A Bitcoin é realmente uma moeda?
Por José Gonçalves Pinto professor do ISEG
Os novos desenvolvimentos no campo das Finanças não são novidade, e, após as inovações trazidas por teóricos matemáticos e materializadas em produtos estruturados que, de tão complexos, se revelaram disfuncionais, o mundo económico e financeiro está agora a ser invadido por especialistas de computação e informática, que trazem mais inovações tecnológicas e mudanças.
A criação da primeira moeda digital, a Bitcoin, com recurso à tecnologia do blockchain, veio lançar as bases para um novo paradigma da moeda. Assistimos a mais uma desintermediação e digitalização na nossa vida, agora na nossa relação com o dinheiro. Mas será a Bitcoin, realmente uma moeda?
A perspectiva de moeda que nos é apresentada nos livros de Economia depende em grande parte da medida em que esta desempenha as funções de unidade de medida, reserva de valor e meio de troca. Muitos economistas sugerem que a moeda surgiu como uma inovação, menos dispendiosa, para substituir as trocas directas. Esta tem sido a visão dominante e foi por isso que grande parte das inovações tecnológicas ocorreram, sempre com o intuito de fazer diminuir os custos de transacção e ir eliminando as ineficiências do mercado. Os meios de troca foram assim perdendo a sua materialidade, até que passaram a ser meras representações.
A Bitcoin e as outras moedas digitais reduziram os custos de transacção, de tal forma que eles se tornam quase irrelevantes, enquadrando-se na perfeição nestas inovações tecnológicas dos meios de troca e na procura de maior eficiência.
Para servir como meio de troca, uma moeda tem de ser aceite por um conjunto de indivíduos ou entidades. Caso seja aceite, qualquer item ou representação pode servir como moeda. Daí que não seja estranho que uma moeda digital tenha aparecido e, com ela, uma comunidade de utilizadores, pois eram estes a razão da moeda permanecer.
No entanto, tal como referido num Relatório Trimestral do Banco de Inglaterra de 2014, a maior parte dos utilizadores parece simplesmente manter as suas Bitcoins, em vez de as usar nas transacções do dia-a-dia. Fica então a ideia de que as moedas digitais funcionam mais como activos a servir como reserva de valor. Mas também é verdade que um número cada vez maior de indivíduos e entidades utiliza as moedas digitais para as suas transacções, dotando-as de maior confiança e aceitabilidade.
Hoje, existem perto de 800 sistemas de moedas digitais (coinmarketcap.com), alguns ainda em desenvolvimento, e outros em vias da sua ICO (Inicial Coin Offering), uma espécie de oferta pública, mas para um sistema de moeda digital.
Os mineiros das Bitcoins
O que diferencia então uma moeda digital de outros activos, como, por exemplo, o ouro? A forma de obtenção das Bitcoins é chamada de mineração, como se de ouro se tratasse, e existe um limite natural ao número de Bitcoins que podem ser alvo de prospecção, semelhante ao limite natural do ouro.
Parece então que, excluindo a virtualização de um e a materialidade do outro, poucas diferenças se podem encontrar entre o ouro e a Bitcoin. E de facto, assim é. Um activo é meio de troca ou reserva de valor consoante a sua aceitabilidade numa determinada comunidade.
Outrora moeda, o ouro é agora um activo que serve como reserva de valor e que apenas muito esporadicamente é usado como meio de troca (até pelos elevados custos de transacção que acarreta). A sua função de unidade de medida desapareceu, quando a comunidade internacional decidiu abandoná-la. A unidade de medida é tida como a forma pela qual um determinado item é valorizado. É neste ponto que maiores dúvidas surgem em relação às moedas digitais.
No citado relatório do Banco de Inglaterra, é referida a falta de evidências de que a Bitcoin possa ser considerada unidade de medida, pois apenas pontualmente são transaccionados itens tomando como referência a própria Bitcoin e sem levar em conta a sua convertibilidade com uma moeda física nacional.
