Entrevista Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada: «As personagens de “Uma Aventura na Cidade” foram alunos nossos»
Quem tem hoje 50 anos viu nascer a coleção de livros infanto-juvenis com maior longevidade da literatura portuguesa. Ana Maria Magalhães, com 72 anos, e Isabel Alçada, com 68, deram ao mundo a coleção “Uma Aventura”, que já atravessa gerações.
Mas a obra destas autoras é muito mais extensa e já chega aos 120 livros. Num regresso ao passado, as duas conversaram com a Forever Young sobre «uma vida de trabalho em conjunto», o nascimento da coleção “Uma Aventura”, a vida nas escolas dos anos 80 e alguns momentos marcantes das suas vidas.
Como começaram a trabalhar juntas?
Isabel Alçada (IA) Conhecemo-nos quando fomos dar aulas para a Escola Básica Fernando Pessoa, em Lisboa. Começámos a trabalhar juntas, porque não só estávamos na mesma escola, como ainda tínhamos as mesmas turmas. Na altura estávamos a fazer o estágio para professoras de Português e História.
Ana Maria Magalhães (AMM) Vivíamos no mesmo bairro em Lisboa, o que dava jeito para nos encontrarmos e prepararmos as aulas e as reuniões. Estávamos em 1976 e havia crianças nas escolas que nunca tinham lido um livro inteiro. Decidimos, por isso, começar a escrever pequenas histórias que distribuímos nas aulas para estimular os alunos e ver como eles reagiam. Nunca dizíamos que aquelas histórias eram nossas, para garantir a imparcialidade nas opiniões. Esses contos nunca foram publicados, nem foram escritos com esse objetivo. Continuámos a trabalhar juntas até que a Isabel teve a ideia de escrever um livro para publicar.
(IA) Antes de escrevermos o nosso primeiro livro, “Uma Aventura na Cidade”, fizemos um questionário para que os alunos da escola nos dissessem do que é que mais gostavam nas histórias que liam. E pedimos a todos os professores para o distribuir nas suas turmas. Assim ficámos a saber quais os gostos maioritários, tanto de rapazes, como de raparigas. O objetivo era conhecer o nosso público-alvo e saber que pontos poderiam trazer um efeito positivo. Nesse questionário, a maioria disse que gostava de histórias com mistério,ação, com personagens da sua idade… E assim resolvemos que este era o formato que mais convinha para o projeto de escrever um livro para publicação.
Como chegaram às vossas personagens para esse livro?
AMM As personagens de “Uma Aventura na Cidade”, que se mantêm ao longo de toda a coleção, foram alunos nossos. Na altura não lhes dissemos, até porque não sabíamos se íamos conseguir publicar o livro! Mantemos algum contacto até hoje com as gémeas, que vivem em Lisboa, casaram, têm filhos. Hoje devem ter perto de 50 anos. Dos rapazes, nunca mais tivemos notícias.
Como se fideliza um público tão volátil como o infanto-juvenil durante tanto tempo e em épocas tão diferentes? Os anos 80 estão muito longe dos nossos dias…
AMM Quando escrevemos um livro, temos de pensar no leitor e não em nós. Sabemos aproximadamente a idade que ele tem e tentamos perceber de que forma nos lê: se percebe bem as histórias, se e quando desvia a atenção, e o que o leva a abandonar um livro. Se escrevemos algo e chegamos à conclusão que pode levar o leitor a desistir do livro, deitamos fora. Temos de estar sempre a pensar como se tivéssemos aquela idade. Às vezes não é fácil. Quando escrevemos “Uma Aventura em Cabo Verde”, os últimos capítulos foram três vezes abandonados por nós. Uma coisa que sabemos sobre os nossos leitores é que eles abominam descrições, por exemplo, e isto pode levá-los a abandonar o livro. IA Há algumas coisas intemporais que fazemos deliberadamente para que o leitor se automotive para a leitura. Não serve de nada “impingir” um livro. Tentamos captar com a racionalidade, mas também, de uma forma muito particular, com a afetividade, aquilo que consegue ligar pessoas daquela idade a uma história.
Em todas as idades as pessoas gostam de coisas diferentes. O que nós tentamos é que a maioria daqueles que experimentam ler os nossos livros queira ler mais. Nossos e de outros autores. O importante é a repetição da experiência, e é por isso que nestas idades as coleções são muito importantes. Levam à fidelização.
AMM Quem se torna um leitor regular em criança, já não para. Pode não querer continuar a ler os nossos livros, porque entretanto cresceu, mas continua a ler livros de outros autores, para a sua idade.
IA Mesmo para os adultos, as histórias com uma componente policial são muito apelativas porque lhes são familiares, porque as diverte e porque lhes dá paz. Às vezes, são histórias terríveis, mas ajudam a sair desta realidade intensa do adulto, que exige decisão constante.
Nas crianças, é muito apreciada a clareza da definição do perfil de bom e de mau. Quando as histórias são muito equívocas, as crianças ficam baralhadas. Outra coisa que fazemos é usar uma linguagem deliberadamente clara. Há estudos que demonstram que mesmo nos bons leitores, se um décimo das palavras não for conhecido, eles vão abandonar o livro. Há uma preocupação muito grande com o vocábulo, com a construção da frase e com o uso de figuras de estilo, que tem de ser moderado e cauteloso.
