Empresas centenárias: É com lata que dizem que há 170 anos fazem as “melhores conservas do mundo”

Corria o ano de 1853 quando uma pequena vila portuguesa, Vila Real de Santo António, via nascer um projecto que atravessaria gerações. Ali, Sebastian Ramirez, com visão empreendedora, fundou uma fábrica que daria origem à mais antiga empresa de conservas de peixe em funcionamento contínuo no mundo.
A história da Ramirez é marcada pelo legado familiar. Manuel, filho de Sebastian, foi pioneiro ao lançar o primeiro galeão sardinheiro a vapor português, o Nossa Senhora da Encarnação. Esse avanço possibilitou a expansão para novas fábricas em locais como Olhão, Albufeira e Setúbal, levando a Ramirez a mercados internacionais.
Nos anos 1940, Emílio, neto do fundador, tomou a decisão estratégica de transferir a principal fábrica para Matosinhos, uma região onde o peixe era abundante. Essa mudança solidificou a presença da Ramirez na indústria e reforçou o compromisso com a qualidade que sempre caracterizou a empresa.

Ao longo dos anos, cada nova geração da família trouxe inovações, mas sempre preservou a essência do que
Sebastian havia iniciado. O que diferencia a Ramirez não é apenas a sua longa história, mas a sua habilidade em adaptar-se às mudanças, sem jamais esquecer as suas raízes.
Hoje, a Ramirez continua a produzir uma ampla gama de produtos, desde sardinhas e atum até pratos prontos a servir, como bacalhau com grão. Cada conserva é feita com cuidado e paixão, reflectindo uma tradição que já dura séculos. A quinta geração está agora ao leme, mas já com a sexta no convés a aprender as lides para dar continuidade a este negócio centenário.
E quem agarra actualmente o leme é Manuel Ramirez que, em entrevista à Executive Digest, deu a conhecer o segredo por trás de uma história empresarial de 170 anos, bem como a realidade que o sector vive actualmente.

Como é que se resumem 170 anos numa breve resposta?
Uma grande paixão e dedicação num cenário muito próprio, num sector muito particular e de muita entrega, com muitas particularidades, diferente de quase todos.
A Ramirez começou pelas mãos do meu trisavô que era espanhol, em Vila Real de Santo António. Era lavrador na Andaluzia e houve um período em que enfrentou dificuldades no pós-invasão francesa, altura em que veio para Portugal e descobriu a abundância de atum no Algarve, o que o leva a pensar numa actividade conserveira, inicialmente com o sal, até se ter descoberto a conserva em 1965. 

E o que sente quando fala de uma história centenária que é sua e da sua família?
É um peso e uma responsabilidade. Levo a empresa de uma forma muito especial, e estou aqui de empréstimo, a ajudar a passar o testemunho para uma próxima geração. Tudo se mistura com a nossa família, é o nosso nome, é a nossa marca, é a nossa empresa, e isso é algo que se confunde connosco.

Ao longo da sua história, houve momentos mais marcantes para a empresa!
Há alguns episódios de várias gerações. Certamente, acredito que todas as gerações que passaram pela história da Ramirez tiveram períodos muito bons e também muito complicados, nomeadamente alterações conjunturais grandes, com destaque para os cinco reis que governaram durante os anos em que a empresa viveu durante a monarquia.
Para além disso, destacam-se no percurso a passagem por 27 Presidentes da República, duas guerras mundiais, revoluções, princípio e fim do comunismo, entre outros.
No entanto, o mais marcante, para mim, foi alguns avanços tecnológicos que fizemos cá, nomeadamente, após o 25 de Abril, a capacidade de o meu pai e o meu avô implementarem o frio. Acho que isso foi um ponto de viragem total na empresa porque, até lá, era a campanha do dia que contava, as fábricas funcionavam com o peixe da época. Havia peixe, trabalhava-se, não havia peixe, não se trabalhava.

E o frio veio mudar completamente o paradigma do sector. Por exemplo, a sardinha é um produto sazonal, que tem um
período de gordura e de desova, e temos de precaver isso com o frio, ou seja, comprar na altura em que há muito e armazenar para a época em que não havia.
Uma só acção, ou seja, a refrigeração, permitiu segurança alimentar e empregabilidade, porque permitiu as oito horas diárias de trabalho sem interrupção sazonal, e previsibilidade no negócio.
Temos a sorte de trabalhar 70% do negócio com marcas nossas, mas depois trabalhamos também as marcas próprias de outras empresas. Não conseguiríamos cumprir com todas as exigências se não fosse dessa forma.

