“O espaço transformou-se numa business arena”, diz o Presidente da Agência Espacial Portuguesa

Desde a década de 90, quando Portugal começou a dar os primeiros passos na indústria espacial, o sector cresceu de forma substancial, contando hoje o nosso país com um ecossistema empresarial robusto que participa activamente em diversas missões espaciais. Neste campo, a Agência Espacial Portuguesa assume um papel central no fortalecimento e promoção do ecossistema e na cadeia de valor do sector, agindo como uma unidade de negócio e desenvolvimento para universidades, institutos de investigação e empresas.
Mas que ecossistema é este? Qual o papel de Portugal na exploração espacial? De que forma o imaginário do espaço pode ser uma inspiração para os líderes empresariais?
A Executive Digest esteve à conversa com Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, que garante que «o espaço é sexy» e que se está a transformar numa «business arena» para grandes players

Está ligado ao sector aeronáutico e espacial desde 1993. O que o levou a querer conhecer as estrelas mais de perto?
Sou da geração que veio de África, a famosa ponte aérea, cheguei em 1975 ou 1976 quando tinha sensivelmente 15 anos. Na altura fomos viver para o Norte, numa zona rural, fomos para a pobreza profunda. Hoje, olhamos para esta epopeia que é a actualidade das migrações e esquecemo-nos que o nosso País teve um fenómeno brutal nessa década, e que foi responsável por levar este Portugal profundo a reagir. Isto levou-nos a procurar alternativas.
Sempre tive uma grande curiosidade em desmanchar brinquedos e olhar para a electrónica das coisas. Lembro-me particularmente daquelas carrinhas da Fundação Gulbenkian que iam pelas aldeias com os livros, era o verdadeiro acontecimento, e isso permitiu-me aprender electrónica. Na altura, havia um apoio aos retornados, o chamado IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais), com o qual nos atribuíram uma casa com uma garagem. Nessa garagem construí uma loja de reparar eletrodomésticos, onde reparava máquinas de lavar, televisores a válvulas, e foi aí que percebi que havia uma dimensão ainda maior. Mas naquela altura havia um problema: ir estudar para fora não era tão simples como hoje, custava muito dinheiro. Nesse ponto, o meu pai sugeriu-me ir para a Marinha, onde podia aprender engenharia, electrónica, com cama e roupa lavada.
No entanto, como sou daltónico, não passei nos exames.
Fui para a Suíça, para as vindimas, apanha dos damascos, para ganhar algum dinheiro para ir estudar para a Universidade onde tirei o meu curso na área das telecomunicações.
Fiz o Técnico, trabalhei no Centro de Fusão Nuclear, fui para a Alemanha, e posteriormente abriu uma vaga para a indústria aeronáutica no âmbito do programa PoSAT.
Foi aí que começou a minha epopeia, muito ligada à área das telecomunicações.

E durante estes 30 anos, o que mudou neste sector?
Mudou tudo, muito mesmo. Na década de 90 deram-se os primeiros passos com o programa PoSAT para se tentar criar uma indústria espacial em Portugal. Hoje não se releva aquilo que foi o primeiro satélite português.
Em 1994, foi criado em Portugal o primeiro curso de tecnologias espaciais que fiz juntamente com algumas pessoas que hoje sãos CEOs de algumas empresas do espaço.

Isso numa fase muito inicial no nosso País!
Sim, foi como um percursor daquilo que foi o projecto do PoSAT. Esse curso formou umas 10 pessoas, e foi a antecâmara de um processo que iria levar muito tempo, porque politicamente o PoSAT não foi continuado, não houve um suporte político, e foi aqui que Portugal perdeu a corrida do espaço.
Há uma falta de visão brutal do sistema político sobre o que deve ser feito em determinados momentos na tecnologia.
Por exemplo, Portugal participava na altura num programa que era o A400M da Airbus, para depois ter benefícios quando o avião estivesse concluído. A determinada altura Portugal desistiu desse projecto, e Espanha continuou, o que levou a que hoje tenha a fabricação de componentes fulcrais no acesso ao espaço.
Nós perdemos essa corrida, ficamos aqui neste marasmo.
Precisamos de alguém que tenha uma perspectiva a médio prazo, a cinco ou 10 anos, é este o ponto.
Então, o que mudou? Em 2000 entramos na ESA (Agência Espacial Europeia) e mudou tudo. Passamos de não ter nenhuma empresa que actuasse no sector do espaço para termos hoje um ecossistema com cerca de 60 empresas. E um sector fantástico, de nicho, uma segunda linha de contratação.  Somos um sector de referência na forma como conduzimos este processo a que chamamos de capacity building

