Como o “confinamento climático” salvou dezenas de vidas durante a tempestade Boris e impediu tragédia como a DANA em Espanha

No passado setembro, a tempestade Boris, uma intensa borrasca que atravessou a Europa Central, levou à implementação de um “confinamento climático” na Áustria e na República Checa. Previsões meteorológicas precisas e ações coordenadas foram essenciais para salvar vidas, num fenómeno extremo onde o rigor das medidas adotadas fez a diferença em relação a desastres passados.

Eleonore, uma residente reformada de Hadersdorf am Kamp, Áustria, relembra as grandes inundações de 2002 que devastaram a região e que causaram 232 mortes na Áustria, Alemanha e República Checa. “Desta vez, a situação é muito melhor”, comentou Eleonore ao El Confidencial, ao comparar as inundações de setembro com as de há 22 anos, quando a ausência de informação apanhou os residentes desprevenidos e impediu uma resposta rápida. “Naquela ocasião, a água já tinha invadido as casas e ninguém nos tinha avisado”, recorda. Desde então, melhorias substanciais foram feitas para evitar mais mortes e minimizar os danos causados por eventos climáticos extremos.

O vale de Kamp é particularmente vulnerável a inundações. Em 2002, os moradores contavam apenas com previsões básicas e algumas horas de aviso sobre os níveis de água no rio Danúbio. Agora, sistemas de medição em tempo real monitorizam diversos pontos do país, permitindo que as autoridades emitam alertas com mais antecedência e precisão. Desta vez, a tempestade Boris foi detetada antecipadamente, e os modelos meteorológicos indicaram um potencial impacto significativo para a Áustria e os países vizinhos.

Estratégias de confinamento e cancelamento de eventos

Na Áustria, uma série de medidas preventivas foram adotadas para enfrentar a borrasca Boris, incluindo o cancelamento de eventos de grande porte, como o concerto da banda de metal Agriculture no Arena Wien, e a gala “Starnacht” à beira do Danúbio. Para além destas medidas, foram instalados sistemas móveis de proteção contra inundações, prepararam-se sacos de areia e criaram-se zonas de contenção. O governo austríaco aconselhou ainda os cidadãos a permanecerem em casa durante o fim de semana, num esforço que os internautas rapidamente apelidaram de “confinamento climático”, evocando a experiência recente da pandemia.

Apesar das precauções, os danos materiais foram extensos. Diversos rios transbordaram na região de Waldviertel, provocando a destruição de pontes, a rutura de represas e obrigando à evacuação de várias aldeias. Em contraste com o desastre de 2002, o número de vítimas mortais foi significativamente reduzido: cinco pessoas perderam a vida, incluindo um bombeiro em ação de resgate. A hidróloga britânica Hannah Cloke, da Universidade de Reading, observou que a resposta preventiva foi exemplar. “A tempestade Boris é um bom exemplo de um fenómeno meteorológico extremo bem antecipado”, comentou Cloke ao El Confidencial, destacando o trabalho das autoridades locais que emitiram ordens de evacuação para áreas de alto risco, orientando os residentes de forma clara sobre como agir.

Outro fator fundamental foi o sistema de defesa contra inundações de Viena, que inclui canais capazes de suportar um volume de água de até 14 mil metros cúbicos por segundo, como explica Günter Blöschl, diretor do Centro de Sistemas de Recursos Hídricos da Universidade Tecnológica de Viena, em declarações à BBC. Blöschl lembra que, após as trágicas inundações de 2002 e 2013, o país investiu fortemente em infraestruturas de prevenção de cheias, como a construção da Ilha do Danúbio e o Novo Danúbio, um canal de controlo de cheias.

Na República Checa, o cenário foi semelhante. Jaroslav, de 60 anos, residente em Hanušovice, recorda a ordem de evacuação emitida pelo governo quando as autoridades previam o agravamento da situação. “Já nos tinham arrastado uma vez”, afirmou. Desta vez, Jaroslav preparou as malas e refugiou-se em casa da irmã antes da inundação. Em 2002, a República Checa sofreu com mais de 200 mil evacuações e 1,5 milhões de pessoas afetadas. Em setembro de 2024, a Cruz Vermelha contabilizou cerca de 17 mil pessoas afetadas e 10 mil evacuações. Segundo Marek Stys, coordenador de programas de emergência da organização checa People in Need, a diferença esteve nos avanços das previsões meteorológicas, que permitiram preparar os municípios e facilitar o trabalho das equipas de resgate.

Desafios de comunicação e problemas de coordenação em Cieszyn

Em alguns casos, como na cidade de Cieszyn, dividida entre a República Checa e a Polónia pelo rio Olza, a resposta foi desigual. No lado checo, as autoridades coordenaram as operações desde a noite de sábado, promovendo evacuações em áreas vulneráveis e disponibilizando autocarros para o transporte dos residentes. No entanto, do lado polaco, a primeira resposta só chegou depois do rio já ter transbordado, revelando uma falha de comunicação crítica.

Para evitar cenários como este, Cloke reforça que os sistemas de alerta devem ser continuamente avaliados e ajustados. “A população não deve depender apenas de um sistema binário de alerta, onde tudo está bem ou tudo é emergência”, explica a hidróloga. A especialista aponta que, além das mensagens para dispositivos móveis, é essencial utilizar uma combinação de canais de comunicação, como redes sociais, meios de comunicação e entidades locais, para garantir que a população compreende o risco e saiba como reagir em tempo útil.

Para Stys, da People in Need, a hesitação de alguns residentes em seguir as orientações oficiais prejudicou a eficácia das operações de resgate. Alguns optaram por ignorar as ordens de evacuação, precisando mais tarde de ser resgatados por helicópteros. A hidróloga Cloke destaca que a disseminação de falsas informações agrava este problema e apela para que as comunidades sejam orientadas com precisão.

Em agosto de 2021, uma situação semelhante ocorreu na bacia do Reno, onde previsões claras foram ignoradas, resultando em 189 mortes na Alemanha e dezenas mais na Bélgica e países vizinhos. Para os especialistas, as inundações são um dos desastres naturais mais recorrentes na Europa, e os sistemas de alerta eficazes continuam a ser a melhor defesa para proteger vidas e reduzir os danos materiais.

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