Síria: Na fronteira com o Líbano, uns juntam-se à libertação e outros fogem dela
Na principal fronteira entre o Líbano e a Síria, vagas de refugiados sírios regressam ao seu país acabado de se libertar da tirania de Bashar al-Assad, mas, no sentido inverso, centenas de pessoas acumulam-se em fuga da incerteza.
Desde a partida do ditador sírio, no passado fim de semana para a Rússia, após uma operação relâmpago das forças de oposição que culminou com a conquista de Damasco, milhares de sírios que se encontravam no vizinho Líbano começaram a cruzar fronteira de Masnaa, tornada num ponto de celebração, à semelhança da maioria das cidades do seu país.
Para a maioria, muitos dos quais sunitas perseguidos pela mão de ferro do regime de Damasco, trata-se do regresso às suas comunidades devastadas por 13 anos de guerra civil, e, de algum modo, um passo que não traz mais insegurança do que aquela que cerca de 1,5 milhões de refugiados sírios experimentam no Líbano, um país sacudido pelo conflito que há mais de um ano opõe Israel e o movimento xiita Hezbollah.
No entanto, após um primeiro êxodo logo a seguir à queda confirmada no passado domingo de mais de 50 anos da dinastia Assad, que levou o júbilo e o caos a Masnaa, o movimento começou a abrandar, enquanto, no sentido contrário, centenas de sírios indocumentados se foram acumulando em terra de ninguém entre os dois países, aguardando autorização para entrar. “Estão ali há três dias”, conta Samir, motorista libanês residente na localidade vizinha de Anjar.
Samir, que tem sido testemunha destes movimentos contrários, faz uma divisão fácil dos dois grupo. De um lado estão aqueles que ”perderam o medo de viver na Síria” e do outro os que “ganharam medo” com a rápida deposição do regime, ainda que o líder da principal fação rebelde, Abu Mohammad al-Jolani, tenha usado um discurso reconciliador de uma nova realidade em que ninguém é perseguido.
Para ele, que não é sírio, a escolha seria menos complexa, já que “um homem [Assad] que mata mulheres e crianças nunca é de se confiar”, mas o seu país também vive momentos de alta instabilidade, apesar do cessar-fogo que interrompeu em 27 de novembro as hostilidades entre as forças israelitas e o grupo armado apoiado pelo Irão e que tem sido sucessivamente violado. “Ali ficava um aquartelamento do Hezbollah”, indica Samir, apontando para uma construção abandonada junto do lado sírio da fronteira.
Afinal, passaram apenas dois meses desde que um raide aéreo israelita atingiu a estrada a meio caminho entre os dois postos fronteiriços, deixando a via intransitável, o que obrigava todos os viajantes a fazer o percurso de uns dois pares de quilómetros a pé e as malas de uma vida às costas.
As enormes crateras abertas pelas bombas israelitas foram entretanto reparadas e a entrada na Síria, no controlo de Jdaidit Yabws, é agora assinalada por um retrato vandalizado de Bashar al-Assad, e vigiada por grupo resplandecente de militares rebeldes vestidos à civil, que, segundo Samir, vivem em cidades vizinhas e foram armados pelo comando das forças de oposição a partir de Damasco. Não pedem passaportes e oferecem sorrisos e boas-vindas a um “país livre”. Todos os edifícios de imigração e alfândega não mostram atividade e as instalações de ‘duty free’ foram pilhadas.
No lado contrário, as famílias de Yasser Ali, 40 anos e do seu irmão estão acomodadas em dois carros cheios. Partiram há duas semanas de Alepo, em simultâneo com a tomada da segunda maior cidade síria, no norte da Síria, pelas forças rebeldes do grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), de al-Jolani, e têm como destino o Líbano.
“Enquanto não houver paz na Síria prefiro o Líbano”, justifica o engenheiro sírio, que diz ter abandonado Alepo apenas com a roupa que traz no corpo e colocado todos os pertences das duas famílias de 10 pessoas, incluindo seis crianças, em duas malas no tejadilho das viaturas.
Relata ainda que seguiu rumores de ameaças do HTS, embora pessoalmente não recebido nenhuma. “Mas prefiro só regressar se a situação normalizar”, remata, evitando previsões, sobre o chão coberto por invólucros de munições, provavelmente disparadas em festejos, porque os anteriores militares no local limitaram-se a abandonar os seus postos sem oferecer resistência.
A estrada que separa a fronteira de Damasco, numa distância de cerca de 50 quilómetros, é desoladora, com pouco movimento e comércio quase parado, repetindo-se os cartazes com imagens de al Assad destruídos, por vezes acompanhadas por retratos do seu aliado russo e líder do Kremlin, Vladimir Putin, igualmente vandalizados.
Também os numerosos antigos postos de controlo militar ao longo da via foram abandonados, como sucedeu junto da localidade de Dimas, mais um imponente blindado de fabrico russo, tal como a caserna adjacente, onde apenas restam as estruturas metálicas dos beliches dos soldados e restos de uniformes misturados com lixo.
Outros tanques foram deixados para trás pelas forças afetas ao regime, bem como viaturas equipadas com sistemas de defesa antiaérea que relatos indicam ter sido destruídas pela aviação israelita, que tem fustigado nos últimos dias os restos da capacidade militar do exercito sírio, e outras ainda de transporte que permanecem intactas nas bermas, sinalizando a deserção dos seus ocupantes. “Eram oficiais, despiram as fardas, vestiram roupas civis e desapareceram”, conta Osama, 32 anos, um filho de Damasco que fugiu há 11 para Idlib, e que regressou há dois dias a casa.
Osama é na verdade Yamen de nascença, tendo adotado o pseudónimo quando se assumiu como “um revolucionário” e montou base como ativista de oposição a Assad e designer gráfico de profissão naquela cidade no noroeste do país, que nos últimos anos era controlada pelo HTS e governada por Mohammed al-Bashir, que acaba de ser apontado primeiro-ministro interino do novo executivo sírio.
Ao fim de 11 anos de ausência, Osama partiu de imediato para a sua Damasco natal, agora dominada pela nova bandeira síria tricolor de três estrelas, e dirigiu-se para a casa de infância para reencontrar o pai: “Foi um momento muito feliz e também estranho. Mal o reconheci”.