“Os infoexcluídos deixarão de ter acesso aos bens se de todo se eliminar o numerário como meio de pagamento”, diz o Mandatário da Associação Denária
Numa era marcada por uma revolução tecnológica que se alarga ao setor financeiro por meio de alternativas digitais ao pagamento, muitos defendem o numerário como garante do acesso democrático a pagamentos.
A Denária Portugal é uma associação que em si congrega o interesse da Sociedade Civil em prol da utilização do numerário como meio de pagamento corrente, independente, seguro, universalmente aceite e com o timbre de moeda oficial, com curso legal. Ou seja, procura valorizar o numerário como o único meio de pagamento não privado, seguro, sustentável e inclusivo, sinal de integração de toda a população.
A Executive Digest falou com o Mandatário da Associação Denária, o Professor Mário Frota, para perceber a importância de preservar o uso do numerário como meio de pagamento, as questões da inclusão financeira e ainda o surgimento do Euro Digital.
Por que é importante preservar o uso do numerário como meio de pagamento? Quais são os benefícios que ele oferece, especialmente para grupos vulneráveis?
Desde logo, porque o numerário é o valor de refúgio, é a “ultima ratio”: quando todos os outros meios claudicam, o dinheiro vivo subsiste e garante o acesso aos bens essenciais. Em caso de disrupção dos sistemas de pagamento, como em situações de catástrofe, de ciberataques, de disfunções de qualquer outra natureza, só o numerário mantém as suas virtualidades e oferece soluções que se compaginam com as utilidades que nele se entreveem.
Como se diz algures, “o numerário é a única coisa que funciona quando tudo deixa de funcionar”!
As notas e moedas com curso legal constituem relevante ‘símbolo’ da soberania e elemento inalienável da segurança nacional.
Além do mais, os infoexcluídos (e é exponencial o seu número entre nós, como se não ignora) deixarão de ter acesso aos bens se de todo se eliminar o numerário como meio de pagamento.
O numerário é o único meio de pagamento universal, público e gratuito: o dinheiro com curso legal está isento de taxas, comissões e mais encargos na óptica do consumidor.
E é um relevante vetor de contenção, de autodisciplina em matéria de gastos: constitui um freio ao endividamento excessivo (sobre-endividamento).
“Só o dinheiro físico é suscetível de propiciar a “dor de pagar”, inibindo a compra de bens de que se não precisa como o dinheiro que se não tem”!
É, ademais, um fator de inclusão: o digital exclui, erradica, o numerário inclui, integra, assimila.
Afora outras considerações, é o meio mais seguro: só em fraudes, em 2023, segundo a Europol, os meios digitais levaram um rombo de 1 530 000 000 € (mil quinhentos e trinta milhões de euros). E as fraudes prosseguem em crescendo, com um aumento de 60% , o ano transato, em Portugal.
E é o meio que permite a liberdade de escolha, direito com foros de cidade, reconhecido aos consumidores na Carta Europeia de Direitos Fundamentais e na Constituição da República.
Como é que o uso do numerário contribui para a inclusão financeira, especialmente para grupos como idosos e pessoas com deficiência?
O dinheiro digital exclui naturalmente. É algo de evidente. Que não carece, pois, de demonstração.
O numerário é fator de inclusão: todos a ele têm acesso, em maior ou menor medida, em escalas distintas, é facto, mas um acesso efetivo através dos meios disponíveis e ao seu alcance.
Certo que um dos vetores da democracia – o da democracia económica – está longe de se atingir (e prova disso é a mole imensa esmagada entre os limiares da miséria e da pobreza) e as discriminações são patentes: mas o numerário permite que pobres e riscos acedam, ao menos, em condições de igualdade de oportunidades, aos bens essenciais, os que são fator de subsistência de todos e cada um.
O numerário é ainda um fator preponderante no comércio de proximidade e nos negócios familiares.
Se os cidadãos forem privados do acesso aos bens através de notas e moedas com curso legal, serão naturalmente excluídos dos distintos segmentos do mercado e nada fará com que se superem os fossos e obstáculos que se lhes anteparem.
Como é que a associação avalia a tendência de alguns estabelecimentos em rejeitar pagamentos em numerário?
Trata-se, desde logo de um crime de lesa-cidadania, no plano retórico, porque é de um direito de cidade que se trata e inere à condição dos cidadãos que todos somos.
