Reformulação das Taxas Moderadoras do SNS não elimina barreiras financeiras no acesso aos cuidados de saúde em Portugal, denuncia estudo

Apesar da eliminação da maioria das taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde (SNS), a principal barreira no acesso aos cuidados de saúde em Portugal continua a ser a financeira.

A conclusão foi revelada no mais recente Relatório ‘Acesso a Cuidados de Saúde 2023’, da autoria dos investigadores Carolina Santos e Pedro Pita Barros, detentor da Cátedra BPI | Fundação ‘la Caixa’ em Economia da Saúde, no âmbito da Iniciativa para a Equidade Social, uma parceria entre a Fundação ‘la Caixa’, o BPI e a Nova SBE.

Para identificar as potenciais e efetivas barreiras no acesso aos cuidados de saúde em Portugal o Relatório ‘Acesso a Cuidados de Saúde 2023 – Uma Década de Evolução’ analisa as decisões de utilização dos serviços de saúde, desde o momento em que os cidadãos sentem a possibilidade de doença, considerando variáveis como idade, classe socioeconómica, género e nível de escolaridade.

A primeira decisão do doente quando sente um problema de saúde prende-se com a procura, ou não, de ajuda profissional no sistema de saúde. Perante um episódio de doença, vários motivos podem justificar o não recurso ao sistema de saúde, no entanto, na grande maioria das vezes o pedido de ajuda profissional não se concretiza devido à reduzida gravidade do episódio de doença e, nos casos de maior severidade em que o recurso ao sistema de saúde não sucede são principalmente as barreiras financeiras ou geográficas que condicionam a opção do doente.

Em 2023, cerca de 11,26% dos inquiridos que sofreram um episódio de doença optaram por não utilizar o sistema de saúde (quase 3 ponto percentuais inferior ao valor registado em 2022) e, destes, 75,6% optaram por se automedicar. A diminuição da percentagem das pessoas que opta pela automedicação ocorrida entre 2020 e 2022 inverte-se em 2023 atingindo valores 32,3 pontos percentuais superiores aos registados em 2022 e 11,4 pontos percentuais superiores aos registados no pico do período pandémico (64,2%).

Quando analisadas as razões para a escolha por automedicação, verifica-se que a experiência com problemas similares no passado, é preponderante não só devido à vivência recorrente com certos problemas de saúde (especialmente entre indivíduos com doenças crónicas) mas também devido à existência de medicamentos disponíveis em casa (o que reduz o custo implícito de não procurar auxílio profissional no sistema de saúde). No entanto, entre 2022 e 2023, a experiência com problemas similares no passado perde relevância na decisão de os indivíduos se automedicarem e dos 76,1% registados em 2021 decresce para 49,6% em 2023. Relativamente aos doentes que optam pela automedicação devido à existência de medicamentos disponíveis em casa, verifica-se que em 2022 e 2023 houve um aumento significativo, embora em 2023 tenha sido menos expressivo que em 2022. Os dados permitem ainda revelar que em 2023 verificou-se um aumento na percentagem dos indivíduos que escolhem automedicar-se por sugestão de amigos ou familiares e devido aos tempos de espera no SNS sendo ainda de realçar que, desde 2020, não há inquiridos a reportar terem optado por se automedicar devido a informação que recolheram na internet, rádio, televisão ou em campanhas publicitárias. No entanto ‘a elevada e crescente percentagem de indivíduos que reporta automedicar-se sinaliza que este é um comportamento que deve ser estudado e monitorizado, pelas consequências que pode ter, tanto para a saúde da população, como para a sustentabilidade e eficiência dos cuidados prestados no sistema de saúde’.

Quando analisados os dados relativos aos indivíduos que optam por recorrer ao SNS verifica-se que não existe uma relação sistemática com o grupo etário, o nível de escolaridade ou o género do inquirido, revelando apenas o grupo do escalão socioeconómico mais desfavorecido (escalão E) uma maior probabilidade de procurar ajuda no sistema de saúde perante um episódio de doença, facto que poderá estar relacionado com a maior severidade (autopercecionada) dos problemas de saúde desse grupo socioeconómico. No que diz respeito aos motivos para a procura de auxílio, os dados analisados permitem aferir uma grande homogeneidade ao longo dos anos, com o aparecimento de um problema inesperado a ser o principal motivo para os cidadãos procurarem cuidados de saúde (55,3% em 2023, abaixo do valor médio verificado em 2022, mas em linha com o valor reportado durante o período pandémico). As doenças crónicas surgem como o segundo motivo de recurso ao SNS com 36,8% dos inquiridos a sinalizarem que a deslocação se concretizou devido a um agravamento ou descompensação da sua doença crónica (em 2022 situava-se nos 24,9%).