E o que se faz concretamente em Portugal no sector espacial?
Temos que ter atenção que somos um país pequeno, que não podemos fazer uma dispersão das nossas capacidades, porque não estruturamos coisas se for assim. Então fizemos apostas.
Hoje, temos um conjunto de empresas que participa nas principais missões espaciais, em particular no ambiente europeu, somos um país muito activo nas tecnologias do espaço. Trabalhamos em subsistemas em variadíssimas componentes. Em quase todas as missões temos empresas a participar. E fazemos isso através de um sistema de políticas públicas nacionais, temos um budget que negociamos em novembro de 2022, em que Portugal investe 115 milhões a cinco anos para a Agência Espacial Europeia, e que retorna ao País sob forma de contratos.
Quais são essas áreas? Através das tecnologias do espaço podemos criar ambientes de eficiência num processo de digitalização e transformação digital em curso, principalmente naquilo que é a sustentabilidade.
O espaço está ligado à monitorização do território, que é o pilar e a dimensão da sustentabilidade. O potencial está aí, de trabalharmos nos sistemas de informação para gerir o nosso território.

É necessário mudar mentalidades?
Sim, mas a transformação está a ser feita e há progressos fantásticos.
Dou um exemplo muito concreto. Hoje, em todos os espaços de eventos, vemos um desfibrilhador numa parede, é obrigatório por Lei. Esta obrigação criou um technology forcing que gerou um negócio à volta desta necessidade.
Isto aplica-se à earth observation (observação da Terra). É necessário que, por exemplo, a Administração Pública defina que pelo menos X% da gestão do território seja feita em imagens de alta resolução. Isso conduz a uma tomada de decisão diferente.
Em Portugal, lançamos a possibilidade de ter uma constelação de satélites daqui a quatro anos com vários sensores para implementarmos uma open data policy, colocar um geohub de informação para a Administração Pública utilizar em apoio à decisão nos territórios e no oceano.

E qual o principal problema desta gestão territorial no espaço?
O que fizemos nos mares, estamos a fazer no espaço, criamos um problema de lixo. E isto leva-nos também a uma dimensão de sustentabilidade. E, neste cenário, o foco é implementar tecnologias para gestão do lixo espacial, mas mais que isso, por exemplo, caso queiramos lançar mega constelações de satélites, como é que se gere?
Temos que olhar para a coordenação de tráfego espacial como uma área de negócio, tal como já acontece na gestão de lixo espacial.

E Portugal é uma referência na área de gestão de lixo espacial
Está a ser sim, é uma linha que estamos a lançar na agência.
Este ano vamos lançar o ponto de acesso e retorno do espaço nos Açores. Acesso e retorno porque, cada vez mais, a reutilização exige bases. Demos o primeiro passo com a estruturação de um ponto para receber o veículo reutilizável europeu Space Rider que vai aterrar no nosso País. E estamos preparados para fazer os primeiros voos suborbitais de Santa Maria. Vamos lançar ainda este semestre o ponto de acesso e retorno do espaço nos Açores.
Isto são algumas linhas que a Agência Espacial Portuguesa está a traçar para colocar Portugal num trajecto moderno naquilo que são as tecnologias do espaço.

E existe essa visão governamental para que se possa elevar  Portugal a uma “nação espacial”?
O espaço tem vindo a conquistar lentamente o seu posicionamento estratégico na agenda dos nossos governantes. A agência tem tido um absoluto apoio, e isso viu-se em novembro quando conseguimos aumentar a nossa contribuição.
E vamos ver no final deste mês de Fevereiro que o espaço está mesmo na agenda do Governo.
Temos que ter consciência de que isto será uma ferramenta cada vez mais presente na sociedade, para o que são as suas necessidades, não só tecnologicamente, como também ao nível dos serviços.Há muita expectativa que Portugal, com várias opções, possa vir a ter um papel muito importante.

