1,675 milhões: Número de utentes sem médico de família em Portugal atinge recorde desde 2014, devido a atrasos nos concursos
Em agosto, o número de cidadãos sem médico de família em Portugal atingiu o seu ponto mais baixo desde 2014, com 1,675 milhões de pessoas sem acesso a um clínico assistente nos centros de saúde. Esta situação é particularmente grave na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde cerca de 30% da população se encontra sem médico de família, um problema que se tem agravado desde fevereiro deste ano.
O Governo apresentou, em maio, um plano de emergência que incluía um capítulo dedicado aos cuidados de proximidade, essenciais no Serviço Nacional de Saúde (SNS). No entanto, o número de cidadãos com médico de família atribuído tem vindo a diminuir progressivamente, atingindo em agosto o valor mais baixo da última década. De acordo com os dados da base de dados “Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários”, os 5327 médicos de família disponíveis cobriam 8,739 milhões de utentes no mês passado.
A principal razão apontada para este agravamento , segundo avança o Público, é o atraso nos concursos para a contratação de novos médicos de família, que sofreram mudanças devido à reestruturação do modelo de recrutamento no SNS. Este ano, o Governo decidiu transferir a autonomia para o recrutamento para as 39 Unidades Locais de Saúde (ULS) do país, em vez de realizar concursos centralizados a nível nacional, como era a prática anterior. Esta mudança resultou em atrasos significativos na colocação de cerca de 400 novos médicos que concluíram a sua formação em 2023, agravando assim a falta de clínicos nos centros de saúde.
Os números revelam que, em agosto, a situação era crítica, com o menor número de cidadãos com médico de família desde 2014. Nesse ano, o país registava uma cobertura ligeiramente superior, com 8,744 milhões de utentes com médico de família atribuído. Os atrasos nos concursos não só aumentaram o número de pessoas sem médico de família, como também levaram à perda de alguns jovens médicos que optaram por sair do SNS e aceitar propostas do setor privado ou do estrangeiro.
Líderes de associações e sindicatos médicos alertaram, desde junho, que os atrasos nos concursos poderiam resultar na saída de mais médicos do SNS, uma vez que estes profissionais continuam a receber como internos, apesar de já serem especialistas. Esta situação torna-se ainda mais grave com a falta de médicos em regiões como Lisboa e Vale do Tejo e Algarve, onde as carências são notórias.
Apesar dos esforços do Governo para implementar um plano de emergência que visa aumentar o acesso dos cidadãos à saúde, as mudanças no processo de recrutamento dos médicos de família têm gerado críticas. João Rodrigues, ex-coordenador do grupo de trabalho responsável pela reforma dos cuidados de saúde primários em 2019, criticou duramente o atraso nos concursos, afirmando que “cumprir a lei deveria ser a verdadeira emergência”. Segundo ele, bastaria que o concurso tivesse sido concluído rapidamente para evitar a situação atual.
André Biscaia, presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, também expressou a sua perplexidade perante a alteração do modelo de recrutamento, sublinhando que “nunca houve um atraso tão grande” e que a situação está a ser “um descalabro”. Para ele, é incompreensível que, apesar da urgência do plano de emergência, o processo tenha sido tão moroso, especialmente quando comparado com os anos anteriores, em que os médicos estavam colocados em julho.
A situação tem levado alguns médicos a abandonar o SNS, como foi o caso de Beatriz Borges, que, após concluir o internato na especialidade de medicina geral e familiar, decidiu rescindir o contrato com a ULS de Fátima e aceitar uma proposta do setor privado. Beatriz explicou que o atraso nos concursos e a incerteza quanto ao futuro a levaram a tomar esta decisão. “Este concurso não tem lógica nenhuma. É um processo que se arrasta há meses quando, no ano passado, ficou concluído em semanas”, criticou.
Outro exemplo é Inês Dias, uma recém-especialista que também optou pelo setor privado, onde encontrou condições de trabalho mais atrativas, como maior flexibilidade de horário e menor burocracia. Inês admitiu que, apesar das ofertas para trabalhar no estrangeiro, decidiu permanecer em Portugal por enquanto, mas sublinhou que as condições no SNS teriam de melhorar significativamente para considerar um regresso.
Em conclusão, a situação atual nos cuidados de saúde primários em Portugal é preocupante, com um número crescente de cidadãos sem médico de família e atrasos significativos na contratação de novos clínicos. As alterações no modelo de recrutamento e os consequentes atrasos nos concursos têm contribuído para o agravamento da crise, levando à saída de médicos do SNS e colocando em risco a prestação de cuidados de saúde primários à população.