Se tivesse que descrever o processo de produção das conservas na Ramirez…
Nos últimos 30 anos tivemos três fábricas, uma em Vila Real de Santo António, outra em Peniche e a casa-mãe que agora é em Leça da Palmeira, sendo que foi tudo centralizado nesta última, tendo as outras duas encerrado.
Esta fábrica apresenta o lado mais moderno da Ramirez. Ainda que tenhamos algum do material tradicional e que
faz parte da história da empresa, nesta fábrica sabemos que fazemos as melhores conservas do mundo.
Fomos inclusivamente considerados por auditores como uma das quatro melhores unidades agro-industriais do mundo, o que nos deixa muito satisfeitos.
Temos um produto para um segmento médio/alto, mas com um preço bastante acessível. Fazemos sardinha e atum, mas fazemos 200 variedades diferentes de produtos entre as 29 marcas que temos no portefólio, das quais estão 14 activas. Muitas delas são, essencialmente, marcas de exportação.

E qual tem  sido  a oscilação da exportação na vossa actividade?
Actualmente, cerca de 50%. Já foi mais, andamos nos 70%, mas hoje temos mais representatividade no mercado nacional.
Neste âmbito, na Europa, a Bélgica é um mercado muito importante, França, Alemanha, Espanha, Suíça. Fora da Europa, temos bastante presença na China, nas zonas de Hong Kong e Macau, nas Filipinas, em África, nos EUA e no Canadá que são mercados muito importantes para nós, no Brasil onde estamos desde 1903, na Austrália. 

Como é trabalhar na Ramirez?
A média de idade anda acima dos 20 anos. Na parte administrativa temos colaboradores com sete ou oito anos, mas temos um com mais de 50 anos, que é pai de um director de produção e compras.
A Ramirez tem um espírito muito familiar, temos creche desde o tempo do meu trisavô, pela necessidade de apoiar as colaboradoras, numa força laboral que sempre foi maioritariamente feminina, pela sua capacidade de lidar com o processo de uma forma mais delicada.
Trabalhar na Ramirez é um acto de paixão. Temos casos de avós, de filhas, de sobrinhas, e temos inclusive um caso de um colaborador nosso que nasceu na fábrica, literalmente. Até tem por hábito dizer que só não nasceu enlatado porque não havia latas daquele tamanho.
Damos apoio à creche, temos uma carrinha para ir buscar e levar os funcionários que não têm transporte, temos duas festas anuais para reunir a empresa, temos as castanhas do São Martinho, temos sempre uma porta aberta para os nossos funcionários, e isso é algo que caracteriza muito a Ramirez.
Antigamente chegou a haver 400 fábricas de conservas em Portugal, era o maior sector exportador do País, e também havia muita possibilidade de recrutar pessoas, algo que hoje não acontece, pelo que damos formação interna aos colaboradores.

Antigamente eram 400, mas hoje são poucas. Quais os desafios do sector?
Acho que o maior desafio é o abastecimento. Tivemos um período difícil que acredito que possa estar relacionado
com a sobrepesca, e houve um controlo muito maior dessa matéria-prima.
Nos últimos números, estamos com mais de uma tonelada de sardinha na nossa costa, que são números fantásticos. E estamos a pescar apenas 3% do que temos. Acho que temos de pescar mais, e isso tem sido um dos principais pontos de discussão da nossa associação, porque precisamos de mais peixe. Esta é uma das minhas principais preocupações, e era também do meu pai, mas penso que estamos no bom caminho.

Há um segredo para uma empresa estar activa durante 170 anos no mercado?
É um conjunto de factores, mas foi principalmente a preparação das pessoas e a sua vontade. No nosso caso tivemos
sempre uma linha de homens que mantiveram a empresa no nome sem se desvirtuar. O facto de ser uma empresa familiar foi muito importante na história da Ramirez.
Para mim um dos factores fundamentais foi a escolha e a sorte dos nossos colaboradores mais próximos. Tivemos sorte de na geração anterior e na minha termos bons colaboradores, pessoas muito dedicadas que gostam da empresa, e isso faz a diferença. 

Uma boa liderança será determinante. O que é um bom líder?
Uma boa liderança cria uma boa equipa. Um chefe pode criar um grupo, mas desvirtua-se. Temos tido a capacidade de juntar gente muito boa.
Quando assumi a liderança da Ramirez acabei por descentralizar dentro do nosso grupo, com muito sucesso, fazemos quinzenalmente as nossas reuniões de gestão, e as coisas partilham-se de uma forma evidente que facilita a gestão da empresa. Essa liderança partilhada torna-se, a meu ver, muito mais fácil.

E que projectos desenhou para o futuro?
Há dois casos de mercados em franco desenvolvimento, que não estariam nos meus horizontes no princípio deste ano, que podem criar uma dinâmica muito interessante em cima das que já temos.
Temos também um projecto para ampliação de instalações de armazenamento e de frio, bem como um projecto que está já em execução de extensão da cobertura com painéis fotovoltaicos. O nosso autoconsumo é de 34%, e vamos incrementar para 50% a 60% para melhorar a eficiência energética.
Temos uma unidade muito verde porque temos biomassa nas nossas caldeiras, tubos solares para iluminação nas instalações, aproveitamento de águas pluviais para limpeza, bem como o aproveitamento do calor de equipamentos para descongelar peixe. 

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