Inicia-se julgamento do recurso interposto contra o Estado belga por crimes contra a humanidade na ex-colónia do Congo

Inicia-se hoje o julgamento do recurso interposto por cinco mulheres mestiças contra o Estado belga, num caso histórico de crimes contra a humanidade durante o período colonial no Congo Belga, entre 1908 e 1960. As requerentes, que foram forçadamente retiradas às suas mães congolesas durante a infância, procuram justiça pelas políticas raciais praticadas à época. O processo, o primeiro do género na Europa, vai prolongar-se até 10 de setembro.

Estas cinco mulheres, nascidas entre 1946 e 1950 no então Congo Belga, foram vítimas de uma política sistemática de rapto e segregação de crianças mestiças, cujos pais eram de diferentes raças. Elas exigem que o tribunal responsabilize o Estado belga por ter organizado este sistema de discriminação racial, que teve consequências devastadoras nas suas vidas, e reivindicam compensações pelos danos sofridos. Além disso, pedem acesso a documentos e arquivos que revelem as suas origens e histórias familiares.

Estas mulheres, filhas de homens belgas e mulheres congolesas, foram retiradas à força das suas mães e colocadas em orfanatos, num esquema que envolveu a colaboração do Estado belga e da Igreja Católica. De acordo com documentos oficiais das arquivos coloniais, apresentados pelos advogados das demandantes, as autoridades belgas implementaram uma política que ordenava a remoção de crianças mestiças das suas famílias. As mães eram obrigadas a entregar os filhos, frequentemente sob ameaça ou engano, e as crianças eram enviadas para missões católicas em vários pontos do Congo e do Ruanda, muitas vezes a centenas de quilómetros das suas casas.

Estas práticas foram justificadas na época como parte de um suposto esforço de “proteção” das crianças mestiças, uma população que, segundo o raciocínio colonial, não se enquadrava nas sociedades locais nem nas coloniais devido à sua herança mista. No entanto, estas crianças não eram nem órfãs nem abandonadas, sendo separadas dos seus lares contra a vontade das suas famílias.

Em 2018, o então primeiro-ministro belga Charles Michel apresentou um pedido oficial de desculpas em nome do Estado belga pelo rapto e segregação das crianças mestiças no Congo, Ruanda e Burundi durante o período colonial. “As desculpas foram um primeiro passo”, declarou uma das requerentes, “mas agora exigimos que o Estado belga reconheça a profundidade do dano causado e nos compense por isso”.

Apesar do pedido de desculpas, as queixosas argumentam que tal ato simbólico não é suficiente para reparar as profundas feridas causadas pela separação forçada das suas mães e pela vida de discriminação e marginalização que enfrentaram.

Este julgamento, iniciado em primeira instância em 2021, viu o tribunal cível de Bruxelas rejeitar o pedido das requerentes. No entanto, as cinco mulheres decidiram recorrer da decisão, levando o caso a um novo tribunal que hoje inicia a análise do recurso. Os advogados das requerentes, incluindo Michèle Hirsch, Christophe Marchand e Nicolas Angelet, sublinham a importância histórica deste processo, que poderá abrir portas para outras ações judiciais relacionadas com crimes coloniais em toda a Europa.

A questão central deste julgamento é se o Estado belga pode ser considerado responsável por crimes contra a humanidade, nomeadamente a separação forçada de crianças e a sua segregação, numa política de violação dos direitos humanos fundamentais.

As vítimas não pedem apenas reparação financeira, mas também o reconhecimento oficial de que foram alvo de uma política de racismo institucionalizado. Para muitas delas, a perda de identidade e a falta de ligação com as suas raízes congolesas são feridas que continuam a marcar as suas vidas até hoje.

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