O jogo do ditador

Por Carlos Lourenço, Professor do ISEG

As últimas eleições nos Estados Unidos da América (EUA), onde o pleno direito de voto para as mulheres só chegou em 1920 e para os afro-americanos em 1964, deixaram o país “partido ao meio” e surpreenderam pelo crescimento do eleitorado republicano entre segmentos desfavorecidos da população, desde logo entre os hispânicos. Lembremo-nos, por exemplo, que na convenção do partido republicano estes foram apelidados, indiscriminadamente, de criminosos, e na campanha foram sendo engenhosamente associados com a insegurança.

Um olhar atento ao comportamento dos indivíduos e como estes revelam as suas preferências redistributivas, que é essencialmente a esfera onde se exerce o poder político, pode ajudar a compreender este enigma aparentemente absurdo, sobretudo num contexto de (elevada) desigualdade.

No chamado Jogo do Ditador, um “ditador” é chamado a repartir um montante entre si e outra pessoa, e o jogo acaba sem que esta última tenha voto na matéria. O que se tem verificado é que as pessoas, mesmo quando têm a oportunidade de se comportarem como ditadores impunes pelas suas decisões redistributivas, ainda assim, partilham alguma coisa.

Porém, a teoria económica clássica, que pressupõe que os agentes são racionais e egoístas, prevê que o ditador fique com tudo, porque isso é o melhor para si. E, de caminho, o outro nem sequer é prejudicado: fica como começou, sem nada.

Ora, sabendo da promessa de deportações em massa e das políticas da 45a presidência, os que votaram no agora presidente comportaram-se, pode dizer-se, como ditadores egoístas num jogo semelhante àquele. É esse claramente o caso para os que contavam emigrar para os EUA com um estatuto indocumentado e tenham cancelado os seus planos. Nenhuma parte do bolo norte-americano era repartido com estas pessoas e assim continuará.

Já os que estão atualmente em solo norte-americano indocumentados e sem direito de voto, mesmo que a trabalhar, arriscam a deportação e consequências dramáticas nas suas vidas e nas dos seus filhos. Não ficarão iguais, mas muito piores.

E de nada serve que os seus pares ditadores sejam acusados de falta de reciprocidade. Sim, porque os imigrantes indocumentados no país são em larga medida o resultado da procura por baixos custos laborais (o argumento do oportunismo subsídio-dependente não colhe porque o país não tem um estado social digno desse nome).

Também por tudo isto é tão cheio de significado o relato, de uma analista num canal de TV francês na noite das eleições, da justificação que alguém na comunidade hispânica dera para o seu voto no candidato republicano. Porque achava que os novos imigrantes latinos têm a vida facilitada em comparação com a sua quando chegara ao país.

Ainda que alguma racionalidade se pudesse resgatar neste raciocínio entre aqueles cuja mão de obra compete mais diretamente com a mão de obra barata imigrante, ele mostra bem a importância de se conhecerem as preferências redistributivas — e como o egoísmo pode facilmente dar a mão à inveja.