O que leva os empreendedores de hoje a querer apostar no espaço?
O espaço é sexy, ninguém quer ficar fora, e há um grande ambiente de disrupção, um verdadeiro fórum para duas componentes como são a tecnologia e a criatividade. Mas, mais do que isso, transformou-se numa Business Arena, ao que chamamos de New Space Economy.
Quando vemos grandes magnatas como o Elon Musk ou Jeff Bezos a apostar no espaço, é porque são pessoas que querem ganhar dinheiro. E é preciso saber como se pode ganhar dinheiro.
Toda a gente tem o sonho de ter um negócio no espaço, ou ser supplyers, ou então fazer parte da suplly chain. E a certo ponto vai haver escolhas, visto que temos diversas pessoas que apostam os seus milhões nestes novos negócios disruptivos. Além de que há negócios que ainda não imaginamos que se podem criar, e é nessa perspectiva que a inovação e os visionários apostam.

E há também ameaças?
Sim. E uma delas é por exemplo a militarização do espaço. O espaço é uma extensão daquilo que se passa na Terra.

Temos que olhar para o espaço da forma como olhamos para a terra!
Exactamente. Mas temos que ter em conta que a física é diferente, é por órbitas. Como definimos a quem pertencem? Como é que nos posicionamos? E qual o game changer? É nesse ponto que atingiremos a manobrabilidade orbital.Quando isto acontecer, transforma-se este espaço num ambiente geopolítico e de militarização.

Há vários anos que o Ricardo lidera vários projectos. Qual a importância da inspiração e motivação?
É tudo. O desenvolvimento da agência assenta em três pilares-base, o primeiro é o capacity building, ou seja, capacitar as nossas empresas, os nossos sistemas de investigação e desenvolvimento e as nossas instituições, o segundo prende-se com os programas nacionais, para fazer o leverage do capacity building, mas temos que ter uma terceira dimensão que é a literacia espacial.
Digo isto com vaidade, nós damos cartas nos países da Europa, e temos iniciativas que estão a ser copiadas. A primeira diz respeito a uma competição universitária de lançamento de rockets, a segunda é o projecto astronauta por um dia, onde se simula uma campanha de selecção de astronautas junto de alunos universitários, em que um determinado número é seleccionado para um voo de microgravidade. Já o terceiro foi lançado no início de Fevereiro, uma competição universitária que cubesats (satélites em miniatura), onde a equipa vencedora será patrocinada para ver o seu satélite descolar.

E qual é o seu sonho? O que gostaria que acontecesse no sector espacial?
Vou começar pelo contrário, pelo que queria que não acontecesse. O homem é um ser territorial que extrai recursos e que tem necessidade de povoar novas regiões, mas traz consigo sempre um rasto de destruição por onde passa. Eu temo que o que motiva a conquista seja um prolongamento daquilo que temos vindo a fazer aqui.
Não vejo, para já, uma necessidade de colonização da Lua, a não ser por uma questão hegemónica e, claro, de recursos minerais.
Gostava que a perspectiva fosse mais no sentido da construção. Os laboratórios que se perspectivam no espaço vão sintetizar novos materiais, vão traçar os princípios daquilo que é a conquista das grandes doenças, em particular o cancro, e já se está a pensar na criação de hospitais em órbita onde se possam realizar tratamentos.
Há outra possibilidade que é a manufatura em órbita, visto que, na Terra, não podemos produzir, por exemplo, microtubos, por causa da gravidade.
Isto vai de encontro ao Tratado 67 da utilização do espaço para fins pacíficos e científicos.
Há ainda outra dimensão, a de olhar o espaço como local para colocarmos sensores para olharmos pela nossa “casa”, porque o planeta B não existe.
Estes são alguns exemplos para os quais gostava que Portugal contribuísse, e acho que está a contribuir.