No plano legal, uma afronta ao sistema de pagamento universal, instituído com carácter de obrigatoriedade, como resulta do Regulamento Europeu de 1998 que introduz o euro e, por conseguinte, uma violação de normas de carácter imperativo (como se realça nas Recomendações da Comissão Europeia de 2010 e nas diretrizes do Banco Central Europeu). E que o Banco de Portugal subscreve, por inteiro, como não poderia deixar de ser.
No plano da tutela dos consumidores, com assento constitucional, a violação de direitos de valor reforçado, de direitos fundamentais, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais.
Como é que a associação vê a possível introdução do Euro Digital? Quais são as preocupações e oportunidades associadas a essa iniciativa?
Conquanto o processo se ache ainda em fase de “experimentação”, não se descortinam de momento nem as vantagens nem as desvantagens que a sua introdução possa eventualmente acarretar.
Não se ignore: o euro digital não substituirá o euro físico, a moeda com curso legal, a crer nos textos em preparação.
Na proposta de regulamento, cuja discussão se retomará no Parlamento europeu recém-eleito e perante a nova Comissão, surge como um mero complemento do euro físico. Ponto é que não haja, depois, eventuais subversões ao modelo, já que muitos reconhecem e insistem na tónica da obsolescência do papel-moeda como meio de pagamento.
Será a única solução de pagamento digital em euros com aceitação universal em toda a área do euro.
Será um meio de pagamento digital com as vantagens do numerário, permitindo realizar pagamentos em “moeda de banco central” quando o numerário não for opção (por exemplo, no comércio eletrónico e nos pagamentos remotos ‘pessoa’ a ‘pessoa’), com elevado nível de privacidade, utilização gratuita para serviços básicos e disponibilidade offline.
No que tange às desvantagens, perspetivam-se a:
- Dependência da tecnologia: se ocorrerem quaisquer quebras ou interrupções no sistema, a disrupção prejudicará os consumidores, deixá-los-á à míngua de recursos para as necessidades correntes.
- Exclusão financeira com forte pendor discriminatório: os cidadãos, em particular os que hipótese nenhuma de acesso têm a dispositivos móveis ou a serviços bancários, ficarão de todo excluídos do uso do euro digital.
Como veem o futuro do uso do numerário? Quais as tendências esperadas e os passos necessários para garantir a sua continuidade como meio de pagamento universal?
“Todo o poder corrompe: o poder absoluto corrompe absolutamente.”
A absolutização do dinheiro digital tenderá a rarefazer os espaços de liberdade, de liberdade de circulação, de liberdade de disposição, de liberdade de escolha. Fulminará o direito de opção e deixará o cidadão à mercê do controlo absoluto das entidades financeiras e do poder do Estado que nos seguirá por toda a parte e supervisionará os gastos mais elementares, em situação sufocante, como jamais uma qualquer outra tirania jamais ousara mesmo nas noites mais negras da História.
O futuro do numerário parece ameaçado, com efeito, ante os ímpetos absolutistas como se tende a encarar o assalto do denominado dinheiro digital a todos os segmentos do mercado e círculos de consumidores.
O quadro actual, entre nós, a dar de barato os dados ora revelados pelo Banco de Portugal, ainda são de fundada esperança de que o fenómeno se não esvaneça:
- Numerário – + de 52% ainda em circulação
- Cartões de débito – 38%
- Cartões de crédito – + de 2%
No entanto, ações se perspetivam como de execução imediata em ordem à consecução de um sem número de objetivos, a saber:
. Garantia de acesso em cada uma das freguesias a ATM’s (a pontos de dinheiro que tornem fácil o acesso ao papel-moeda) em concertação com as autarquias de proximidade, as freguesias;
. Ações de formação e sensibilização no seio dos lares de terceira idade e das instituições de solidariedade social e bem assim em meio escolar;
. Ações pedagógicas no quadro da educação financeira em curso no País;
. Análogas ações em Universidades Seniores esparsas pelo País;
. Celebração de convénios de cooperação com as associações de interesse económico que relevem do comércio local para a consecução de tais objetivos;
. Afixação nos estabelecimentos comerciais de autocolantes com referência a que neles se aceita o dinheiro com curso legal sem outras restrições que não sejam as legais;
. Ações em pleno tecido empresarial para dissuadir os estabelecimentos a não recusar o dinheiro físico, enquanto instrumentos pedagógicos, de todo preferíveis a atuações repressivas que terão por intérpretes as entidades oficiais.
Como se proclama em determinados círculos, “os rumores da morte do numerário são naturalmente exagerados”.
Que a asserção se mostre patente no dia-a-dia em prol da liberdade de acesso aos meios de pagamento a bel talante dos consumidores e segundo os seus interesses.