Caos nas urgências: Médicos cumpriram 2 milhões de horas extras e de prestação de serviço para garantir cumprimento de escalas e serviços no verão

Os hospitais portugueses enfrentaram uma carga extraordinária de trabalho durante os meses de julho e agosto de 2024. Segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), foram registadas mais de um milhão de horas extraordinárias realizadas por médicos dos quadros hospitalares, precisamente 1 081 657 horas. A estas somam-se 893 024 horas cumpridas por médicos tarefeiros, profissionais contratados à hora sem vínculo direto com as unidades de saúde. Ao todo, os dois meses de verão totalizaram 1 974 681 horas extras e de prestação de serviços, utilizadas principalmente para cobrir escalas nos serviços de urgência. Apesar deste esforço, várias unidades hospitalares, especialmente nas áreas de Ginecologia-Obstetrícia e Pediatria, foram forçadas a encerrar temporariamente por falta de médicos.

Os dados, citado pelo Diário de Notícias, apontam para uma intensificação da necessidade de recursos extraordinários nos meses de verão. Até junho de 2024, a média mensal de horas extra e de prestações de serviços rondava os 938 mil por mês. Com a inclusão de julho e agosto, esse número subiu para cerca de 950 mil horas mensais. No total, até ao final de agosto, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) registou 4 256 582 horas extraordinárias realizadas por médicos dos quadros e 3 348 226 horas contratualizadas a tarefeiros, perfazendo um total de 7 604 808 horas. E ainda falta a chegada do inverno, período em que é habitual um novo pico no recurso a estes profissionais.

Sindicatos e especialistas da área alertam que a crise poderia ser ainda mais severa se não fosse o preenchimento das escalas de urgência com médicos tarefeiros e internos. Em várias unidades, os tarefeiros já constituem um terço ou mesmo metade das equipas, e em alguns casos, quase a totalidade. “Se não houve mais serviços a encerrar foi porque as falhas nas escalas estão a ser preenchidas maioritariamente por tarefeiros e médicos internos”, afirma Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM) ao mesmo jornal.

A sobrecarga de trabalho tem também um impacto significativo nos custos para o SNS. Só nos primeiros oito meses do ano, as horas extraordinárias dos médicos dos quadros e dos tarefeiros custaram ao Estado mais de 305 milhões de euros, dos quais 77 milhões foram gastos nos meses de julho e agosto. A maior parte desta despesa, 167,3 milhões de euros, deve-se às horas extraordinárias, enquanto os tarefeiros representaram um custo de 137,8 milhões de euros.

Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), reconhece o impacto financeiro desta prática: “É uma despesa que está a aumentar e a pesar nos orçamentos dos hospitais”, referindo ainda que, em muitas unidades, os tarefeiros asseguram pelo menos metade dos turnos das urgências. No entanto, alerta para o impacto que a dependência destes profissionais pode ter na qualidade dos cuidados prestados. “São profissionais que, muitas vezes, não são especialistas e que acabam por trabalhar em equipas nas quais não estão integrados”, adverte Barreto.

Joana Bordalo e Sá reforça esta preocupação, sublinhando que muitos tarefeiros não possuem especialidade e que, frequentemente, os médicos internos acabam por trabalhar com supervisão limitada. “Os internos são muitas vezes deixados aos cuidados dos tarefeiros, e não dos especialistas do quadro, o que afeta gravemente a sua formação e os cuidados prestados”, explica a dirigente da FNAM.

A dependência de tarefeiros estende-se a várias unidades de saúde em todo o país. Joana Bordalo e Sá destaca que, por exemplo, no Hospital de Braga, há tarefeiros na Pediatria, Cirurgia Geral e até na Urologia. Em Guimarães, na triagem, todos os médicos são tarefeiros, e o mesmo se verifica em áreas como Ortopedia e Cirurgia. No Hospital de Leiria, que enfrentou o encerramento prolongado da urgência de Ginecologia e Obstetrícia, o número de tarefeiros na Cirurgia duplicou, e na Ortopedia quase todos os médicos são tarefeiros. Hospitais da região de Lisboa, como o Beatriz Ângelo em Loures, também seguem esta tendência.

A dirigente sindical também alerta para o impacto desta prática nos grandes hospitais, como o São João no Porto, onde as urgências são frequentemente asseguradas por tarefeiros. “Estes profissionais chegam a receber até 70 euros por hora em períodos de maior afluência”, revela Bordalo e Sá.

O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Nuno Rodrigues, confirma que esta realidade se verifica em várias unidades, incluindo os hospitais de Santarém, Setúbal e Torres Vedras. Já Helena Terleira, do Movimento de Médicos em Luta, denuncia a extensão deste problema a hospitais como os de Chaves, Guarda, Vila Franca de Xira e Setúbal.

Governo promete medidas, mas sindicatos exigem soluções de fundo
A Direção Executiva do SNS reconhece a gravidade da situação e promete recorrer a todos os meios para assegurar o funcionamento das urgências. António Gandra d’Almeida, diretor executivo do SNS, afirma que “a principal preocupação do Governo é manter os serviços de urgência a funcionar, preferencialmente com profissionais dos quadros”. No entanto, quando tal não for possível, garante que será feito “tudo o que for necessário” para preencher as escalas e garantir a resposta aos utentes.

Apesar das garantias do Governo, tanto a FNAM como a APAH consideram que a solução passa por reforçar a capacidade de contratação e fixação de médicos no SNS. “O problema do SNS não se resolve apenas com a contratação de tarefeiros”, argumenta Xavier Barreto. Para o presidente da APAH, é crucial tornar o SNS mais competitivo, nomeadamente através do aumento dos salários base e de um eventual regime de exclusividade para os médicos.

Joana Bordalo e Sá também critica o novo modelo de pagamento das horas extraordinárias, aprovado em julho, argumentando que a medida não está a produzir os efeitos desejados. “Este verão foi marcado por um número recorde de encerramentos de serviços de urgência. O problema do SNS não se resolve através das urgências, mas sim com medidas estruturais de médio e longo prazo”, conclui.

O bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, reforça esta visão, defendendo que o recurso a tarefeiros deve ser apenas uma solução transitória, enquanto se implementam “medidas de fundo” para garantir o recrutamento e a fixação de médicos no SNS.

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