Refugiados presos como animais ou deportados como criminosos. Turquia acusada de violar direitos humanos na gestão de migrantes com dinheiro da UE

Nos últimos anos, a política de migração da União Europeia (UE) tem enfrentado críticas crescentes devido à sua abordagem em relação à Turquia, onde os direitos dos migrantes, em especial sírios e afegãos, estão em sério risco. Desde 2016, a UE tem investido consideráveis recursos financeiros na gestão da migração e na proteção das fronteiras, um esforço que, embora inicialmente destinado a apoiar refugiados, tem gradualmente se transformado num mecanismo para a deportação forçada.

Em 2022, a Comissão Europeia disponibilizou 1.000 milhões de euros para “gestão da migração e proteção de fronteiras”, dos quais cerca de 200 milhões foram direcionados a centros de detenção e deportação. Documentos obtidos pela investigação revelam que, apesar do foco inicial em educação e saúde, a Turquia, pressionada pela crise econômica e pelo aumento do ressentimento público em relação aos refugiados, tem solicitado que os fundos sejam redirecionados para “contenção da migração irregular” e aumento dos “retornos a Síria”.

Diplomatas europeus expressaram preocupações sobre a violação dos direitos humanos, mas muitas dessas queixas têm sido ignoradas. “O objetivo desses centros de receção era inicialmente diferente”, desabafou um diplomata europeu, ao EL País, que pediu uma revisão da forma como a UE gasta seu dinheiro em relação à Turquia, mas recebeu apenas silêncio ou respostas desdenhosas. Esse sentimento é corroborado por um antigo funcionário da Comissão Europeia, que destacou que as instruções eram de aumentar a segurança nas fronteiras, e que muitos colegas se opuseram a isso, dado que a Turquia não respeitava o espírito do apoio aos refugiados (EL PAÍS).

O sistema atual de deportação foi legitimado por figuras-chave da Comissão Europeia, como Oliver Varhelyi, o comissário húngaro de Vizinhança e Amplição, que se alinhou com a visão de Viktor Orbán. De acordo com fontes da UE, Varhelyi tem promovido a ideia de retornar refugiados para a Turquia, mesmo quando surgem preocupações sobre a legalidade e a ética dessas ações. “Ankara está a levar a cabo uma quantidade massiva de deportações forçadas para o Afeganistão, e nosso comissário está muito contente com isso”, afirmaram funcionários que pediram anonimato.

A pressão social e política na Turquia, exacerbada por uma grave crise econômica, resultou num aumento da hostilidade em relação aos migrantes. Recentes distúrbios xenófobos, como os ocorridos em julho na cidade de Kayseri, evidenciam a crescente intolerância e os ataques direcionados a refugiados sírios. Durante três noites, manifestantes turcos atacaram negócios e residências de refugiados, refletindo um clima de desconfiança e hostilidade alimentado por discursos xenófobos de meios de comunicação e partidos políticos. “A Turquia quer deixar de ser um país de trânsito para os fluxos migratórios”, afirma um terceiro diplomata europeu ao mesmo jornal espanhol.

O Tribunal Constitucional turco decidiu, neste ano, que os direitos de um centenar de sírios e afegãos foram violados ao serem deportados à força, sem considerar os riscos que enfrentariam em seus países de origem. Além disso, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou a Turquia em 2022 por deportações forçadas, e atualmente está a analisar outros casos semelhantes.

Organizações de direitos humanos, tanto turcas quanto internacionais, têm denunciado a deportação forçada e suas consequências. “A UE não tem reservas em subcontratar a terceiros para lidar com as violações dos direitos humanos”, afirma Emma Sinclair-Webb, diretora da Human Rights Watch na Turquia. “Sabem o que acontece nos centros de deportação que financiaram, mas preferem ignorar”, acrescentou.

A situação é crítica para os deportados, muitos dos quais enfrentam condições precárias e riscos à vida. Maryam, uma artista afegã, expressou sua profunda preocupação: “Se me deportarem, os talibãs me matarão no aeroporto”. Entre os deportados, casos trágicos têm sido relatados. Amer, um refugiado sírio que trabalhava em uma fábrica de têxteis em Kayseri, foi deportado em 2022 e, ao retornar à Síria, acabou morto em um bombardeio de artilharia do regime sírio, que causou a morte de nove pessoas, incluindo quatro crianças. “A UE condenou o ataque, ignorando que as deportações, financiadas por eles, foram o que o levou a esse destino”, destaca um relato (EL PAÍS).

Ainda assim, apesar da crescente evidência das violações e do sofrimento resultante, a UE continua a comprometer-se em aumentar a ajuda financeira para a Turquia, com diplomatas europeus a indicar que as verbas para os centros de deportação estão prestes a crescer. “Estamos a criar mais fundos para os centros de deportação”, reconhece um diplomata de um país comunitário. Essa ajuda, muitas vezes justificada por políticas internas de endurecimento frente à migração, levanta questões sérias sobre a conformidade da Turquia com as normas de direitos humanos.

A questão mais alarmante é que as regras da UE condicionam a assistência financeira ao cumprimento de normas, incluindo os direitos humanos. “O respeito pelos direitos fundamentais é um dos principais valores nas relações da UE com países terceiros”, afirma uma porta-voz da Comissão Europeia. Em caso de descumprimento, a Comissão pode suspender a ajuda e iniciar processos para a recuperação de fundos.

Entretanto, a afirmação de que “a aplicação e proteção destes direitos é responsabilidade da Turquia” parece insuficiente diante da gravidade da situação. Documentos internos da Frontex, a agência de vigilância de fronteiras europeia, revelam a preocupação de que as deportações forçadas possam comprometer a classificação da Turquia como um “terceiro país seguro”, o que, se comprovado, poderia ter sérias implicações para a continuidade do pacto migratório.

Sami, um jovem sírio deportado, lamenta: “Aquilo que financia estas deportações, que têm consequências tão diretas e devastadoras na vida de pessoas como eu, deveria ser reconsiderado. A Europa deveria pensar em como essas ações afetam a vida das pessoas. É inumano”. As consequências das políticas migratórias da UE em relação à Turquia não podem ser ignoradas, e a pressão para mudar essa abordagem se torna cada vez mais urgente.

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