Universidade Europeia: A economia do digital
Por José Manuel Fonseca, coordenador e docente na área de Gestão da Universidade Europeia
Em 1983, um economista americano, Brian Arthur, tentou publicar um artigo científico em que mencionava algumas blasfémias, de tal modo surpreendentes que a maioria julgou que estaria na presença de um número de stand up académico, e o artigo foi recusado durante cinco anos. Brian Arthur mencionava o surgimento de relações económicas baseadas na “partilha” e não na troca, e a existência de rendimentos crescentes a prazo.
Mais tarde, em 1996 num artigo na Harvard Business Review, já desfeito equívoco do bom humor, e levado a sério, tão a sério que no ano passado chegou a ser fortemente mencionado como possível prémio Nobel da Economia, Brian Arthur divulgava a sua apreciação sobre a evolução de relações económicas assentes na troca de produtos físicos (resultantes de processos de manufactura baseados em transformação de materiais e em consumo intensivo de energia) para relações de “partilha” de serviços de base imaterial, por exemplo, baseados em licenças de utilização
Passaríamos, portanto, de relações tradicionais em que alguém leva a um qualquer mercado, um produto (físico) e cede a propriedade, posse, utilização, usufruto com carácter definitivo ou não, a troco de um pagamento, para relações de “partilha” em que alguém cede uma cópia de um software, ou de um jogo ou de um vídeo, ou de objecto digital tendo como contrapartida um pagamento directo ou indirecto. A questão central é que na primeira circunstância o vendedor fica com o dinheiro mas sem o produto e, na segunda fica com dinheiro e com a possibilidade de o continuar a vender repetidas (ilimitadas) vezes. E como Brian Arthur salientou, em muitos casos destes “produtos imateriais” existe uma relação de interdependência entre a sua utilização por um cliente em concreto e a sua utilização por outros clientes (em comunidades). E, quantos mais clientes individualmente decidirem por esta ou aquela solução, mais a solução se torna vantajosa para todos, sem que nenhum esteja ciente das decisões que os outros tomarão. No entanto, uma qualquer solução poderá chegar a standard do mercado, e nessa altura ganha uma vantagem competitiva sobre as outras ofertas alternativas. Eventualmente, poderá atingir uma situação que Brian Arthur denominou de lock-in, constituindo-se uma vantagem de tal modo forte que “força”, na prática, as outras soluções concorrentes a saírem do mercado. É o caso, por exemplo, do sistema operativo Windows que se tornou o standard do mercado e fornece à Microsoft uma situação de monopólio de facto. Finalmente, cria-se um ciclo de feedback positivo que abre a porta a uma situação de rendimentos crescentes a prazo. Quanto mais computadores se venderem, mais licenças de sistema operativo a Microsoft vende, sendo que o custo de emissão da licença se torna cada vez mais barato, e quanto mais computadores se venderem mais empresas que produzem software têm de abordar a Microsoft para serem certificadas e “compatíveis”.
O que Brian Arthur antecipou foi o que actualmente designamos por Nova Economia, Economia do Imaterial, Economia do Conhecimento e mais recentemente Economia Digital. E que representará mais de 70% do PIB dos países desenvolvidos. Para aqueles mais familiarizados com Schumpeter, passámos para uma economia em que o “input chave” do novo ciclo de Kondratiev já não é nem uma matéria ou forma de energia, mas antes a informação e o conhecimento, acessível pela internet a todo o momento e em todo o lado. Claro que a acessibilidade é também grande à desinformação e à palermice… Existindo data lakes de ambas…
Em todo o caso, esta “Nova Economia” coloca desafios enormes à “Velha Gestão” em todas as áreas do “espectro”…
Passámos a um regime económico em que duplicar as vendas não significa duplicar a produção. Pode bem passar por abrir uma nova conta no Instagram…
Passámos a um regime em que, mesmo para os produtos físicos, como telemóveis, perfumes, comida, roupa, etc., a percepção de valor se afastou muito do custo efectivo de manufactura dos produtos. A formação do preço distancia-se de modo crescente da ponderação do mero somatório de quantidade de materiais incorporados, custo das operações de maquinação, custo das horas de mão-de-obra e custo energia despendidos na fabricação de cada produto.
Passámos, portanto, a um regime em que as variáveis tradicionais de posicionamento, as variáveis controláveis, as variáveis do Marketing Mix, aparentemente já não são o produto, o preço, a promoção e a distribuição. Mas a “experiência” (proporcionada ao consumidor como substituto do “produto”), a “emoção” (como substituto do “preço”), “em todo o lado” (como condição sine qua non de “distribuição” – acessibilidade online e entrega imediata em qualquer lado) e “evangelização” (como forma de comunicação que transforma consumidores, utilizadores, clientes, utentes em adeptos de culto de uma marca).
Este admirável mundo digital, imaterial, baseado em saberes trocados e partilhados em comunidades que por vezes escalam para hordas, é de modo crescente; instantâneo, excessivo, universal, efémero, volátil. Deixa-nos, frequentemente, perplexos. Para intervir de modo frutífero nestes novos mercados algumas das funções clássicas, como Gestão de Pessoas, Gestão Financeira, Logística, Comunicação, Estratégia, vêem emergir novas soluções e novos problemas com velocidades inusitadas. Por outro lado, as universidades parecem ter (de assumir) um papel misto de sítios onde encontrar soluções e reflexões relativamente sólidas, mas também sítios onde as pessoas se possam encontrar e partilhar histórias, experiências e co-criar saberes. Quase paradoxalmente, o mundo digital que permite acelerar e difundir, a velocidade quântica, a última “novidade”, porque podemos estar permanentemente ligados, não oferece uma solução definitiva para a ligação humana. A universidade terá um papel de sítio “seguro” onde podemos “parar” o tempo por breves instantes e discutir sem ser “engolidos” pela voragem do quotidiano e do isolamento do admirável mundo novo.
Num mundo esmagadoramente digital, a formação presencial assumirá um papel muito para além da “transmissão” de conhecimento. A construção de comunidades de aprendizagem e de co-construção de saber será mais robusta em presença do “outro”, que pode partilhar ideias e lições aprendidas, e o papel dos formadores será, também, de modo crescente de facilitadores e estimuladores do crescimento e não de fornecedores de powerpoints…
A universidade também está a aprender a fornecer novas viagens emocionais e novas experiências aos “consumidores”, mas ironicamente, o retorno ao claustro do mosteiro de Bolonha onde foi fundada, e onde toda a heresia era admissível talvez seja um papel dos mais nobres que precisa não olvidar.
Este artigo faz parte do Caderno Especial “MBA, Pós-Graduações & Formação de Executivos”, publicado na edição de Outubro (n.º 187) da Executive Digest.