Revés na posição de Trump à vista e uma nova fase da guerra que será “muito, muito curta”. O que significa e que impactos terá o uso de mísseis ATACMS pela Ucrânia?

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, autorizou a utilização de mísseis de longo alcance ATACMS pela Ucrânia para atacar território russo, uma decisão que promete alterar os rumos do conflito. O anúncio surge após meses de apelos do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para o fornecimento deste armamento, e num momento de grande incerteza política nos EUA, com a recente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais. Em entrevista à Executive Digest, Bruno Ferreira da Costa, politólogo e especialista em Conflitos Internacionais da Universidade da Beira Interior, analisou a decisão, que considera inesperada dada a atual conjuntura política nos Estados Unidos.

“Não seria expectável, porque, de facto, o objetivo nestas fases de transição de pastas, tendo em conta uma mudança clara de linha política e partidária, seria uma transição pacífica e coordenada entre o presidente em exercício e o presidente-eleito. Há aqui uma dúvida que ainda não foi esclarecida: se esta decisão foi partilhada e conhecida após a reunião entre Joe Biden e Donald Trump, ou se foi tomada unilateralmente por Biden, ao arrepio do que seria a posição da nova administração”, afirmou, sustentando que esta decisão se encaixa numa “nova fase da guerra” que será “muito, muito rápida”, com a transição de poder nos EUA no horizonte, já a 6 de janeiro do ano que vem.

Era uma decisão expectável ainda antes do fim do mandato de Biden, e sendo que Zelensky tinha feito já este pedido/apelo várias vezes durante os últimos meses de conflito?

Expectável não seria, porque de facto o objetivo nestas fases de transição de pastas, e tendo em conta uma mudança clara de linha politica/partidária doa EUA, será expectável uma transição pacífica, ou muito mais coordenada entre o presidente em exercício e o presidente-eleito. Portanto, há aqui uma duvida que ainda não foi esclarecida: se de facto esta decisão acaba por acontecer partilhada e conhecida após a reunião entre Joe Biden e Donald Trump, ou se acaba por ser uma decisão de Biden, ao arrepio do que seria eventualmente a decisão da nova administração.

Não seria expectável até porque acontece em vésperas do encontro do G20, e vem de certo modo alterar a centralidade do debate desta reunião, e também porque acontece precisamente num final de mandato. Era uma decisão que Zelensky já pedia há vários meses, e que poderia ter tido um impacto no decurso da guerra também há vários meses.. Agora parece mais uma forma de pressão e de assinalar precisamente à próxima administração qual deve ser o caminho em relação à gestão ou ao posicionamento dos EUA neste conflito. E houve duas decisões que me parecem relevantes: Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, que refere que todas as verbas disponíveis em termos de orçamento até à passagem de pasta deverão ser utilizadas para ajudar a Ucrânia, e há aqui uma alocação de verbas, que até tem sido criticada por alguns setores republicanos, e esta decisão de âmbito mais bélico, mais militar de permitir a utilização deste armamento [mísseis ATACAMS] em território russo.

Parece-me mais ter como um objetivo sinalizar à próxima administração, claramente, qual é o posicionamento do Partido Democrata e da atual administração em relação à Rússia.

Na eventualidade de ter sido esforço coordenado entre Biden e Trump, será que podemos ver um revés do que seria a posição democrata, e do que foi sendo anunciado ao longo da campanha, em relação à Ucrânia?

Sim, não seria um total revés, mas essencialmente é um afinar das posições. De facto, qualquer decisão que venha a ser tomada pela administração Trump já será tomada em comparação com esta decisão. Ou seja, uma decisão de claramente forçar a Ucrânia a um processo negocial, ou de cortar apoios no âmbito financeiro ou militar a Kiev, já será sempre tido em conta com um momento prévio a este, mas sim com este momento: com uma posição de muito maior apoio à Ucrânia, para permitir fazer face aos ataques da Rússia vividos nas últimas semanas.

Embora me pareça, também, que eventualmente esta decisão só surge nesta altura precisamente devido ao timing pós-eleitoral. O partido Democrata terá tentado também evitar um posicionamento que pudesse alimentar ainda mais a posição de Trump e do Partido Republicano. Seja em relação à questão da Ucrânia ou de Gaza, verificamos nas últimas semanas ou meses alguma ausência de clarificação por parte da administração Biden, que estaria certamente relacionada com a tentativa de não afastar eleitorado nestes momentos antes das eleições presidenciais.

