Associações de doentes querem que faltas ao trabalho por enxaquecas e cefaleias sejam justificadas e fazem recomendações ao Governo

Os médicos de medicina do trabalho em Portugal podem vir a desempenhar um papel crucial no diagnóstico e gestão de enxaquecas e outras cefaleias, se forem acolhidas as novas recomendações da Sociedade Portuguesa de Cefaleias e da associação de doentes Migra Portugal. As sugestões, que incluem a avaliação obrigatória dos casos e a possibilidade de justificarem as faltas dos trabalhadores durante crises, serão apresentadas ao Governo no dia 19 de setembro.

Atualmente, cerca de dois milhões de portugueses sofrem de enxaquecas, uma condição que ainda não é reconhecida com a devida importância pelo sistema de saúde, segundo especialistas. As recomendações visam não apenas melhorar a resposta clínica, mas também minimizar o impacto desta patologia no local de trabalho. A neurologista Raquel Gil-Gouveia, responsável pelas diretrizes, defende em entrevista ao Jornal de Notícias (JN) que os médicos de medicina do trabalho possam tratar casos simples de cefaleias e referenciar os mais complexos para cuidados especializados.

De acordo com as recomendações, a enxaqueca, apesar de não ser considerada uma doença profissional, tem um efeito negativo significativo no desempenho laboral. Estudos recentes, realizados em grandes empresas portuguesas, apontam para perdas de produtividade superiores a mil milhões de euros por ano devido ao absentismo e ao presenteísmo – a presença física no trabalho, mas com uma produtividade reduzida a menos de 50%.

Para combater este problema, os especialistas defendem que as empresas devem ser envolvidas de forma mais ativa. Uma das propostas é a introdução de legislação específica que obrigue os médicos do trabalho a identificar trabalhadores com enxaquecas ou cefaleias e a avaliar de que forma as condições laborais podem agravar estas patologias.

As recomendações também pedem que seja dada competência a estes médicos para sugerir adaptações nos postos de trabalho, flexibilizar horários e justificar faltas. Segundo Gil-Gouveia, “não exige um investimento muito significativo, é melhorar a gestão, e no fim do dia poupamos dinheiro. Temos de ser inteligentes a gerir os recursos”.

Outro ponto destacado nas recomendações é a necessidade de os farmacêuticos serem mais interventivos. Estes profissionais deveriam poder referenciar os doentes com cefaleias para os cuidados hospitalares, com base em critérios de urgência, ou para os cuidados primários, no caso de situações menos graves. Tal medida ajudaria a descongestionar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a melhorar o encaminhamento dos pacientes para o tratamento adequado.

Atualmente, o SNS oferece consultas de cefaleias em 18 hospitais, mas a resposta tem sido considerada insuficiente. A Migra Portugal alerta que, apesar de existirem serviços de encaminhamento através dos médicos de família, a oferta não consegue atender às necessidades de todos os doentes. Muitos acabam por recorrer ao setor privado, onde existem mais de 35 prestadores com consultas especializadas nesta área.

Uma das lacunas identificadas é o difícil acesso a medicamentos inovadores para o tratamento das cefaleias, sobretudo no SNS. Embora existam centros especializados fora do sistema público, os doentes que são seguidos nesses centros não têm, atualmente, acesso facilitado a estas terapias mais avançadas. Os especialistas defendem que, à semelhança do que já acontece em áreas como a reumatologia e a dermatologia, os doentes com cefaleias crónicas deveriam poder beneficiar destes fármacos, independentemente de serem acompanhados pelo setor público ou privado.

Para além de melhorias no sistema de saúde e nas empresas, os especialistas defendem que é essencial apostar na literacia em saúde no que diz respeito às cefaleias. Incluir a enxaqueca no Plano de Ação para a Literacia em Saúde é visto como um passo importante para aumentar a consciencialização sobre esta patologia e diminuir a discriminação social associada.

A educação sobre a necessidade de alterações no estilo de vida também é destacada. Um melhor entendimento sobre os fatores desencadeantes das cefaleias e como evitá-los pode melhorar a adesão aos tratamentos e evitar o desperdício de recursos. Segundo Gil-Gouveia, a abordagem ao tratamento da enxaqueca precisa de ser multifacetada, englobando educação, adaptação laboral e acesso a terapias inovadoras.

No contexto do Dia Europeu da Ação contra a Enxaqueca, que se assinala a 12 de setembro, estas recomendações surgem como parte de um esforço maior para dar prioridade a uma doença que, segundo os especialistas, é “ainda muito desvalorizada”. A criação de um Programa Nacional para as Cefaleias é uma das principais reivindicações, com o objetivo de organizar o sistema de saúde e otimizar os recursos já existentes, sem exigir grandes investimentos financeiros.