Há 38 anos, a Linha da Beira Alta ficou ‘manchada’ por uma tragédia ferroviária, cujo número de vítimas até hoje não é conhecido
Há 38 anos, Portugal viveu um dos momentos mais trágicos da sua história recente. A pequena localidade de Moimenta Maceira Dão, no concelho de Mangualde, foi palco do maior desastre ferroviário de sempre no país. Esta data, 11 de setembro de 1985, está para sempre gravada na memória de quem a viveu e transformou para sempre a forma como Portugal encarava a segurança nos transportes ferroviários. Contudo, com o passar do tempo, a tragédia de Alcafache caiu no esquecimento de muitos.
Quem hoje viaja pela antiga Estrada Nacional 234, a caminho de Mangualde, passa por uma modesta estrada de terra batida que leva a um monumento discreto. No local onde agora se ergue uma estátua e um mural de azulejo, ocorreu o fatídico choque entre dois comboios que, em 1985, vitimou dezenas de pessoas. Alcafache, que até então era conhecido pelas suas termas nas margens do rio Dão, ficou associado à tragédia ferroviária.
O desastre teve início com o atraso de 17 minutos do comboio internacional Sud-Express, que partiu de Campanhã, Porto, às 15h57 com destino a Paris-Austerlitz. A bordo viajavam cerca de 400 passageiros, na sua maioria emigrantes que tinham passado férias em Portugal. Uma hora depois, às 16h55, partiu da Guarda o comboio regional com destino a Coimbra, cumprindo o seu horário. Ambos os comboios estavam destinados a cruzar-se na Linha da Beira Alta, uma linha de via única, o que exigia uma coordenação cuidadosa.
Às 18h19, o Sud-Express chegou a Nelas, enquanto o comboio regional alcançou a estação de Mangualde. Aqui, o regional deveria ter aguardado, devido ao atraso do Sud-Express. No entanto, tal não aconteceu, e, às 18h37, os dois comboios colidiram frontalmente, descarrilando ao longo de dezenas de metros numa zona florestal.
O impacto foi devastador. A violência do choque resultou na destruição completa de várias carruagens e na ignição de um incêndio causado pelo derrame de gasóleo das locomotivas, que se alastrou rapidamente ao pinhal circundante. Os primeiros a chegar ao local foram os habitantes das aldeias vizinhas, alarmados pelo estrondo. Entre eles, encontrava-se um operador de câmara da RTP, que captou as primeiras imagens do acidente.
Os bombeiros que chegaram ao local depararam-se com um cenário de horror indescritível. Corpos mutilados, muitos já carbonizados, estavam espalhados pelos destroços. Os relatos dos bombeiros que participaram nas operações de resgate descrevem uma visão dantesca: pais abraçados aos filhos em atos desesperados de proteção, restos mortais desmembrados espalhados pelo local, e um cheiro intenso a metal queimado e carne queimada.
Vítor Morais, um dos sobreviventes, contou anos depois que se encontrava sentado numa das carruagens do comboio regional quando ouviu um barulho estrondoso. Após um apagão momentâneo, acordou debaixo dos destroços, coberto de sangue. Em estado de choque, viu-se rodeado por uma amálgama de metal retorcido e corpos. No meio do caos, acabou por ser resgatado e transportado de helicóptero para Lisboa, graças à intervenção do então presidente da República, Ramalho Eanes, que visitou o local na noite do acidente.
A resposta ao desastre envolveu não só as corporações de bombeiros locais, mas também o Exército e a Força Aérea, que participaram ativamente no resgate dos feridos e no transporte das vítimas para hospitais nas proximidades, incluindo Viseu, Porto e Coimbra.
O impacto da tragédia foi de tal magnitude que o presidente Ramalho Eanes fez questão de garantir que o país tivesse conhecimento do que acontecera. Através de um corredor aéreo, as imagens captadas pelo operador de câmara foram rapidamente transportadas para a RTP no Porto, sendo transmitidas nas televisões nacionais ainda nessa noite. A comoção pública foi imediata. Centenas de pessoas dirigiram-se aos hospitais para doar sangue e o então primeiro-ministro, Mário Soares, decretou três dias de luto nacional.
Apesar da comoção inicial, o número exato de vítimas do desastre permanece até hoje um mistério. Os relatos iniciais apontavam para cerca de 300 mortos, enquanto outras estimativas sugeriam 100. Oficialmente, o balanço final contabilizou 49 mortos, com 64 desaparecidos. No entanto, muitos corpos nunca foram recuperados ou identificados, e foi necessária a abertura de uma vala comum para enterrar os restos mortais não identificados.
A investigação oficial concluiu que a tragédia foi causada por erro humano, devido à falha de comunicação que permitiu que o comboio regional avançasse sem esperar pelo Sud-Express. No entanto, apesar de quatro arguidos terem sido levados a tribunal, o caso acabou por ser arquivado, sem culpados atribuídos. A falta de registos eletrónicos e a dificuldade em apurar responsabilidades deixaram muitas questões por responder.
O desastre de Alcafache levou, no entanto, a mudanças significativas na segurança ferroviária em Portugal. A modernização dos sistemas de comunicação e sinalização tornou impossível a repetição de um erro tão fatal, com a introdução de rádio solo para permitir a comunicação direta entre maquinistas e centrais de controlo.
O Legado de Alcafache
Apesar de a tragédia de Alcafache ter sido um dos momentos mais trágicos da história contemporânea portuguesa, ela acabou por ser esquecida por muitos. A falta de uma conclusão clara sobre o número de vítimas e a ausência de responsáveis contribuíram para este esquecimento. Ainda assim, o impacto do desastre é inegável, tendo contribuído para a modernização e maior segurança do sistema ferroviário nacional.
Hoje, Alcafache é um nome que, para muitos, evoca não só a morte e a destruição, mas também a lembrança de um país que, perante a tragédia, se uniu em solidariedade e que, lentamente, aprendeu com os seus erros.
As vítimas são recordadas hoje numa cerimónia com o seguinte programa:
10:00 – Concentração no local e espaço envolvente ao acidente dos organismos humanitários convidados, representantes municipais, entidades governamentais, deputados, familiares e população civil;
10:30 – Alocução de boas-vindas;
10:35 – Deposição de coroas de flores ao som do toque do clarinete seguido de um minuto de silêncio;
10:40 – Alocução de presentes;
10:45 – Abertura da homilia pelo responsável do grupo Comafa e de alguns membros responsáveis;
11:15 – Início da missa com a participação do coro;
12:00 – Encerramento das cerimónias com os hinos dos bombeiros e o Hino Nacional.