Esta misteriosa pandemia nos anos 70 terá tido origem na libertação acidental de um vírus
Em fevereiro de 1976, o soldado norte-americano David Lewis, de 19 anos, colapsou e morreu durante uma caminhada com a sua unidade militar em Fort Dix, Nova Jérsia. Um exame de autópsia revelou algo inesperado: o soldado tinha sido infetado com um vírus de gripe suína H1N1. Este acontecimento alarmou a comunidade científica, desencadeando uma série de ações por parte do governo dos Estados Unidos e lançando o mundo num estado de alerta em relação à possibilidade de uma nova pandemia.
O caso de Fort Dix levou à descoberta de 13 novos casos de infeção entre recrutas hospitalizados com doenças respiratórias. Testes adicionais mostraram que mais de 200 recrutas tinham sido infetados pelo novo vírus H1N1, embora sem necessidade de hospitalização. O medo imediato era de que esta nova variante do vírus pudesse desencadear uma pandemia global semelhante à gripe de 1918, que causou a morte de aproximadamente 50 milhões de pessoas em todo o mundo.
Com a possibilidade de uma catástrofe iminente, o governo dos EUA, sob a presidência de Gerald Ford, agiu rapidamente. Em março de 1976, Ford anunciou um plano ambicioso: “inocular todos os homens, mulheres e crianças nos Estados Unidos” contra a gripe suína H1N1. A campanha de vacinação em massa começou em outubro daquele ano, mas, entretanto, a ameaça inicial parecia ter desaparecido. Em Fort Dix, não foram relatados mais casos de gripe H1N1 após fevereiro, e o surto limitou-se ao quartel. Segundo o Coronel Frank Top, que liderou a investigação, o vírus “não foi além de Fort Dix… desapareceu”.
Apesar do fim abrupto do surto em Fort Dix, a comunidade científica internacional continuou a investir em investigações e desenvolvimento de vacinas contra a gripe suína H1N1, preparando-se para um possível reaparecimento da ameaça no inverno de 1976-77. No entanto, o mundo aguardou uma pandemia que nunca se concretizou.
O surgimento inesperado de um novo vírus
Embora a pandemia de H1N1 suína nunca tenha ocorrido, em novembro de 1977, um novo vírus de gripe foi identificado em Moscovo. Era uma estirpe de gripe H1N1, mas curiosamente, não era de origem suína, e sim humana. Rapidamente, este vírus espalhou-se pela União Soviética e, em pouco tempo, pelo resto do mundo.
Este novo surto de gripe, mais tarde conhecido como a pandemia da “gripe russa”, foi peculiar. Em primeiro lugar, a taxa de mortalidade era significativamente mais baixa do que outras variantes da gripe, cerca de um terço das estirpes comuns. Além disso, o vírus parecia afetar apenas indivíduos com menos de 26 anos. Os cientistas perceberam que as gerações mais velhas já tinham imunidade, pois este vírus era idêntico a uma estirpe que tinha circulado até aos anos 1950.
A nova gripe não substituiu o vírus da gripe sazonal H3N2, como normalmente acontece com estirpes pandémicas. Em vez disso, ambas as variantes coexistiram, uma anomalia no comportamento dos vírus da gripe.
O mistério do vírus ressuscitado
Um dos aspetos mais intrigantes da gripe russa foi o facto de ser geneticamente idêntica a estirpes que haviam desaparecido cerca de 25 anos antes. O microbiologista Peter Palese, utilizando uma técnica inovadora de mapeamento do RNA viral, descobriu que o vírus de 1977 era quase uma cópia perfeita das estirpes da década de 1950. A grande questão que surgiu foi: como é que este vírus, supostamente extinto, reapareceu subitamente?
Relatórios subsequentes sugeriram que o primeiro surto ocorreu na cidade portuária de Tientsin, na China, em meados de 1976, vários meses antes do que os casos registados em Moscovo. Estudos genéticos realizados em 2010 indicaram que o vírus tinha um “ancestral comum” datado de abril ou maio de 1976, apontando para a reemergência do vírus nessa altura.
A teoria mais amplamente aceite entre virologistas é que este ressurgimento foi resultado de um acidente laboratorial. O medo de uma nova pandemia de gripe H1N1 suína, desencadeado pelos eventos em Fort Dix, levou a uma intensificação da pesquisa em vários países, incluindo a China. Estirpes antigas de H1N1 estavam armazenadas em laboratórios, e um erro, possivelmente durante um ensaio de vacina, pode ter permitido a reentrada do vírus no ciclo de infeções humanas.
Segundo Palese, conversas com especialistas chineses da época indicam que o surto pode ter resultado de testes com recrutas militares. Se o vírus utilizado nesses ensaios não tivesse sido adequadamente atenuado, poderia ter-se tornado transmissível de pessoa para pessoa, o que acabou por acontecer.
As lições de 1977
A reemergência do H1N1 em 1977 ensina uma lição valiosa sobre os riscos associados à resposta a ameaças pandémicas. O esforço global para prevenir uma pandemia de gripe suína inadvertidamente provocou o retorno de um vírus extinto. O que parecia uma resposta prudente tornou-se num exemplo de uma “profecia autorrealizável”, onde as ações tomadas para evitar uma crise acabaram por causar outra.
Embora as normas de segurança em laboratórios de contenção de alta segurança tenham melhorado significativamente desde os anos 1970, a proliferação desses laboratórios ao redor do mundo aumenta o risco de futuros acidentes. A história de 1977 recorda-nos que, enquanto é crucial reagir rapidamente a novas ameaças virais, devemos também ser cautelosos e evitar decisões precipitadas que possam ter consequências não intencionais.
Com o mundo ainda a recuperar da pandemia de COVID-19 e novas ameaças como a gripe aviária e o vírus mpox a surgir, é essencial encontrar um equilíbrio entre a rapidez de resposta e a precaução. A história sugere que agir depressa demais pode, por vezes, piorar a situação.