mais de 1,5 milhões de cidadãos nesta faixa etária, o que permitiria mobilizar cerca de 100 mil pessoas.

Portugal e a NATO

Desde o início da invasão da Ucrânia, Portugal tem desempenhado um papel ativo no âmbito da NATO. Logo após o início do conflito, em 2022, o Conselho Superior de Defesa Nacional aprovou, por unanimidade, a mobilização de 1500 militares portugueses para reforçar as operações da aliança.

Apesar do envolvimento indireto, a maioria dos portugueses não apoia uma participação militar direta da NATO na guerra. Apenas 19% dos inquiridos na mesma sondagem defenderam que a aliança deve combater ao lado da Ucrânia contra a Rússia, enquanto a maioria prefere o envio de equipamento militar como forma de apoio.

Quanto à entrada da Ucrânia na NATO, os portugueses mostram-se favoráveis, assim como à adesão do país à União Europeia, que conta com 74% de apoio.

Experiência histórica e a opinião pública

A última grande mobilização em Portugal ocorreu durante a Guerra Colonial, entre 1961 e 1975, quando mais de 300 mil militares foram destacados para os teatros de operações em África. Este período também registou elevados índices de deserção, com mais de 8 mil casos documentados, segundo o historiador Miguel Cardina.

No contexto atual, um estudo da Pitagórica, realizado em 2022 para a TVI, revelou que 55% dos portugueses concordam com a mobilização excecional de jovens para apoiar a NATO, enquanto 60% afirmaram que seria provável ou muito provável oferecerem-se para defender o país em caso de invasão.

*Com Francisco Laranjeira

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