Quando lançaram o primeiro livro da coleção “Uma Aventura”, alguma vez pensaram que pudessem ter hoje uma coleção de 60 livros com dezenas de reedições?
AMM Nunca! A nossa ideia era publicar um livro e fomos a quatro editoras até sermos aceites (pela Caminho). E, mesmo assim, o nosso editor disse logo que só avançava se tivéssemos dois livros e não apenas um. Só depois ele nos explicou que achava que podíamos criar uma coleção (não se sabia se de 60 ou de seis!). No fundo, ele não sabia se nós conseguiríamos escrever um segundo livro e se valia a pena apostar em nós, e por isso resolveu testar-nos. Assim, “Uma Aventura na Cidade” e “Uma Aventura nas Férias do Natal” acabaram por sair em simultâneo, com muito bons resultados.
IA Foi uma questão de marketing. O nosso editor sabia que se lançasse dois livros em vez de um, com a lógica de coleção, a compra de um motivaria a compra do outro, e assim venderia muito mais. Nós está – vamos a milhas de pensar nisso, o que nos preocupava era se conseguiríamos ou não escrever as histórias. Houve anos em que escrevemos três ou quatro livros, e por isso a coleção cresceu tanto.
AMM Esta coleção, bem como a “Viagens no Tempo” e todos os outros livros que temos, só foram possíveis porque somos duas e porque nos entendemos tão bem. Duas pessoas que se entendem bem tra – balham não o dobro, mas dez vezes mais. Repare que nem enquanto foi ministra (da Educação) a Isabel quis parar.
IA Não podia parar. Para nós, escrever estes livros é como um spa mental: é um ambien – te que nos restaura. É cansativo, mas é um cansaço com um resultado bom. E quando se é ministra, nunca se sabe se as coisas vão correr bem ou não. Para ser ministro é preciso ter um escape e uma boa capa -cidade de relativizar situações. As pessoas que funcionam melhor no domínio político são aquelas que têm uma vida muito rica e apoio de amigos e familiares.
Até hoje, sempre que escrevem um livro tentam viajar até ao sítio que servirá de cenário à história. Por que é que essa visita ao terreno é importante?
AMM Nós tentamos reconstruir o ambiente de outras épocas tendo como referência coisas que ainda existem hoje. Como visitar o túmulo de Egas Moniz, ou monumentos marcantes da nossa História, por exemplo. Isto, para a coleção “Viagens no Tempo”. No caso de “Uma Aventura”, é diferente, porque a ação passa-se no tempo atual. Sempre que possível fazemos essas viagens também com os nossos maridos. Vamos em família. Um exemplo de viagem a que fomos sozinhas foi à Amazónia, e foi uma experiência engraçadíssima. É como chegar ao Mundo no ponto onde ele começou. Curiosamente, esta era uma viagem que tínhamos decidido não fazer, por ser muito longe e caro. Pensámos fazer o livro com informação sobre o local retirada da internet, mas rapidamente concluímos que não seria possível. A internet dá-nos a cor, mas não nos dá o cheiro, o vento, o sabor e as experiências pessoais que obtemos quando vamos lá. Praticamente tudo o que acontece às personagens no livro “Uma Aventura na Amazónia” é transposto de experiências que nós tivemos. Andar numa passadeira aérea, encontrar uma anaconda enrolada no corrimão dessa mesma passadeira, navegar no “encontro mágico” das águas, onde o rio Negro se junta ao Amazonas, sem nunca se misturarem… A internet não nos dá nada disto.
Alguma vez pensaram em escrever para adultos?
AMM Não. Eu tive essa experiência porque escrevi uma autobiografia, mas não é nosso objetivo escrever para adultos. Por exemplo, nunca fizemos crescer as nossaspersonagens ao longo dos anos e cada livro vale por si próprio, como se não fosse parte de uma coleção. De alguma forma, estas personagens, com a idade que têm e sem nunca crescerem, fazem-nos falta. É no verão que nós escrevemos os livros de “Uma Aventura”, e, quando chega a altura, já temos saudades daquelas personagens. Escrever para adultos é uma experiência completamente diferente. Não é o nosso objetivo.
IA Nós estamos “afinadas” para escrever para crianças. Além destes livros que se vendem ao público, temos outros que escrevemos para a Assembleia da República, para a Fundação Calouste Gulbenkian, para a Associação Portuguesa de Seguros… Há muitas instituições públicas que nos pedem livros, sempre para este público.
Para escrever este tipo de livros, é preciso ser-se muito positivo…
AMM Sem dúvida. Ainda existe a ideia que trabalhar para crianças deve consistir em prepará-las para as futuras tarefas, ou para o sofrimento. Nós não achamos nada disso. A infância deve ser uma experiência positiva. É um tesouro que ninguém nos pode roubar.
IA Eu venho de uma família que sempre foi muito positiva, e acho que a infância será mais formativa se as pessoas forem protegidas das coisas mais difíceis que não podem resolver por si próprias. Isto não quer dizer que não se possa explicar os problemas do mundo dos adultos. As crianças não devem ser postas de lado, porque percebem facilmente o que se passa à sua volta e acabam por saber tudo. É fundamental conversar sobre as coisas, mas sem lhes exigir uma partilha de sofrimento. A infância tem de ser um momento mágico.