Os dados obtidos permitem ainda verificar que a ocorrência de episódios de doença é fortemente condicionada pelo contexto social ‘em 2023, a probabilidade de uma pessoa com 65 e mais anos ter tido um episódio de doença foi superior a 50%’ e pela condição socioeconómica (em 2023 a probabilidade atingia 66% dos indivíduos do grupo com maiores restrições financeiras (classe socioeconómica E) ao passo que apenas 29% era revelada em pessoas das classes socioeconómicas mais favorecidas (A e B).

Analisando as barreiras financeiras no acesso a cuidados de saúde, verifica-se um acentuado gradiente socioeconómico, com os indivíduos com maiores carências económicas a registarem uma probabilidade substancialmente superior de não adquirir todos os medicamentos necessários ao tratamento de um episódio de doença, ou de não irem a uma consulta ou urgência por falta de dinheiro. Apesar da eliminação nos últimos anos da maioria das taxas moderadoras no SNS, as barreiras financeiras no acesso a consultas ou urgências permanecem elevadas. ‘As dificuldades financeiras reportadas no acesso a consultas e urgências extravasam os verdadeiros custos associados a taxas moderadoras no SNS e podem dever-se a despesas com medicamentos receitados na sequência de uma ida a uma consulta ou urgência, ou aos custos de transporte necessários para deslocação ao serviço de saúde’.

A mais importante componente da despesa em saúde continua a ser a relacionada com medicamentos (em 2023, a despesa média com medicamentos correspondia a cerca de 70,5% das despesas médias totais nas idas às urgências e a 89,5% nas idas aos cuidados de saúde primários) ‘por conseguinte, uma vez eliminadas a maioria das taxas moderadoras, a discussão das barreiras financeiras no acesso a cuidados de saúde deve centrar-se nas despesas com medicamentos’ concluem os investigadores.

No que diz respeito a barreiras não financeiras, não se verifica um gradiente socioeconómico associado ao cancelamento de consultas ou exames, verificando-se uma diminuição deste indicador em todas as classes socioeconómicas (embora de forma menos pronunciada em indivíduos com maiores dificuldades financeiras). Analisando o setor público (Serviço Nacional de Saúde, SNS) e o setor privado verifica-se que, em 2023, a probabilidade de um indivíduo recorrer unicamente ao setor público era de 87%, a probabilidade de recorrer unicamente ao setor privado era de 11% e a probabilidade de recorrer a ambos era de 2%. De referir ainda que, após o recurso particularmente acentuado ao setor privado no primeiro ano da pandemia COVID-19, desde então, este indicador tem vindo a decrescer.

Avaliando a probabilidade de um individuo ter médico de família atribuído pelo SNS os dados analisados revelam um decréscimo (91% em 2020 face a 80% em 2023) verificando-se um gradiente socioeconómico, com os indivíduos de escalões socioeconómicos mais desfavorecidos a terem (em 2023) uma menor probabilidade de ter médico de família no SNS do que pessoas de classes socioeconómicas mais favorecidas (facto que não resulta de uma discriminação ativa mas sim da menor atratividade das unidades de cuidados de saúde primários em zonas de baixos rendimentos da população), ‘por conseguinte, as barreiras não financeiras acentuam as barreiras financeiras no acesso a cuidados de saúde’. Os dados revelam ainda que a probabilidade de ter médico de família no setor privado é maior para pessoas que não têm médico de família no SNS (19%) confirmando que a população tende a considerar a oferta de cuidados de saúde primários no setor privado como um substituto dos cuidados de saúde primários no SNS. Este serviço do setor privado é utilizado maioritariamente por pessoas das classes socioeconómicas mais favorecidas e com idades compreendidas entre os 65 e os 79 anos.

Por último, e atendendo ao contexto de envelhecimento populacional em Portugal, os dados recolhidos e analisados revelam que entre 2017 e 2023 registou-se um aumento na probabilidade de se ser doente crónico, tendo este aumento sido particularmente pronunciado em indivíduos com idades compreendidas entre os 60 e os 69 anos e nas mulheres. Apesar do crescimento deste indicador no grupo das mulheres, verifica-se uma diminuição das barreiras no acesso a consultas e urgências neste grupo populacional, o que sugere que, pelo menos em parte, o sistema de saúde está a conseguir dar resposta às necessidades acrescidas de cuidados de saúde das mulheres nesta faixa etária. ‘Ainda assim, face ao aumento da prevalência de doenças crónicas em indivíduos mais velhos (50+) e às melhorias pouco expressivas no acesso a cuidados de saúde para a generalidade das pessoas mais velhas, surge a preocupação de que o sistema de saúde pode não estar a conseguir fazer face às necessidades de cuidados de saúde da população’ concluem os investigadores.