Dia de Todos os Santos: Quais as origens e raízes culturais da tradição do “Pão por Deus”?

No dia 1 de novembro, Dia de Todos os Santos, milhares de crianças em Portugal mantêm viva uma antiga tradição: o “Pão por Deus”. De porta em porta, recitam versos e recebem pequenas oferendas, como pão, frutos secos, bolos ou dinheiro. Esta prática secular, preservada em várias regiões do país, é parte de uma herança cultural e religiosa que se conecta com celebrações ancestrais em honra dos santos e das almas dos defuntos.

A celebração do Dia de Todos os Santos tem raízes no cristianismo primitivo, quando a Igreja começou a dedicar um dia especial aos mártires e santos. Em 610 d.C., o Papa Bonifácio IV formalizou essa comemoração a 13 de maio. Mais tarde, por volta de 835, o Papa Gregório IV alterou a data para 1 de novembro, estabelecendo-a como uma festa mundial para honrar os santos conhecidos e desconhecidos. Durante o século XX, o Papa Pio X incluiu o Dia de Todos os Santos na lista oficial das grandes celebrações cristãs, fazendo dele um feriado em vários países católicos.

Apesar de ser um dia de celebração para os santos, o 1 de novembro antecede o Dia dos Fiéis Defuntos, a 2 de novembro, conhecido também como Dia de Finados. Este dia é dedicado à memória dos falecidos, e por isso, a data é marcada por visitas aos cemitérios e a colocação de flores nas campas dos familiares, prática comum em muitos países europeus, incluindo França e Portugal.

Tradições da véspera e Dia de Todos os Santos ao longo dos séculos

Desde tempos antigos, a véspera de Todos os Santos foi cercada de tradições que evocam a ligação com os mortos e as almas em purgatório. Na Idade Média, por exemplo, havia a crença, especialmente na Bretanha, de que durante a “noite dos mortos”, as almas saíam do purgatório e visitavam as suas antigas residências. Famílias católicas mantinham vigílias, recitando o salmo De Profundis, e preparavam a mesa com comida e bebida para as almas dos entes falecidos.

Em Inglaterra e Irlanda, uma prática similar ganhou popularidade: o “Soul Cake” ou “bolo da alma”. Crianças e adultos pediam esta pequena bolacha nas casas dos vizinhos, oferecendo orações em troca pela alma dos familiares daquela casa. Acreditava-se que cada bolo partilhado libertava uma alma do purgatório. Esta tradição perdurou até ao século passado e, em 2009, o músico Sting homenageou-a na canção “Soul Cake”, incluída no álbum If on a Winter’s Night.

O “Pão por Deus” em Portugal: uma tradição que resistiu ao tempo

Em Portugal, uma versão semelhante ao “Soul Cake” britânico é o “Pão por Deus”. Esta tradição, documentada em diversas regiões do país, envolve grupos de crianças que, desde a manhã de 1 de novembro, percorrem as ruas a pedir o “Pão por Deus”. Em troca dos versos entoados, as crianças recebem pão, broas, romãs, nozes, castanhas ou até algum dinheiro. A tradição, amplamente disseminada, ganhou novos contornos após o terramoto de 1755 em Lisboa, que ocorreu justamente no Dia de Todos os Santos. Com a cidade devastada e a população a enfrentar uma crise de fome, o “Pão por Deus” passou a ser uma oportunidade de ajudar as famílias a completar a sua refeição do feriado, ganhando força e popularidade na capital.

Em algumas regiões, a tradição evoluiu para versões específicas: na zona de Coimbra, as crianças cantam “Bolinhos, bolinhós” enquanto carregam caixas de cartão ou abóboras esculpidas com buracos a fazer de olhos. Este cântico, acompanhado por pedidos, é uma forma de lembrar os defuntos: “Bolinhos, bolinhós, para mim e para vós, para dar aos finados, que estão mortos e enterrados.”

Uma celebração de identidade e memória cultural

A prática do “Pão por Deus” e das suas variações locais foi-se adaptando ao longo das décadas. Nos anos 60 e 70, em algumas localidades, as regras começaram a limitar o pedido de porta em porta às crianças com menos de 10 anos, até ao meio-dia. Após esse horário, os jovens que ainda insistissem no peditório poderiam ser recebidos com um “raspanete” em vez de doçuras.

Tal como outras celebrações católicas, o Dia de Todos os Santos carrega uma forte herança cultural que vai além do significado religioso. Embora a prática do “Pão por Deus” possa variar de local para local, a sua persistência revela um profundo vínculo com as tradições ancestrais e a memória dos entes queridos. Hoje, a tradição mantém-se em várias localidades portuguesas, lembrando o valor da comunidade e da partilha num dia que homenageia tanto os santos como a memória dos familiares falecidos.

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