A função de unidade de medida é considerada por alguns economistas como a mais importante característica da moeda, que vêem no seu controlo e estabilidade a principal preocupação dos bancos centrais. Talvez seja por esta razão que, apesar de estarem a ser monitorizadas por estes, as moedas digitais não interfiram ainda com a política macroeconómica de estabilização de preços.
Na perspectiva tradicional o dinheiro tem origem no Estado e no seu poder de definir uma unidade de medida e a ideia de um sistema monetário sem ligação ao Estado é considerada absurda.
O controlo está a escapar aos banqueiros centrais
O certo é que, em Maio, os governos do Japão e da Coreia do Sul passaram a aceitar oficialmente algumas moedas digitais como meio legal de pagamento, numa decisão que elevou a capitalização da Bitcoin a máximos históricos e que revela uma aproximação da moeda digital a um Estado soberano e a possibilidade de esta se tornar uma unidade de medida de per se.
Caso isso aconteça, poderemos então dizer que a moeda digital seria de facto uma moeda? Mas sujeita a que Estado? Com a emissão dependente de algoritmos e da capacidade de computação descentralizada, os bancos centrais deixariam de ter o poder de controlar a massa monetária em circulação e as teorias macroeconómicas de estabilização deixariam de funcionar. Talvez seja por isso que, apesar de aceite como meio de pagamento no Japão, as moedas digitais continuam a ser vistas como um activo e não como unidade de medida.
O que poderemos antever é a concorrência entre os meios de troca criados pelos bancos centrais e por sistemas descentralizados. Aqui não há assim tanta novidade. Em certos períodos, em particular coincidentes com as crises económicas, dá-se o aparecimento de formas monetárias concorrentes, sendo exemplo disso a emissão de estampas seladas pelos bancos locais, durante a Grande Depressão dos EUA, que funcionavam como meio de troca e tinham no banco local a garantia da sua convertibilidade com outras moedas. Foram também emitidas moedas ligadas a grandes empresas ou associações empresariais, como no caso da famosa “moeda de madeira” de Tenino, emitida pela Câmara de Comércio local. As moedas digitais aparecem também num período de instabilidade financeira, como forma alternativa a uma monocultura monetária, que se torna ineficiente em períodos de crise.
Poderemos pensar então que, no futuro, a par com a manutenção de uma unidade de medida nacional a moeda passará a ser totalmente digital e os custos de transacção inexistentes. No entanto, outras formas de moeda estão a surgir que, de certa forma, contrariam esta tendência. O propósito destas moedas, para além da descentralização da emissão monetária, não é a redução dos custos de transacção (algumas promovem mesmo o inverso), mas sim o desenvolvimento da economia local, o aumento da coesão social, ou uma maior consciência ambiental. Estas moedas podem assumir uma forma digital ou física, como é o caso da Bristol Pound, uma moeda em papel criada para circular na cidade inglesa de Bristol. Algumas têm até a sua própria unidade de medida, o que as torna totalmente independentes da moeda nacional e das “forças” de mercado.
Não tendo uma projecção tão alargada como as moedas digitais, nem um volume de transacções tão significativo, estas moedas estão a crescer nas comunidades e a testar novas formas de criação monetária.
O futuro próximo será habitado por múltiplas formas monetárias, impulsionadas pelas inovações tecnológicas, mas também por inovações sociais, numa tendência para a desintermediação e coexistência.
A Bitcoin poderia não ter tido um crescimento tão rápido, se não estivesse associada a uma unidade de medida já conhecida e confiável, mas, por enquanto, parece ser difícil de conceber uma moeda digital que seja unidade de medida por ela própria. Isso implicaria que a comunidade que dela fizesse uso como unidade de medida partilhasse um conjunto de valores comuns, que lhe conferissem uma certa autonomia. Se no início da “mineração” das Bitcoins tal comunidade pudesse ser encontrada, com a abertura e convertibilidade sem restrições à moeda nacional, os valores passariam a estar diluídos no conjunto dos valores da comunidade-nação.
A rápida proliferação e aceitação das moedas digitais irá colocar grandes desafios aos sistemas monetários nacionais e podemos esperar que estes comecem a regular o seu funcionamento.