Presidenciais na Rússia: especialistas explicam a necessidade de ‘entronizar’ Putin e porque o Ocidente deve ter receio
A Rússia realiza hoje o último de três dias de eleições presidenciais, nas quais é esperada a recondução de Vladimir Putin para um quinto mandato presidencial até 2030, face à ausência de oposição independente, controlo de informação e o espetro da manipulação.
A mais do que provável vitória de Vladimir Putin ‘esconde’ uma pergunta: qual a necessidade de fazer um ato eleitoral fortemente condicionado e cujo resultado é conhecido ainda antes de ter começado?
Por isso, perguntámos a Ana Evans, professora de Filosofia, Política e Economia na Faculdade de Ciências Humanas, da Universidade Católica Portuguesa, e a Susana Rogeiro Nina, professora no departamento de Ciência Política, Relações Internacionais e Estudos Europeus da Universidade Lusófona, qual o significado deste desejo do Kremlin em ‘entronizar’ Vladimir Putin.
“Eleições são instrumentos de continuidade no poder”
Ana Evans, docente na Universidade Católica, indicou que estas “eleições são como propaganda institucional coreografada, isto é, a utilização de um mecanismo aparentemente legitimador para fortalecer a ordem política e, na aparência, mobilizar apoio popular para o esforço de guerra”, começou por explicar à ‘Executive Digest’.
Mas que sentido tem esta legitimização de Putin, face aos 24 anos que já leva ao comando da Rússia?
“As eleições são um instrumento de continuidade no poder, no contexto de uma guerra que perdura, gerando muitas baixas e questionada em silêncio, uma vez que os opositores ao regime são sistematicamente eliminados”, frisou a especialista.
“O processo eleitoral constitui uma organização formal de indicadores de legitimidade e permite inspecionar a participação a nível local e regional, detetando focos de oposição. É também um mecanismo institucional para agraciar indivíduos que demonstram lealdade ao regime, através da promoção pós-eleição de fiéis a posições de controlo administrativo e político. Por sua vez, a vitória eleitoral transmite um sinal de força e domínio perante oponentes e elites a nível doméstico, assim como aliados e rivais no foro internacional.”
O triunfo de Putin é incontestável, com uma oposição que foi consistentemente eliminada. O que isso poderá significar para o presidente russo? Maior ousadia e ambição nas suas intenções imperialistas?
“Nos seus discursos de campanha eleitoral, Putin continua a repetir a promessa de expansão como garantia de segurança da Rússia e revivalismo da ideação imperial. É uma narrativa de continuidade e de demonstração de apoio nacional às decisões bélicas do ‘apparatus’ central. Todavia, os sinais transmitidos pela realidade no terreno – i.e. o esforço e limitações da intervenção russa na Ucrânia, que se prolonga sem um desfecho de vitória à vista – sugerem que a ousadia imperialista permanecerá direcionada ao território ucraniano, apesar da ambição dilatada que Putin revela publicamente”, indicou.
E deve o Ocidente recear este novo impulso eleitoral – e aclamação – de Putin?
“A validação coreografada da obediência interna à ambição expansionista do regime russo reforça a urgência de uma estratégia clara e impositiva de segurança e defesa na União Europeia e o cumprimento das obrigações em despesa militar pelos países membros da NATO, asseverando a capacidade e vontade transatlântica de dissuadir qualquer ameaça – credível ou não – de intervenção russa no continente europeu. Para quem estuda os mecanismos de guerra e paz ao longo da história, não há outra alternativa”, concluiu.
“É necessário dar uma aura de credibilidade, de que é um país defensor da liberdade e dos valores democráticos”
Susana Rogeiro Nina, professora no departamento de Ciência Política, Relações Internacionais e Estudos Europeus da Universidade Lusófona, indicou que “há eleições em regimes que são em termos democráticos uma fachada, ou são aquilo que em ciência política dizemos ser uma democracia musculada, com traços de alguma autoritarismo, mesmo que à partida o resultado seja conhecido”.
Porquê? “São necessárias por dois ou três motivos. Primeiro, tendo em conta o contexto da Rússia, é necessário para fora, independentemente das críticas de não serem eleições verdadeiramente livres. É necessário dar uma aura de credibilidade, de que é um país defensor da liberdade e dos valores democráticos. Mas também a nível interno: uma coisa é vermos um regime autoritário sem qualquer eleições, outra coisa é vermos eleições altamente condicionadas, sim, mas que a população sente que é a democracia a funcionar”.
