UE está a financiar despejo de migrantes no deserto do Saara, revela investigação jornalística

Estes fundos, destinados a travar a chegada de deslocados à Europa, são utilizados para transferir migrantes para locais não seguros, uma prática que afeta sobretudo pessoas negras, vetando-lhes o acesso ao continente europeu.

Pedro Gonçalves
Maio 21, 2024
17:15

Países como Marrocos, Tunísia e Mauritânia estão a usar fundos da União Europeia para deter migrantes e deixá-los no deserto, apurou uma investigação conduzida pelo jornal El País, em colaboração com a organização Lighthouse Reports e outros meios de comunicação internacionais. Estes fundos, destinados a travar a chegada de deslocados à Europa, são utilizados para transferir migrantes para locais não seguros, uma prática que afeta sobretudo pessoas negras, vetando-lhes o acesso ao continente europeu.

A revelação, considerada escandalosa, ocorre a menos de um mês das eleições europeias, marcadas para 9 de junho, quando se exaltam os valores dos Vinte e Sete. Os países africanos, apurou a investigação, têm deslocado migrantes para áreas remotas e perigosas, uma prática descrita como desumana e questionada por especialistas em direitos humanos.

A União Europeia tem financiado estas operações, mas defende-se afirmando que não apoia a deportação de migrantes. No entanto, as provas recolhidas indicam o contrário. Desde 2015, a UE tem assinado acordos com vários países africanos, todos criticados pela falta de respeito aos direitos fundamentais.

A investigação, que levou um ano de trabalho jornalístico, revela que estas práticas são amplamente conhecidas em Bruxelas e são executadas com a ajuda da UE. Foram entrevistados sobreviventes e fontes policiais que confirmam a violação de convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos.

Entre os casos documentados, destaca-se a história de Timothy Hucks, um professor de inglês em Rabat, Marrocos, que em março de 2019 foi detido e desterrado para uma cidade a mais de 300 quilómetros da capital, após sair de casa para comprar vinho. “Acabou detido e desterrado a uma cidade a mais de 300 quilómetros de Rabat”, relata-se sobre Hucks, que se viu cercado por dezenas de outros detidos, todos com uma característica em comum: eram negros.

Idiatou e Bella, duas migrantes, contam como rogaram às forças de segurança mauritanas para não serem abandonadas numa terra de ninguém, sem telefone e sem dinheiro. “Acabaram abandonadas descalças num posto fronteiriço entre a Mauritânia e o Mali, numa zona onde atuam grupos jihadistas”, revelou a investigação.

François, um músico camaronês com um filho de seis anos a seu cargo, sofreu alucinações depois de ser deixado num deserto na Tunísia durante nove dias. “Era a primeira, mas não a última vez que me deixariam na metade do nada”, contou François.

A comissária de Interior da UE, Ylva Johansson, mostrou preocupação com estas práticas, mas sublinhou que “o dinheiro europeu não está a financiar a deportação de migrantes”. A investigação, no entanto, demonstrou que estas operações são conhecidas em Bruxelas e realizadas com o financiamento e apoio logístico da UE.

A Comissão Europeia admite dificuldades em garantir que os fundos não sejam utilizados para violar os direitos humanos. Dois altos funcionários europeus reconheceram em privado que é “impossível” controlar completamente os usos do financiamento.

As práticas contra a imigração irregular de Marrocos, Tunísia e Mauritânia são bem documentadas e remontam a 2003 em Marrocos, mas têm-se sistematizado ao longo dos anos. “O critério [para expulsões] é que sejam cidades isoladas, fora dos grandes núcleos de população, e o negro subsaariano é um alvo perfeito”, explicou uma fonte policial espanhola com experiência em África.

Em 2019, a Comissão Europeia alertava para uma “campanha” contra “refugiados subsaarianos e solicitantes de asilo” no mesmo relatório que justificava os fundos a Marrocos. Gil Arias, ex-diretor executivo adjunto da Frontex entre 2006 e 2016, afirmou que “isto [as detenções e os traslados forçados] sempre foi feito”.

O Ministério do Interior marroquino nega violações de direitos humanos, mas admite os “deslocamentos forçados”, alegando que a legislação nacional prevê a “relocalização dos migrantes em outras cidades” para afastá-los das redes de traficantes e de zonas perigosas. “Os desterros são, segundo Marrocos, uma forma de dar aos migrantes ‘maior proteção e respeito à sua dignidade'”, disse um porta-voz marroquino.

As práticas marroquinas são conhecidas em Bruxelas, e documentos confidenciais a que o El País teve acesso mostram que a Frontex e a ONU estão cientes destas práticas.

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