Os mísseis talvez seriam mais bem-vindos noutra fase e teriam outro impacto, caso a decisão tivesse sido antecipada, mas nesta fase o que significa a ‘luz verde’ aos ATACAMS? O que permite à Ucrânia? O que dá de sinal ao mundo? E qual a reação expectável da Rússia?

Verificamos que há um agudizar da situação, um agravamento, com esta tomada de posição. É um posicionamento que já foi corroborado por outros países, como Reino Unido e França, que também permitiram a utilização de armamento que cederam à Ucrânia em território russo. Parece haver aqui alguma conciliação de posições entre os tradicionais aliados dos EUA.

O que se verifica é permitir precisamente um maior efeito de dissuasão, ou seja, garantir que a Ucrânia tem armamento que permita dissuadir a Rússia a aprofundar ataques –  nesta fase ainda não se verificou, e temos visto nos últimos dias ofensivas significativas em território ucraniano e em infraestruturas centrais e energéticas. No entanto, o sinal será precisamente de permitir à Ucrânia ganhar alguma margem, não só de negociação, mas também de capacidade de atingir locais onde estão concentrados os pontos de ataque a território ucraniano. E de certo modo equilibrar o conflito, que estava desequilibrado por duas questões. Em primeiro lugar a questão do controlo aéreo e da supremacia aérea, que era evidente por parte da Rússia até ao início da cedência dos F-16 à Ucrânia. E em segundo lugar ela incapacidade de usar algum deste armamento cedido à Ucrânia na Rússia.

O que Biden e a administração deixam a Trump é uma situação de maior conflito, e parece-me que a Rússia, do ponto de vista discursivo, já iniciou uma narrativa, assumindo que a utilização deste armamento será considerada como um ataque mais transversal, e a ameaça de usar outro tipo de armamento como resposta. Ou seja, haverá um agravar da situação num contexto internacional, e esse agravar da situação já é prévio, por exemplo, com o envolvimento de forças norte-coreanas em território ucraniano, a combater do lado da Rússia.

Com esta dualidade, podemos dizer que estamos numa nova fase da guerra?

Sim, estamos numa nova fase. Em primeiro lugar porque no terreno, a partir de meados de outubro, já se começou a sentir isso. E até fevereiro há uma dificuldade muito grande em avançar no terreno, em virtude das condições meteorológicas e de terreno. Não havendo aqui totalmente um congelar do conflito, esse conflito passa a estar associado a esta supremacia aérea e utilização de armamento e ataques que não passem por ganhos e perdas no terreno, ou um confronto mais direto entre forças localizadas no terreno.

Mas isto poderá permitir à Ucrânia tentar manter ou até aprofundar o controlo da parte do território russo que ainda tem na zona de Kursk, precisamente. E entramos numa fase em que Kiev pass a ater novas ferramentas, não apenas para se defender, mas também para atacar território russo, e dissuadir Moscovo de novos ataques a território ucraniano. Embora, de facto, me pareça também que esta nova fase da guerra vai ser muito, muito curta, porque teremos de verificar qual será o posicionamento da nova administração Trump em relação à Ucrânia. O que é certo é que já verificamos, por exemplo esta semana, declarações de Zelensky a afirmar que os EUA não poderiam forçar a Ucrânia a sentar-se à mesa e a aceitar alguns termos das negociações, e essas declarações foram amplamente criticadas por um dos novos elementos da administração Trump, Elon Musk.

Há muitas dúvidas ainda sobre a durabilidade desta nova fase de destas novas possibilidades que a Ucrânia ganha, de atingir território russo, em virtude, precisamente, de aqui a um mês e meio, haver uma transição de pasta, sem que haja uma indicação clara sobre qual será a estratégia de Trump para o conflito. Há da parte de alguns dirigentes ucranianos algum otimismo com o facto de o conflito poder ser resolvido com esta nova administração, embora os termos de diálogo e de negociação ainda estejam por clarificar, e teremos que aguardar até depois de 6 de janeiro de 2025.

 

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O Sistema de Mísseis Táticos do Exército (ATACMS), com alcance de até 306 quilómetros, permitirá à Ucrânia atingir centenas de alvos militares estratégicos em território russo, incluindo bases aéreas, centros de comando e depósitos de munições. Esta medida surge num contexto em que a Rússia intensifica as suas ofensivas e recebe apoio militar da Coreia do Norte, que enviou milhares de soldados para combater ao lado das forças russas na região de Kursk, retomada pelos ucranianos em agosto.

Segundo o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), mais de 200 alvos estratégicos na Rússia poderão ser atingidos com o uso deste armamento.

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