Pedrógão? “Incêndios florestais tão grandes ou piores podem vir a ocorrer no futuro”, alerta especialista
O verão aproxima-se e, com ele, também se avizinha o período tragicamente conhecido como a “época dos incêndios”. Os modelos de previsão do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) já mostram que o risco de incêndio está a aumentar em Portugal continental.
Em junho, o IPMA revelou que o mês de maio foi o mais seco dos últimos 92 anos e que 97,1% do território continental está em seca severa, sendo que 1,4% do país regista seca extrema. Além disso, a média da temperatura máxima do ar no mês passado registou aumentos de entre 3,5 e 6,5 graus centígrados face às temperaturas médias registadas no período entre 1971 e 2000.
Como se não bastasse, o sexto relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), tornado público em fevereiro de 2022, revela uma realidade alarmante que ninguém pode, nem deve, ignorar. Os 270 especialistas de mais de 60 países salientam que “o mundo enfrenta múltiplas ameaças climáticas inevitáveis nas próximas duas décadas com um aquecimento global de 1,5ºC” face ao período pré-industrial, o valor definido como meta pelo Acordo de Paris de 2015. A mais recente análise do IPCC destaca, no entanto, que é possível que as temperaturas em algumas regiões do planeta possam mesmo aumentar 2ºC.
O painel antevê que o cenário do aumento da temperatura global em 1,5ºC até 2040 é praticamente incontornável, com alguns modelos a projetarem panoramas mais extremos, com aumentos de até 5ºC.
Confrontado com um quadro que vai sendo pintado com cores cada vez mais negras, estará Portugal num bom caminho e pronto para enfrentar da melhor forma temperaturas cada vez mais elevadas, fruto das emissões de gases com efeito de estufa que provocam o aquecimento global? Olhando para o futuro que espreita ao virar da esquina, o que podemos esperar do verão de 2022?
O especialista em incêndios florestais e Professor da Universidade de Coimbra, Domingos Xavier Viegas, conta à ‘Multinews’ que, “na situação em que nos encontramos de mudança do clima, que temos vindo a notar de uma forma muito clara, temos de nos preparar para enfrentar situações cada vez piores, (…) em que os grandes incêndios tendem a ser cada vez maiores e mais destrutivos”.
Temperaturas cada vez mais altas e um clima mais seco exigem uma melhor preparação
Tratando-se de fenómenos naturais com “um potencial destrutivo cujo limite estamos longe de conhecer”, “nunca poderemos dizer que estamos completamente preparados para enfrentar o que vier”, reconhece Xavier Viegas. Contudo, “se cada entidade e cada pessoa tiver feito o que estava ao seu alcance, podemos, pelo menos, estar de consciência tranquila para enfrentar o verão que está a começar”.
Recordando os fogos intensos que em 2017 fustigaram a localidade de Pedrógão Grande, em Leiria, o especialista afirma que “incêndios florestais tão grandes ou piores podem vir a ocorrer no futuro”, mas sublinha que “se ocorrerem, não podemos permitir que tenham o mesmo efeito destrutivo, em especial a perda de vidas que sofremos” nesse trágico ano.
Todas as previsões apontam para que as temperaturas continuem a subir, que o clima se torne mais seco e que, por isso, o risco de incêndio suba persistentemente. Mas talvez possamos contar com a Ciência e com a Tecnologia para nos ajudarem a estarmos mais bem preparados e para até podermos atuar preventivamente, de forma a reduzir a probabilidade da ocorrência de situações mais dramáticas.
Porém, Xavier Viegas sustenta que “dificilmente Portugal poderá ter os recursos humanos e técnicos para enfrentar as piores situações”, mas que nessas alturas poderá contar com a solidariedade internacional, vinda da comunidade das nações europeias ou de fora dela.
A gestão da floresta no país “é talvez a atividade que tem sido mais descuidada durante as últimas décadas”, lamenta. Contudo, o especialista diz-nos que existem alguns sinais que evidenciam mudanças positivas. Por exemplo, “a preparação de faixas de limpeza, que permitem limitar a propagação dos incêndios, está a ser retomada”.
Sobre o eucalipto, diabolizado como a origem de quase todos os males no que toca aos incêndios em Portugal, Xavier Viegas admite que “não sou contra o eucalipto, por princípio”, mas não deixa de reconhecer que “a sua expansão excessiva e, sobretudo, sem gestão tem conduzido à criação de condições particularmente graves na propagação dos incêndios, quando as matas desta espécie são atingidas”.
Dessa forma, para que possamos ter florestas mais resilientes e seguras, “seria desejável que a plantação do eucalipto fosse restringida às áreas onde for mais viável e tiver mais produtividade”, esclarece o especialista da Universidade de Coimbra. “É fundamental que haja gestão das plantações, por pequenas que sejam, para melhorar a produtividade das matas e reduzir o risco de incêndio”, destacando que isso não é somente aplicável ao eucalipto, mas também a todas as restantes espécies de árvores.
O território português deveria ser “organizado em mosaicos de diferentes espécies”, elucida Xavier Viegas, “incluindo espécies de crescimento lento e áreas de retenção de água, para melhorar as possibilidades de realizar um combate eficiente”.
A nova estratégia 2020-2030 para a gestão de fogos florestais
No rescaldo dos trágicos eventos de Pedrógão Grande, que ceifaram as vidas de 117 pessoas, o Conselho de Ministros aprovou, em maio de 2020, o “Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais” (PNGIFR), para o período 2020-2030, e integrado no “Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território”.