As eleições na Rússia podem ser vistas como um sinal de fraqueza? Afinal, a sociedade está controlada e as críticas externas a Rússia já disse não se importar. Portanto, para quem é a mensagem destas eleições?
“É capaz de ser muito forte, não vejo como uma fraqueza. Não é atípico neste tipo de regimes haver eleições periódicas. É um tentar afastar a ideia de ser um regime autocrático. Para fazer o paralelismo: no Estado Novo tivemos a ditadura mas havia eleições, embora estivesse tudo controlado. As eleições são importantes para afastar a sombra de uma ditadura.”
Os resultados são mais ou menos conhecidos, a vitória de Putin não se coloca em causa. Esta nova legitimação, em termos do Ocidente, deve-nos fazer recear?
“Eventualmente, sim. Para o status quo da Rússia, são um momento de afirmação para o Ocidente. A população legitima este presidente e as suas ações, independentemente do esforço de guerra, da quantidade de mortes. Não são eleições na verdadeira aceção da palavra.
Como é o que o Ocidente vai reagir? É óbvio que um presidente que sai de uma eleição com uma esmagadora maioria dos votos, pode argumentar que tem o apoio do povo e, por inerência, o apoio das suas ações. E dizer, como é óbvio, que está a defender os interesses da Rússia.”
Há exemplos deste género de eleições na União Europeia?
“Não. Há situações na UE de países que estão a ter desvios para traços menos democráticos, como é o caso da Hungria, em que Orbán tem feito alterações à Constituição para controlar órgãos de comunicação social, a existência de outros partidos políticos. Tem feito um desvio para traços mais autoritários. Contudo, é um salto enorme o paralelismo entre o que se passa na Rússia como o caso húngaro ou mesmo na Polónia. Não estamos nesse ponto, a esse nível a UE não iria permitir que as coisas acontecessem como na Rússia.”
Cerca de 112,3 milhões de eleitores são chamados às urnas para ‘aclamar’ Putin
Segundo a Comissão Eleitoral Central, 112,3 milhões de eleitores são chamados a votar na Rússia e também nas regiões ocupadas na Ucrânia e na península ucraniana da Crimeia anexada, a que se somam 1,9 milhões no estrangeiro.
Esta é a primeira vez que as presidenciais russas se desenrolam em três dias, o que tem sido observado pelos analistas como um instrumento potencial de manipulação eleitoral, adicionando-se também a estreia da possibilidade de votação ‘online’ em 29 regiões e o aumento do risco de um controlo mais apertado através dos serviços de informações (FSB).
As eleições são vistas como uma mera formalidade com um vencedor antecipado, tendo sido autorizadas apenas candidaturas classificadas como amigáveis em relação ao Kremlin (presidência): Nikolai Kharitonov, do Partido Comunista, Leonid Slutsky, do nacionalista Partido Liberal Democrata, e Vladislav Davankov, do Novo Partido Popular.
Em 16 de fevereiro último, o mais conhecido líder da oposição russa, Alexei Navalny, cuja tentativa de concorrer contra Putin em 2018 foi rejeitada, morreu repentinamente na prisão em circunstâncias pouco claras enquanto cumpria uma pena de 19 anos por acusações de extremismo.
Menos de uma semana depois, o Supremo Tribunal da Rússia rejeitou um recurso do opositor Boris Nadezhdin, que se manifesta abertamente contra a guerra na Ucrânia, após a deliberação da Comissão Eleitoral Central que recusou a sua candidatura por irregularidades processuais.
A própria candidatura de Putin está envolta numa teia de suspeição, após o presidente russo ter sido acusado de violação da lei, ao avançar com a reforma constitucional para abrir caminho à sua reeleição por mais seis anos.
Em 2018, Putin venceu na primeira volta com 77,7% dos votos, deixando a larga distância os outros candidatos, num ato eleitoral que teve uma participação registada de 67,54%, embora observadores e eleitores individuais tenham relatado violações generalizadas, incluindo enchimento de urnas e votações forçadas.
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