Diz o Governo que o objetivo desse plano é “proteger as pessoas e bens dos incêndios rurais e valorizar os espaços silvestres, mantendo os ecossistemas em bom estado de conservação”, apresentando “uma visão ambiciosa, de onde Portugal se deverá encontrar após 2030”.
No documento, é também sustentado que “esta visão reconhece que os incêndios rurais não podem ser evitados por completo”, pelo que “é necessário preparar o território, as pessoas e os operacionais para trabalhar no terreno de modo a incrementar a segurança de todos, mas, ao mesmo tempo, utilizando o fogo, como fator ecológico comummente aproveitado na gestão agrícola, florestal e dos habitats, de forma tecnicamente sustentável”.
O PNGIFR pretende limitar a 660.000 hectares a área total ardida entre 2020 e 2030, o que representaria uma média de 66.000 hectares ardidos por ano. Além disso, pretende fazer com que o número de incêndios que queimem mais de 500 hectares não represente mais do que 0,3% do total de ocorrências nesses 10 anos, e também fazer com que a perda de vidas humanas em incêndios “seja um fenómeno raro”.
Xavier Viegas afirma que as metas traçadas nesse plano “devem motivar toda a população a trabalhar no sentido de as alcançar”. Reconhecendo que “uma boa parte da ignição, propagação e supressão dos incêndios depende da ação humana”, se todos fizerem a sua parte “certamente estaremos a cumprir para que as metas sejam atingidas”.
Contudo, considerando que a média de área ardida entre 2011 e 2020 foi de 129 mil hectares por ano, e que tinha sido estabelecido um limite de 100 mil, o valor apresentado no plano para o decénio 2020-2030 de 66.000 hectares anuais “além de ser uma meta ambiciosa, infelizmente poderá tornar-se irrealista”.
“Oxalá a possamos atingir, mas a tendência de agravamento da situação não me permite ser tão otimista”, confessa-nos Xavier Viegas.
O plano estabelece metas que estão fortemente dependentes de fatores que estão além do nosso controlo, como as condições meteorológicas. A estratégia para a prevenção e combate aos incêndios deveria alicerçar-se em “metas controláveis de ações de prevenção e de proteção das comunidades, que, essas sim, dependem apenas da ação humana”, salienta.
Se a principal preocupação for somente a de reduzir o valor absoluto das áreas ardidas e for descurada a prevenção, estamos “apenas a preparar-nos para grandes desastres no futuro”, garante-nos Xavier Viegas.
Fogos em Portugal: entre 2010 e 2020 arderam quase 1,5 milhões de hectares de floresta
Dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) mostram que entre 2010 e 2020 se registaram 203.230 incêndios rurais em Portugal continental, resultando num total de área ardida de 1.497.536 hectares. Desde 2017, ano que ficou marcado a fogo pelo trágico incêndio de Pedrógão Grande, que fez aumentar para 539.921 hectares a área fustigada pelas chamas nesse ano, a os maior parte das ocorrências tem acontecido em solos ocupados por floresta. Entre 2006 e 2016, a maioria dos incêndios aconteceu em áreas ocupadas por matos e pastagens naturais, aponta o ICNF.
O mesmo instituto público avança que, em 2020, os serviços ambientais da Guarda Nacional Republicana não conseguiram determinar as causas de 37,8% dos incêndios desse ano, mas foi possível apurar que 23,7% se deveram ao “uso de fogo” e 22,9% a “incendiarismo”, ou seja, fogo posto.
Entre dia 1 de janeiro e 31 de agosto de 2021, foram registados 6.672 incêndios rurais, com uma área ardida de 25.961 hectares, segundo dados avançados em setembro pelo Ministério da Administração Interna.
Xavier Viegas explica que o número de incêndios tem vindo a diminuir desde 2005, mas que essa tendência decrescente se tornou mais notória a partir de 2017.
“O facto de 2021 ter registado o número de incêndios mais baixo é muito animador”, afirma, e tal talvez se deva ao efeito que os incêndios de há cinco anos tiveram sobre a população, tornando ainda mais evidente a urgência de se minimizar os comportamentos que podem estar na origem dos fogos. Desde então, têm também sido realizadas campanhas de sensibilização a escalas sem precedentes e sido feitas melhorias ao nível dos sistemas de vigilância que permitem detetar focos de incêndio e os seus autores. “Este efeito dissuasivo do sistema de vigilância é muito importante para desencorajar comportamentos menos corretos ou, no limite, criminosos”, conta Xavier Viegas.
Nos esforços de vigilância, destaca o papel da Força Aérea, que nos últimos anos tem usado drones munidos de sensores de grande qualidade “que estão a patrulhar o território nacional de dia e, a partir de agora, também de noite”. Xavier Viegas e a sua equipa participaram recentemente em testes noturnos de deteção de focos de incêndio a partir do aeródromo da Lousã.
O que podemos esperar do verão de 2022?
Se se mantiver o cenário de escassez de chuva e de seca profunda e contínua, é possível “a ocorrência de incêndios que se podem tornar muito violentos e transformar-se em grandes incêndios”, prevê Xavier Viegas, sublinhando que “o estado de seca é muito patente nas regiões Centro e Sul do país”.
Apelando à população para que se acautele quando utiliza o fogo, o especialista salienta que “não são a secura ou as altas temperaturas que causam os incêndios. Se todos tivermos cuidado, o facto de termos condições potencialmente perigosas pode não ter qualquer significado”.
Esperançoso, Domingos Xavier Viegas confessa que espera que 2022 seja recordado como um ano em que se registou um baixo número de incêndios e uma área ardida muito reduzida. “Esse seria um bom indicador de que estamos no bom caminho”.